Não sei o que se passa no Instituto
de Pesquisas Aplicadas em Frutas Tropicais e Subtropicais, nos
arredores de Paris. Prefiro imaginar. Deve haver grandes
especialistas vestidos de branco, equipados com toda a panóplia de
títulos competitivos que, na França, são indispensáveis a
qualquer categoria profissional, dos escritores aos pedicuros.
Fantasmagóricos emissários da Papua, de Cipango e das florestas
equatoriais da Amazônia circulam entre eles, oferecendo a exame
sumarentos híbridos de goiaba com maracujá, de atemoia com nêspera,
do perfumado cumaru com a olorosa lichia. Céticos, mordiscam,
cheiram, acariciam as amostras. As sementes de um raro abricó
carnívoro, contrabandeadas dos planaltos da Nova Guiné, germinam no
viveiro de vidro. Como o instituto fica em Maisons-Laffitte, de
tempos em tempos vertem-se discretas libações provenientes de nobre
safra de mesmo nome.
Como todos os institutos que se
respeitam, o de Pesquisas Aplicadas em Frutas Tropicais e
Subtropicais dispõe de um setor de informações, um catálogo, uma
mesa de onde saem altaneiras e esclarecedoras respostas às perguntas
que ali chovem, vindas do encarregado dos papagaios do Jardin
Zoologique, daqueles, sempre numerosíssimos na França, em busca de
alguma nova e requintada toxina para envenenar suas esposas, de
criadores e solucionadores de palavras cruzadas. O diretor de
informações é um tal monsieur Philippe Ariès. Homem muito
trabalhador. Entre uma e outra resposta às indagações sobre as
9.671 variedades de bagas não comestíveis da submata ceilonesa,
monsieur Ariès escreve enormes volumes sobre a vida e a morte, sobre
o homem na esfera privada e a história na esfera pública. Sua
História social da criança e da família, que saiu em inglês
em 1962 como Centuries of Childhood [Séculos de infância],
seu estudo preliminar da História da morte no Ocidente, traduzido em
1974 como Western Attitudes Toward Death, e O homem diante
da morte, que acaba de ser publicado numa tradução escorreita
de Helen Weaver como The Hour of Our Death [A hora da
nossa morte], fizeram de Ariès uma das “figuras de proa”
(figures de proue) na atual escola de história e
historiografia francesa, de enorme influência.
A história tradicional, como disse um
aluno inglês, trata de “mapas e nomes”. Essa perspectiva um
tanto literalista é contestada já faz muito tempo por áreas
específicas como a história econômica, a história das ideias, a
teoria e análise das relações internacionais, além da tentativa
de construir uma totalidade orgânica dos registros da tecnologia, da
invenção científica, da vida cotidiana no campo e na cidade, e dos
arquivos das instituições sociais e da vida familiar, tentativa
esta que tem um brilhante representante aqui nos eua em Daniel
Boorstin. A escola francesa tem avançado radicalmente para a
interioridade. Procura trazer à luz da narrativa metódica — e, na
verdade, da quantificação — as fontes e os fluxos da consciência
humana, as mudanças de sensibilidade e dos costumes emocionais numa
determinada sociedade, meio ou época. Não há nenhuma tradução
plenamente adequada para a expressão “histoire des mentalités”,
apontando simultaneamente para a historicidade no velho sentido e
para a primazia da interioridade no novo sentido. O crescimento dessa
escola francesa é, em si mesmo, um episódio fascinante de “história
interna”. O positivismo, na versão oitocentista de Auguste Comte,
pregava que a história era o instrumento analítico geral por meio
do qual uma sociedade chega a uma imagem coerente de sua gênese e de
suas características próprias. Comte, Hippolyte Taine, Marx tinham
insistido vigorosamente que a sociologia, a investigação
estatística dos costumes sociais e das tendências demográficas,
devia ser parte integrante dos métodos do historiador. Em paralelo a
esta corrente, havia a grande tradição da literatura social
realista francesa, de Balzac e Flaubert a Zola e Proust, com o foco
vividamente documental e investigativo da narrativa literária
concentrando-se sobre as atitudes, as instituições, as tendências
psicológicas da sociedade francesa, rural e urbana, aristocrática e
burguesa mercantil. Essas duas tradições paralelas parecem se
reunir na obra pioneira de historiadores de gênio como Marc Bloch,
Fernand Braudel e Lucien Febvre. Sobretudo Febvre fez as perguntas
principais. Ele queria saber como as pessoas do século xvi pensavam
e sentiam a respeito do amor, como vivenciavam e lidavam com a tensão
emocional dos conflitos religiosos, quais atitudes adotavam diante da
doença e da morte. Ele defendia “histórias da alegria, da
compaixão, da angústia pessoal” em grande escala. Indagava se o
surgimento dos óculos e as melhorias na iluminação artificial
teriam destruído a grande civilização dos odores, da concorrida
especialidade do olfato, como havia predominado nas cidades fétidas
da Idade Média e do século xv. Muito antes de McLuhan, Febvre
indagava sobre as implicações sensoriais e ideológicas da passagem
gradual do manuscrito para a página impressa.
