Fabiano recebia na partilha a quarta
parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça
e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e
milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar
um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se pudesse economizar durante alguns
meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão
não se trepa. Consumidos os. legumes, roídas as espigas de milho,
recorria a gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das
sortes, Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os
recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com
outro, não seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser
expulso da fazenda. E rendia-se: Aceitava o cobre e ouvia conselhos.
Era bom pensar no futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta,
vermelho, o pescoço inchando. De repente estourava – Conversa.
Dinheiro anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do
chão não se trepa.
Pouco a pouco o ferro do proprietário
queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para
vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava
encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Ora, daquela vez, como das outras,
Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação
meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os
meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se,
distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e
diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao
fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória, como de
costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação
habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano.
Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a
mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não
se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida
inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada!
Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de
alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a
insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra
fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e
amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia dito
palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado.
Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar
questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os
homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia ser
ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela. Enfim, como
não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara na sua velha. Mas
pedia desculpa e jurava não cair noutra.
O amo abrandou, e Fabiano saiu de
costas, o chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou
as rosetas das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro
cru batendo no chão como cascos.
Foi até a esquina, parou, tomou
fôlego. Não deviam tratá-lo assim. Dirigiu-se ao quadro
lentamente. Diante da bodega de seu Inácio virou o rosto e fez uma
curva larga. Depois que acontecera aquela miséria, temia passar ali.
Sentou-se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o,
procurando adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em
voz alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado quase
de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia era
safadeza.
– Ladroeira.
Nem lhe permitiam queixas. Porque
reclamara, achara a coisa uma exorbitância, o branco se levantara
furioso, com quatro pedras na mão. Para que tanto espalhafato?
– Hum! hum!
Recordou-se do que lhe sucedera anos
atrás, antes da seca, longe. Num dia de apuro recorrera ao porco
magro que não queria engordar no chiqueiro e estava reservado às
despesas do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na
cidade. Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e
atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido: não compreendia
nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para vender o
porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo de que ali não
havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente se
aborrecera, insultara-o, e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o
livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos
seus troços. Não entendia de imposto.
– Um bruto, está percebendo?
Supunha que o cevado era dele. Agora
se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para
casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O
funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu
de couro na mão, o espinhaço curvo: - Quem foi que disse que eu
queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.
Despedira-se, metera a carne no saco e
fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador,
gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais
porcos. Era perigoso criá-los.
Olhou as cédulas arrumadas na palma,
os níqueis e as pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava
o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse,
desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e
os cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os
meninos? Tinha nada!
Espalhou a vista pelos quatro cantos.
Além dos telhados, que lhe reduziam o horizonte, a campina se
estendia, seca e dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera através
dela, com a família, todos Haviam escapado, e isto lhe parecia um
milagre. Nem sabia como tinham escapado.
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto
que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a
qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os
soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele.
Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se
arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.
– Um dia um homem faz besteira e se
desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de
carne e osso? Tinha obrigação de trabalhar para os outros,
naturalmente, conhecia o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino,
ninguém tinha culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que
fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível
melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo para
amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a
verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás
não existia família. Cortar mandacaru, ensebar látegos – aquilo
estava no sangue. Conformava-se, não pretendia mais nada Se lhe
dessem o que era dele, estava certo. Não davam.
Era um desgraçado, era como um
cachorro,.só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda
lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo pessoas importantes
se ocuparem com semelhantes porcarias.
Na palma da mão as notas estavam
úmidas de suor. Desejava saber o tamanho da extorsão. Da última
vez que fizera contas com o amo o prejuízo parecia menor.
Alarmou-se. Ouvira falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma
impressão bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam
palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se escutando-as.
Evidentemente só serviam para encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas.
As vezes decorava algumas e empregava-as fora do propósito. Depois
esquecia-as. Para que um pobre da laia dele usar conversa de gente
rica? Sinha Terta é que tinha uma ponta de língua terrível. Era:
falava quase tão bem como as pessoas da cidade. Se ele soubesse
esmolambados e famintos. Ia falar como Sinha Terta, procuraria
serviço noutra fazenda, haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas
horas de aperto dava para gaguejar, embaraçava-se como um menino,
coçava os cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados.
Tomar as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não
viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante
procedimento? Hem? Que iam ganhar?
– An!
Agora não criava porco e queria ver o
tipo da prefeitura cobrar dele imposto e multa. Arrancavam-lhe a
camisa do corpo e ainda por cima davam-lhe facão e cadeia. Pois não
trabalharia mais, ia descansar.
Talvez não fosse. Interrompeu o
monólogo, levou uma eternidade contando e recontando mentalmente o
dinheiro. Amarrotou-o com força, empurrou-o no bolso raso da calça,
meteu na casa estreita o botão de osso. Porcaria.
Levantou-se, foi até a porta de uma
bodega, com vontade de beber cachaça. Como havia muitas pessoas
encostadas ao balcão, recuou. Não gostava de se ver no meio do
povo. Falta de costume. As vezes dizia uma coisa sem intenção de
ofender, entendiam outra, e lá vinham questões. Perigoso entrar na
bodega. O único vivente que o compreendia era a mulher. Nem
precisava falar: bastavam os gestos. Sinha Terta é que se explicava
como gente da rua. Muito bom uma criatura ser assim, ter recurso para
se defender. Ele não tinha. Se tivesse, não viveria naquele estado.
Um perigo entrar na bodega. Estava com
desejo de beber um quarteirão de cachaça, mas lembrava-se da última
visita feita à venda de seu Inácio. Se não tivesse tido a ideia de
beber, não lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma
pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir.
Saiu lento, pesado, capiongo, as
rosetas das esporas silenciosas. Não conseguiria dormir. Na cama de
varas havia um pau com um nó, bem no meio. Só muito cansaço fazia
um cristão acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigar- se
no lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas. Derreado,
bambo,, espichava-se e roncava como um porco. Agora não lhe seria
possível fechar os olhos. Rolaria a noite inteira sobre as varas,
matutando naquela perseguição. Desejaria imaginar o que ia fazer
para o futuro. Não ia fazer nada. Matar-se-ia no serviço e moraria
numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo
mundo, iria morrer de fome na catinga seca.
Tirou do bolso o rolo de fumo,
preparou um cigarro com a faca de ponta. Se ao menos pudesse
recordar-se de fatos agradáveis, a vida não seria inteiramente má.
Deixara a rua. Levantou a cabeça, viu
uma estrela, depois muitas estrelas. As figuras dos inimigos
esmoreceram. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre
de Baleia. Era como se ele tivesse matado uma pessoa da família.
Graciliano Ramos, em Vidas Secas

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