terça-feira, 30 de dezembro de 2025

De Mortuis



Não sei o que se passa no Instituto de Pesquisas Aplicadas em Frutas Tropicais e Subtropicais, nos arredores de Paris. Prefiro imaginar. Deve haver grandes especialistas vestidos de branco, equipados com toda a panóplia de títulos competitivos que, na França, são indispensáveis a qualquer categoria profissional, dos escritores aos pedicuros. Fantasmagóricos emissários da Papua, de Cipango e das florestas equatoriais da Amazônia circulam entre eles, oferecendo a exame sumarentos híbridos de goiaba com maracujá, de atemoia com nêspera, do perfumado cumaru com a olorosa lichia. Céticos, mordiscam, cheiram, acariciam as amostras. As sementes de um raro abricó carnívoro, contrabandeadas dos planaltos da Nova Guiné, germinam no viveiro de vidro. Como o instituto fica em Maisons-Laffitte, de tempos em tempos vertem-se discretas libações provenientes de nobre safra de mesmo nome.
Como todos os institutos que se respeitam, o de Pesquisas Aplicadas em Frutas Tropicais e Subtropicais dispõe de um setor de informações, um catálogo, uma mesa de onde saem altaneiras e esclarecedoras respostas às perguntas que ali chovem, vindas do encarregado dos papagaios do Jardin Zoologique, daqueles, sempre numerosíssimos na França, em busca de alguma nova e requintada toxina para envenenar suas esposas, de criadores e solucionadores de palavras cruzadas. O diretor de informações é um tal monsieur Philippe Ariès. Homem muito trabalhador. Entre uma e outra resposta às indagações sobre as 9.671 variedades de bagas não comestíveis da submata ceilonesa, monsieur Ariès escreve enormes volumes sobre a vida e a morte, sobre o homem na esfera privada e a história na esfera pública. Sua História social da criança e da família, que saiu em inglês em 1962 como Centuries of Childhood [Séculos de infância], seu estudo preliminar da História da morte no Ocidente, traduzido em 1974 como Western Attitudes Toward Death, e O homem diante da morte, que acaba de ser publicado numa tradução escorreita de Helen Weaver como The Hour of Our Death [A hora da nossa morte], fizeram de Ariès uma das “figuras de proa” (figures de proue) na atual escola de história e historiografia francesa, de enorme influência.
A história tradicional, como disse um aluno inglês, trata de “mapas e nomes”. Essa perspectiva um tanto literalista é contestada já faz muito tempo por áreas específicas como a história econômica, a história das ideias, a teoria e análise das relações internacionais, além da tentativa de construir uma totalidade orgânica dos registros da tecnologia, da invenção científica, da vida cotidiana no campo e na cidade, e dos arquivos das instituições sociais e da vida familiar, tentativa esta que tem um brilhante representante aqui nos eua em Daniel Boorstin. A escola francesa tem avançado radicalmente para a interioridade. Procura trazer à luz da narrativa metódica — e, na verdade, da quantificação — as fontes e os fluxos da consciência humana, as mudanças de sensibilidade e dos costumes emocionais numa determinada sociedade, meio ou época. Não há nenhuma tradução plenamente adequada para a expressão “histoire des mentalités”, apontando simultaneamente para a historicidade no velho sentido e para a primazia da interioridade no novo sentido. O crescimento dessa escola francesa é, em si mesmo, um episódio fascinante de “história interna”. O positivismo, na versão oitocentista de Auguste Comte, pregava que a história era o instrumento analítico geral por meio do qual uma sociedade chega a uma imagem coerente de sua gênese e de suas características próprias. Comte, Hippolyte Taine, Marx tinham insistido vigorosamente que a sociologia, a investigação estatística dos costumes sociais e das tendências demográficas, devia ser parte integrante dos métodos do historiador. Em paralelo a esta corrente, havia a grande tradição da literatura social realista francesa, de Balzac e Flaubert a Zola e Proust, com o foco vividamente documental e investigativo da narrativa literária concentrando-se sobre as atitudes, as instituições, as tendências psicológicas da sociedade francesa, rural e urbana, aristocrática e burguesa mercantil. Essas duas tradições paralelas parecem se reunir na obra pioneira de historiadores de gênio como Marc Bloch, Fernand Braudel e Lucien Febvre. Sobretudo Febvre fez as perguntas principais. Ele queria saber como as pessoas do século xvi pensavam e sentiam a respeito do amor, como vivenciavam e lidavam com a tensão emocional dos conflitos religiosos, quais atitudes adotavam diante da doença e da morte. Ele defendia “histórias da alegria, da compaixão, da angústia pessoal” em grande escala. Indagava se o surgimento dos óculos e as melhorias na iluminação artificial teriam destruído a grande civilização dos odores, da concorrida especialidade do olfato, como havia predominado nas cidades fétidas da Idade Média e do século xv. Muito antes de McLuhan, Febvre indagava sobre as implicações sensoriais e ideológicas da passagem gradual do manuscrito para a página impressa.