Uma galáxia inteira de historiadores
franceses — e ultimamente ingleses e americanos — tem seguido as
pegadas de Febvre. Não só examinam a estrutura e o desenvolvimento
das relações conjugais, por exemplo, no campo e na cidade durante
os séculos XVII e XVIII; procuram também determinar — e este é o
ponto central — de que maneira os homens e mulheres da época
entendiam, simbolizavam e concordavam ou tentavam se rebelar contra o
que pensavam ser (e isso em si é uma questão problemática) as
“realidades” do casamento, do sexo, da gestação e criação dos
filhos, da herança e transmissão dos direitos de propriedade. Por
exemplo, historiadores como Georges Duby tentam reviver as
modificações na consciência humana da distância, da comunidade,
do alcance pessoal, que devem ter sido profundas, conforme as grandes
florestas da Europa da Alta Idade Média se faziam menos densas,
conforme as estradas voltavam a ser transitáveis depois da queda do
domínio romano. Outros historiadores querem saber em que exatos
aspectos, em que medida, as expectativas do Inferno como era pregado
e pintado na doutrina eclesiástica e o desgaste muito lento, mas
constante, dessas expectativas afetaram ou não, de um lado, as
modalidades da guerra e a tendência do casamento “incestuoso” na
ordem da cavalaria e, de outro lado, a “mundanidade” nascente das
classes mercantis.
A literatura e as artes, a história
da transformação das palavras e da gramática, a materialidade da
arquitetura pública e doméstica, a evolução dos livros de
receitas e de cartilhas de escola, os registros do coletor de
impostos e o glossário de expressões do escrivão público (com sua
curiosa sobrevivência nas mensagens de felicitações ou
condolências da Western Union), os sermões do padre da paróquia e
as anotações clínicas do médico descrevendo para si e sua
comunidade a natureza de uma determinada doença — tudo isso é
material para o historiador das “mentalidades”. Quase por
definição, nada que seja pensado, sentido, registrado, mas também
nada que seja negligenciado por uma sociedade, é insignificante.
Pois, se a percepção é uma condição histórica, a omissão
também o é. Os homens e as mulheres antes de Freud não viam certos
traços salientes de vida sexual nas crianças, neles mesmos, em seus
sonhos? Escolhiam não os ver? Ou ainda não existia um vocabulário
estabelecido para a definição e a enunciação desses traços?
Faltam-nos histórias dos sonhos. Já se observou demoradamente que
as crianças na arte medieval e renascentista eram adultos em
miniatura, que a execução do artista não se estendia às
qualidades intrínsecas da infância na aparência e nos movimentos
da criança. Não havia praticamente nenhuma criança convincente na
“universalidade” de Shakespeare. A criança é uma descoberta dos
séculos XVIII e XIX, ela foi “inventada” pela sensibilidade
libertária e romântica e pelas teorias rousseauístas da educação.
Em sua História social da criança e da família, Ariès
procurou rastrear e documentar a história desse acréscimo gradual e
surpreendentemente tardio ao conjunto dos reconhecimentos públicos e
pessoais essenciais. Então passou para a morte, para os modos
mutáveis de consciência e interpretação emocional e intelectual
que o homem ocidental veio a ter em relação à mortalidade como
experiência individual e instituição coletiva.
