domingo, 28 de dezembro de 2025

Darl



Faz tempo que deixamos anúncios para trás drugstores, lojas de roupas feitas, especialidades médicas, garagens e cafés, e os marcos quilométricos vão diminuindo, assinalando distâncias menores: 4 km, 3 km. Do alto de uma ladeira, ao subirmos outra vez à carroça, podemos ver a fumaça baixa e densa, parecendo imóvel na tarde sem vento.
"É ela, Darl?", pergunta Vardaman. "É mesmo Jefferson?"
Ele também emagreceu; como nós, seu rosto tem uma expressão tensa, sonhadora e descarnada.
"Sim", digo.
Ele levanta a cabeça e olha o céu. Altos contra o céu, eles pendem em círculos decrescentes, como a fumaça, e com uma aparência de forma e de objetivo, mas sem indicação alguma de movimento, avanço ou retrocesso. Subimos outra vez à carroça onde Cash está deitado sobre o caixão, com pedaços de cimento ainda grudados à perna. As mulas esquálidas descem a colina em meio ao estalar de madeira e aos gemidos da carroça.
"Temos de levá-lo ao médico", diz Pai."
"Creio que não há outro jeito."
A camisa de Jewel, nos pontos onde toca em suas costas, mancha-se de graxa e se torna preta.
A vida foi criada nos vales. Subiu às colinas atiçada pelos velhos terrores, as antigas luxúrias, os antigos desesperos. Por isso é preciso subir a pé as colinas e descê-las de carro.
Dewey Dell está sentada no banco, o embrulho de jornal no regaço. Quando chegamos ao pé da colina onde a estrada se torna plana entre paredes grossas de árvores, ela começa a olhar tranquilamente para um e outro lado. Afinal, diz: "Tenho de descer."
Pai olha-a, seu perfil escalavrado como que antecipando manifesta contrariedade. Não sofreia as mulas. "Para quê?"
"Tenho de ir ao mato", diz Dewey Dell.
Pai não para as mulas. "Não pode esperar até chegarmos à cidade? Falta só um quilômetro."
"Pare", diz Dewey Dell. "Tenho de ir ao mato."
Pai para no meio da estrada e nós olhamos Dewey Dell descer, levando o pacote. Não olha para trás.
"Por que não deixa os bolos aqui?", pergunto. "Nós cuidaremos bem deles."
Ela desce com decisão, sem nos olhar.
"Ela saberia onde ir, se esperasse até chegarmos à cidade?", pergunta Vardaman. "Dewey Dell, onde é que você ia fazer isto na cidade?" Ela volta-se, baixa o pacote e depois desaparece entre as árvores e as ervas.
"Não demore mais que o necessário", diz Pai. "Não temos tempo a perder."
Ela não responde. Dentro em pouco não conseguimos sequer ouvi-la. "Devíamos ter feito o que Armstid e Gillespie disseram e mandar mensagem à cidade para que cavassem e preparassem tudo", ele disse.
"Por que não mandou?", perguntei. "Podia ter telefonado."
"Para quê?", diz Jewel. "Demônios, não seremos capazes de abrir um buraco na terra?"
Um automóvel sobe a colina. Começa a tocar a buzina e reduz a velocidade. Passa pelo acostamento em marcha lenta, com as rodas na valeta, ultrapassa-nos e prossegue. Vardaman observa-o até que ele sai de vista.
"Ainda falta muito, Darl?", pergunta.
"Não muito", digo.
"Devíamos ter feito aquilo", diz Pai. "Mas eu não queria dever nada a ninguém que não fosse da nossa carne e do nosso sangue."
"Será que não podemos cavar um maldito buraco no chão?", diz Jewel.
"É falta de respeito referir-se desse modo ao túmulo dela", diz Pai. "Nenhum de vocês tem consciência disso. Nunca a amaram de verdade, nenhum de vocês."
Jewel não responde. Continua sentado em atitude ereta; as costas abauladas tentam evitar o contato da camisa. O queixo sanguíneo projeta-se para a frente.
Dewey Dell volta. Nós a olhamos sair do mato, carregando o pacote, e subir à carroça. Usa agora o vestido domingueiro, o colar, os sapatos e as meias.
"Pensei ter-lhe dito para deixar estas roupas em casa", diz Pai. Ela não responde, não olha para nós. Põe o pacote dentro da carroça e sobe. A carroça movimenta-se.
"Quantas colinas faltam agora, Darl?", diz Vardaman.
"Só uma", digo. "A próxima nos deixará dentro da cidade."