Uma galáxia inteira de historiadores franceses — e ultimamente ingleses e americanos — tem seguido as pegadas de Febvre. Não só examinam a estrutura e o desenvolvimento das relações conjugais, por exemplo, no campo e na cidade durante os séculos XVII e XVIII; procuram também determinar — e este é o ponto central — de que maneira os homens e mulheres da época entendiam, simbolizavam e concordavam ou tentavam se rebelar contra o que pensavam ser (e isso em si é uma questão problemática) as “realidades” do casamento, do sexo, da gestação e criação dos filhos, da herança e transmissão dos direitos de propriedade. Por exemplo, historiadores como Georges Duby tentam reviver as modificações na consciência humana da distância, da comunidade, do alcance pessoal, que devem ter sido profundas, conforme as grandes florestas da Europa da Alta Idade Média se faziam menos densas, conforme as estradas voltavam a ser transitáveis depois da queda do domínio romano. Outros historiadores querem saber em que exatos aspectos, em que medida, as expectativas do Inferno como era pregado e pintado na doutrina eclesiástica e o desgaste muito lento, mas constante, dessas expectativas afetaram ou não, de um lado, as modalidades da guerra e a tendência do casamento “incestuoso” na ordem da cavalaria e, de outro lado, a “mundanidade” nascente das classes mercantis.
A literatura e as artes, a história da transformação das palavras e da gramática, a materialidade da arquitetura pública e doméstica, a evolução dos livros de receitas e de cartilhas de escola, os registros do coletor de impostos e o glossário de expressões do escrivão público (com sua curiosa sobrevivência nas mensagens de felicitações ou condolências da Western Union), os sermões do padre da paróquia e as anotações clínicas do médico descrevendo para si e sua comunidade a natureza de uma determinada doença — tudo isso é material para o historiador das “mentalidades”. Quase por definição, nada que seja pensado, sentido, registrado, mas também nada que seja negligenciado por uma sociedade, é insignificante. Pois, se a percepção é uma condição histórica, a omissão também o é. Os homens e as mulheres antes de Freud não viam certos traços salientes de vida sexual nas crianças, neles mesmos, em seus sonhos? Escolhiam não os ver? Ou ainda não existia um vocabulário estabelecido para a definição e a enunciação desses traços? Faltam-nos histórias dos sonhos. Já se observou demoradamente que as crianças na arte medieval e renascentista eram adultos em miniatura, que a execução do artista não se estendia às qualidades intrínsecas da infância na aparência e nos movimentos da criança. Não havia praticamente nenhuma criança convincente na “universalidade” de Shakespeare. A criança é uma descoberta dos séculos XVIII e XIX, ela foi “inventada” pela sensibilidade libertária e romântica e pelas teorias rousseauístas da educação. Em sua História social da criança e da família, Ariès procurou rastrear e documentar a história desse acréscimo gradual e surpreendentemente tardio ao conjunto dos reconhecimentos públicos e pessoais essenciais. Então passou para a morte, para os modos mutáveis de consciência e interpretação emocional e intelectual que o homem ocidental veio a ter em relação à mortalidade como experiência individual e instituição coletiva.
