terça-feira, 1 de outubro de 2024
A Ilha dos Frades
Eu
me senti quase feliz ao avistar a Ilha dos Frades. Uma felicidade que
talvez pudesse ter sido chamada de alívio, como aconteceria várias
outras vezes em minha vida. Por causa da beleza da ilha, fiquei
impressionada com as cores, com o ar, com as novas sensações, com a
esperança de tudo nem ser tão ruim assim. Ao subir as escadas do
porão e ver primeiro o céu azul, depois a luz do sol quase me
cegando, fazendo com que os outros sentidos ficassem mais atentos.
Tive vontade de nascer de novo naquele lugar e ter comigo os amigos
de Uidá. Havia um murmúrio do mar, um cantaréu de passarinhos,
homens gritando numa língua estranha e melodiosa. Nascer de novo e
deixar na vida passada o riozinho de sangue do Kokumo e da minha mãe,
os meus olhos nos olhos cegos da Taiwo, o sono da minha avó. O mar
era azul e nos levava tranquilos até uma ilha que, de longe e de
cima do navio, não parecia ter nada além de árvores e da pequena
faixa de areia branca. Algumas pessoas festejaram, deslumbradas,
esquecendo-se de que iam virar carneiros, mesmo que fossem carneiros
do paraíso. Eu tentava imaginar o que o Akin diria se eu contasse
sobre aquele lugar ou, melhor ainda, se ele visse tal lugar.
Desembarcamos do mesmo jeito que subimos a bordo, mas mandaram os
homens na frente. Alguns saudaram a terra, saudaram a areia, batendo
com a testa no chão. Os muçurumins pareciam não saber para que
lado se virar e rezar, e demoraram olhando o céu até se decidirem,
provavelmente baseados na posição do sol.
O
sol estava quente e em pouco tempo já ardia na pele nua e acostumada
à escuridão do navio, mas que ao mesmo tempo era refrescada pelo
que parecia o vento harmatã, em África. Procurei o branco
que queria a mim e à Taiwo como presente, mas não o encontrei, pois
devia ter desembarcado assim que chegamos. Para falar a verdade, acho
que fiquei feliz por ele não me querer mais, porque assim podia
ficar na ilha, junto com os outros. A Tanisha também estava feliz e
me abraçou. Da praia, o Amari e o Daren acenaram para ela, que
agradeceu por estarem todos vivos. Nós não víamos a hora de
desembarcar também, mas, disseram que antes teríamos que esperar um
padre que viria nos batizar, para que não pisássemos em terras do
Brasil com a alma pagã. Eu não sabia o que era alma pagã, mas já
tinha sido batizada em África, já tinha recebido um nome e não
queria trocá-lo, como tinham feito com os homens. Em terras do
Brasil, eles tanto deveriam usar os nomes novos, de brancos, como
louvar os deuses dos brancos, o que eu me negava a aceitar, pois
tinha ouvido os conselhos da minha avó. Ela tinha dito que seria
através do meu nome que meus voduns iam me proteger, e que também
era através do meu nome que eu estaria sempre ligada à Taiwo,
podendo então ficar com a metade dela na alma que nos pertencia.
O
escaler que carregava o padre já estava se aproximando do navio,
enquanto os guardas distribuíam alguns panos entre nós, para que
não descêssemos nuas à terra, como também fizeram com os homens
na praia. Amarrei meu pano em volta do pescoço, como a minha avó
fazia, e saí correndo pelo meio dos guardas. Antes que algum deles
conseguisse me deter, pulei no mar. A água estava quente, mais
quente que em Uidá, e eu não sabia nadar direito. Então me lembrei
de Iemanjá e pedi que ela me protegesse, que me levasse até a
terra. Um dos guardas deu um tiro, mas logo ouvi gritarem com ele,
provavelmente para não perderem uma peça, já que eu não tinha
como fugir a não ser para a ilha, onde outros já me esperavam. Ir
para a ilha e fugir do padre era exatamente o que eu queria,
desembarcar usando o meu nome, o nome que a minha avó e a minha mãe
tinham me dado e com o qual me apresentaram aos orixás e aos voduns.