A matéria-prima é imensa e variada:
relatos verídicos e literários de doenças fatais e falecimentos;
os contratos com a morte registrados nos testamentos; as crônicas
das práticas e locais de sepultamento; as inúmeras mudanças,
muitas vezes drásticas, na terminologia dos epitáfios e no estilo
dos monumentos comemorativos; meditações filosóficas e litúrgicas
sobre o sentido da morte; explorações ficcionais como A morte de
Ivan Ilitch, de Tolstói; diagnósticos médicos sobre as causas da
morte; as mutáveis representações do “além”; os estudos da
economia e da psicologia dos estados terminais e do passamento, tal
como têm sido realizados por sociólogos e psicólogos sociais
modernos (desde o trabalho pioneiro de Geoffrey Gorer na Inglaterra).
De fato, a história das atitudes e gestos de uma sociedade perante a
morte é, num sentido muito substancial, uma explanação central da
própria sociedade.
É difícil resumir o argumento
principal de Philippe Ariès neste presente volume. É difícil não
só porque, ao contrário de muitos de seus pares em campo francês,
Ariès toma um vasto tema e uma vasta escala temporal (um milênio)
para seu quadro. Mas também porque os fios principais de sua tese
ficam toldados por uma pletora de detalhes fascinantes, e porque, com
uma sinceridade reconfortante e ao mesmo tempo levemente exasperante,
Ariès faz ressalvas constantes e até entra em contradição com os
postulados gerais que acabara de apresentar. Num conjunto recente de
entrevistas autobiográficas, Ariès relembra seus primeiros anos
entre a juventude dourada da Action Française, de extrema direita. A
sensação de uma aventura travessa permanece. Mas agora Ariès
combina o determinismo teórico rigorista que caracteriza grande
parte da antropologia e historiografia francesa moderna com o
empirismo alerta, flexível e desordenado da linhagem
anglo-americana.
Em algum momento do século XII,
afirma Ariès, uma vivência arcaica da morte, de tipo essencialmente
coletivo, cedeu lugar, pelo menos entre a elite, a um sentimento
personalizado de extinção, ao conceito de que falecia um indivíduo
específico, “biográfico”. Ao longo da Idade Média e do período
inicial da modernidade, as instâncias sociais e também
personalizadas do luto, do sepultamento, da representação visual e
comemoração dos mortos estiveram atuantes numa complexa variedade
de modelos e práticas institucionalizadas. Esses, por sua vez,
dependiam da classe social, do local, da estrutura religiosa
dominante (católica ou protestante). Dependiam também dos tipos
variáveis de demonstrar que esses textos são representativos —
que podemos inferir deles com legitimidade as atitudes de toda uma
sociedade e de toda uma época. Uma coisa é exemplificar as mudanças
na terminologia dos testamentos e dos epitáfios; outra totalmente
diferente é chegar a uma leitura confiante das atitudes mentais que
sustentam tais “codificações” ou delas deduzir transformações
cronológicas da sensibilidade ocidental. Em toda obra de
historiografia, o próprio quadro mental do historiador desempenha um
papel inevitavelmente seletivo e ordenador. Nas “histórias da
consciência”, o processo de refração é duplo, e a luz das
provas distantes passa pelo menos duas vezes pelo prisma
interpretativo. Além disso, algumas magnitudes parecem desafiar as
intuições e a habilidade de reconstituição do historien des
mentalités. De que maneira e em que medida os fatos da
aniquilação em massa na guerra global e no genocídio totalitário
e da possibilidade de destruição nuclear, que agora enfrentamos,
afetaram a concepção ocidental da morte individual? Ariès deixa o
tema praticamente de lado. Pode ser que volte a ele.
“Pensar a morte”, na famosa e
inquietante expressão do filósofo Heidegger, é uma ação ao mesmo
tempo terrivelmente pessoal e inteiramente comunal. Reunir elementos
documentando a longa história e as condições que cercam tal ação
é chegar a pequeníssima distância do próprio cerne de nosso ser.
Esse livro é um momento de consciência fervorosa e, portanto,
estranhamente revigorante.
22 de junho de 1981
George Steiner, em Tigres no Espelho e Outros Textos

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