A matéria-prima é imensa e variada: relatos verídicos e literários de doenças fatais e falecimentos; os contratos com a morte registrados nos testamentos; as crônicas das práticas e locais de sepultamento; as inúmeras mudanças, muitas vezes drásticas, na terminologia dos epitáfios e no estilo dos monumentos comemorativos; meditações filosóficas e litúrgicas sobre o sentido da morte; explorações ficcionais como A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói; diagnósticos médicos sobre as causas da morte; as mutáveis representações do “além”; os estudos da economia e da psicologia dos estados terminais e do passamento, tal como têm sido realizados por sociólogos e psicólogos sociais modernos (desde o trabalho pioneiro de Geoffrey Gorer na Inglaterra). De fato, a história das atitudes e gestos de uma sociedade perante a morte é, num sentido muito substancial, uma explanação central da própria sociedade.
É difícil resumir o argumento principal de Philippe Ariès neste presente volume. É difícil não só porque, ao contrário de muitos de seus pares em campo francês, Ariès toma um vasto tema e uma vasta escala temporal (um milênio) para seu quadro. Mas também porque os fios principais de sua tese ficam toldados por uma pletora de detalhes fascinantes, e porque, com uma sinceridade reconfortante e ao mesmo tempo levemente exasperante, Ariès faz ressalvas constantes e até entra em contradição com os postulados gerais que acabara de apresentar. Num conjunto recente de entrevistas autobiográficas, Ariès relembra seus primeiros anos entre a juventude dourada da Action Française, de extrema direita. A sensação de uma aventura travessa permanece. Mas agora Ariès combina o determinismo teórico rigorista que caracteriza grande parte da antropologia e historiografia francesa moderna com o empirismo alerta, flexível e desordenado da linhagem anglo-americana.
Em algum momento do século XII, afirma Ariès, uma vivência arcaica da morte, de tipo essencialmente coletivo, cedeu lugar, pelo menos entre a elite, a um sentimento personalizado de extinção, ao conceito de que falecia um indivíduo específico, “biográfico”. Ao longo da Idade Média e do período inicial da modernidade, as instâncias sociais e também personalizadas do luto, do sepultamento, da representação visual e comemoração dos mortos estiveram atuantes numa complexa variedade de modelos e práticas institucionalizadas. Esses, por sua vez, dependiam da classe social, do local, da estrutura religiosa dominante (católica ou protestante). Dependiam também dos tipos variáveis de demonstrar que esses textos são representativos — que podemos inferir deles com legitimidade as atitudes de toda uma sociedade e de toda uma época. Uma coisa é exemplificar as mudanças na terminologia dos testamentos e dos epitáfios; outra totalmente diferente é chegar a uma leitura confiante das atitudes mentais que sustentam tais “codificações” ou delas deduzir transformações cronológicas da sensibilidade ocidental. Em toda obra de historiografia, o próprio quadro mental do historiador desempenha um papel inevitavelmente seletivo e ordenador. Nas “histórias da consciência”, o processo de refração é duplo, e a luz das provas distantes passa pelo menos duas vezes pelo prisma interpretativo. Além disso, algumas magnitudes parecem desafiar as intuições e a habilidade de reconstituição do historien des mentalités. De que maneira e em que medida os fatos da aniquilação em massa na guerra global e no genocídio totalitário e da possibilidade de destruição nuclear, que agora enfrentamos, afetaram a concepção ocidental da morte individual? Ariès deixa o tema praticamente de lado. Pode ser que volte a ele.
Pensar a morte”, na famosa e inquietante expressão do filósofo Heidegger, é uma ação ao mesmo tempo terrivelmente pessoal e inteiramente comunal. Reunir elementos documentando a longa história e as condições que cercam tal ação é chegar a pequeníssima distância do próprio cerne de nosso ser. Esse livro é um momento de consciência fervorosa e, portanto, estranhamente revigorante.
22 de junho de 1981

George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

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