A colina é de areia vermelha, bordejada dos dois lados por cabanas de negros; contra o céu correm as linhas telefônicas e o relógio do tribunal ergue-se entre as árvores. Na areia as rodas sussurram, como se a própria terra fizesse "chiu" à nossa chegada. Descemos quando a colina começa a subir. Seguimos a carroça, as rodas sussurrante?, passando pelas cabanas onde rostos aparecem de súbito às portas, com olhos escancarados. Ouvimos vozes repentinas, exclamativas. Jewel esteve a olhar de um lado para outro, mas agora virou a cabeça para a frente e posso ver que suas orelhas adquirem um tom de vermelho mais pronunciado. Três negros caminham à margem da estrada, à nossa frente; dez passos adiante deles, vai um homem branco. Quando passamos pelos negros, suas cabeças voltam-se, de repente, com aquela expressão de choque e repulsa instintiva.
"Grande Deus", diz um. "O que eles levam nesta carroça?"
Jewel gira rapidamente. "Filho da puta", diz.
Ao fazê-lo, defronta o homem branco, que parou. Parece que Jewel ficou cego por um instante, pois é ao homem branco que se dirige.
"Darl", diz Cash de dentro da carroça. Eu me agarro com Jewel. O homem branco recuou um passo, com o rosto ainda tomado pela surpresa; depois, o rosto endurece, a boca se aperta. Jewel inclina-se para ele, com os músculos do queixo embranquecidos.
"Que foi que disse?", pergunta o homem.
"Escute", eu digo. "Ele não quis ofender, mister. Jewel", eu digo.
Quando toco nele, ele salta para o homem. Agarro lhe o braço; lutamos. Jewel não olha para mim. Tenta libertar o braço. Quando olho o homem outra vez, ele tem uma navalha aberta na mão.
"Calma, mister", eu digo. "Ele está seguro. Jewel." "Ele pensa que só porque é da cidade", diz Jewel, arquejando, lutando para se desvencilhar. "Filho da puta", diz.
O homem avança. Começa a me rodear, observando Jewel, a navalha arriada contra a coxa. "Ninguém me chama desse nome", ele diz. Pai desceu e Dewey Dell segura Jewel, puxando. Eu o liberto e encaro o homem.
"Espere", eu digo. "Ele não quis ofender. Está doente; queimou-se ontem à noite, em um incêndio, e não sabe bem o que diz."
"Com incêndio ou sem incêndio, ninguém pode me chamar desse nome", diz o homem.
"Ele julgou que o senhor houvesse dito alguma coisa", eu digo.
"Nunca lhe disse nada. Nunca o vi na minha vida."
"Pelo amor de Deus", diz Pai. "Pelo amor de Deus."
"Eu sei", digo. "Ele não quis ofender. Ele vai se desculpar."
"Então, peça desculpa logo".
"Feche a navalha e ele pedirá."
O homem me olha. Olha para Jewel. Jewel está quieto agora.
"Feche a navalha", digo.
O homem fecha a navalha.
"Pelo amor de Deus", diz Pai. "Pelo amor de Deus."
"Diga-lhe que você não quis ofender, Jewel", eu digo.
"Pensei que ele houvesse dito uma coisa", diz Jewel. "Só porque ele é..."
"Chiu", digo. "Diga-lhe que você não quis ofender."
"Eu não quis ofender", diz Jewel.
"Melhor assim", diz o homem. "Chamar-me de ..."
"Pensa que ele tem medo de chamar-lhe assim?", eu digo.
O homem me olha. "Não foi isto o que eu disse", falou.
"Nem pense nisso", diz Jewel.
"Cale a boca", eu digo. "Vamos. Toque a carroça, Pai."
A carroça se movimenta. O homem fica parado a nos observar. Jewel não olha para trás.
"Jewel teria amassado ele", diz Vardaman.
Estamos perto do alto, onde a rua começa, onde os carros andam para trás e para diante; as mulas puxam a carroça, vencem o alto e entram na rua. Pai para. A rua estende-se à nossa frente, até onde a praça aparece com o monumento diante do tribunal. Subimos novamente enquanto as cabeças se voltam para nós com aquela expressão que já conhecemos. Só Jewel não sobe. Ele não entra na carroça quando esta começa a andar de novo.
"Suba, Jewel", eu digo. "Vamos embora. Vamos de uma vez."
Mas ele não entra. Em vez disso, põe o pé no cubo da roda traseira, agarra-se com uma mão às costas do banco e, enquanto o cubo roda embaixo de sua sola, ele levanta o outro pé e fica acocorado, olhando diretamente à frente, sem se mover, esbelto, com as costas de madeira, como se talhado, de cócoras, em madeira leve.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

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