Quando
cheguei à ilha, sentei-me na areia e fiquei esperando, nem sei bem o
quê. Um homem me chamou de selvagem em iorubá, e disse para eu
ficar quieta, pois minha vida não valia quase nada. Aproveitei para
pegar uma concha, desfiar algumas linhas do pano que tinham me dado,
amarrar com elas a concha e pendurar no pescoço, onde ficaria
representando a Taiwo enquanto eu não mandasse entalhar uma figura,
como tinha que ser. Eu estava cansada, tinha percorrido uma boa
distância do navio até a praia sem saber nadar direito, e fiquei
feliz quando vi que o padre, ao deixar o navio, entrou no escaler e
tomou a direção contrária à da ilha. A direção na qual eu vi,
ao longe, algumas construções brilhando à luz do sol,
equilibrando-se sobre montanhas, uma cidade que parecia ser muito
maior que Uidá e Savalu juntas. Queria ter ficado olhando para ela,
mas logo as outras mulheres chegaram à praia; fui amarrada junto com
elas e conduzida por um caminho estreito entre muitas árvores,
coqueiros e pássaros. Puxei o colar da Taiwo para fora da roupa para
que ela também visse como tudo era bonito, e nos deixaram em um
barracão que se erguia em imensa clareira, ao lado de mais duas
construções, quase de igual tamanho. O lugar era limpo, com paredes
de barro que subiam até quase o teto de sapé, deixando um vão por
onde entrava uma claridade bonita e o ar fresco, muito diferente do
que estávamos acostumados no navio. Ao entrar, todos se benzeram,
agradecendo por terem chegado vivos. Eu também agradeci,
principalmente aos espíritos dos pássaros e das cobras, que eu
sabia serem os preferidos da minha avó.
Pensei
que se aquela vida fosse a vida que carneiro de gente levava, era o
que eu queria ter sido desde sempre, para sempre, porque os dias
foram bons e até passaram mais rápido do que eu desejava. Éramos
vigiados, mas não muito, porque dali não havia para onde ir, e nem
queríamos. Apesar de não terem desamarrado os homens, para
dificultar alguma tentativa de fuga, podíamos passear pela ilha,
nadar, cozinhar e comer bananas e cocos que nasciam por todos os
lados. Quando começava a escurecer, tínhamos que ir para o
barracão, mas durante o dia éramos livres para fazer quase tudo que
quiséssemos. No barracão, até certa hora, podia haver canto e
dança, e alguns instrumentos foram feitos com o que achávamos nas
andanças durante o dia e levávamos escondido por baixo dos panos.
Pedaços de árvore, cipós, areia, conchas, folhas, pedras, tudo o
que pudesse fazer barulho. Aprendemos também as primeiras palavras
em português, uma língua que desde o início me pareceu uma música
suave, com as palavras cantadas e muito bonitas. Todos os guardas que
nos vigiavam falavam português e uma ou outra palavra nas nossas
línguas, e um deles disse que não era para nos acostumarmos, porque
só ficaríamos na ilha até terem certeza de que não estávamos
doentes, e também para melhorarmos um pouco a aparência. Por causa
disso, gostavam que tomássemos sol e caminhássemos, nos alimentavam
bem e ainda podíamos comer tudo o que encontrássemos pela ilha.
Um
dia nos fizeram cortar os cabelos uns dos outros, nos deram roupas
limpas e disseram que o tempo de vadiagem tinha terminado. Em barcos
separados para os que tinham e os que não tinham marcas de ferro,
fomos levados para a cidade que víamos ao longe e que parecia ser
muito bonita, a que ficava em cima do morro e da qual desde o início
achei que fosse gostar bastante. Cruzando a baía, olhei uma última
vez para a ilha e vi um navio grande ancorando, provavelmente com
outros carneiros, que ocupariam os nossos lugares.
Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor
Karin
Santana,
que trabalha comigo na mesma portaria, perguntou se eu não sentia
saudades de Maracaú. Saí de Maracaú quando tinha dezesseis anos e
nunca havia comido um pedaço de pão, fui comer pão pela primeira
vez aqui. Por que ia sentir saudades de um lugar onde não tinha
sapatos e passava fome?
Mas
foi à forra, hein, Gordo? Agora come pão sem parar, disse Santana,
é por isso que está gordo, as madames aqui não comem pão para não
engordar.
Não
sou madame, respondi, posso engordar quanto quiser, as coisas de que
eu mais gosto são pão com manteiga e doce de leite, vou deixar de
comer isso só para ficar com corpo de madame?
Tirei
uma barra de doce de leite da gaveta e fiquei comendo, que coisa
danada de boa.
Aqui
no prédio fazemos rodízio, de tantos em tantos dias mudamos de
horário. Eu já sabia que no domingo de carnaval ia trabalhar a
noite toda, mas não me incomodava de trabalhar de noite, eu ficava
ouvindo rádio, gosto de ouvir rádio, de ficar ouvindo aqueles caras
conversando, a gente aprende muita coisa, ouvindo rádio.
Uma
mocinha estrangeira chamada Karin veio passar férias na cidade e foi
morar com a família do apartamento 412. Ela era muito bonita, tinhas
pernas grossas e muito brancas, era grandona, apesar de ser ainda uma
menina. Outro dia ela conversava com aquela voz esquisita dela com
sua amiguinha, a Lulu, que mora no 412, e dizia que precisava fazer
um regime porque estava muito gorda. A Lulu respondeu que ia lhe
ensinar um regime e que ela ia perder cinco quilos em uma semana.
Tive
vontade de dizer para Karin, não faça isso, não fique magrela como
a Lulu, que tem um corpo parecido com uma daquelas moças que passam
fome lá na minha terra. Mas não disse nada, a Lulu era boa menina,
podia se aborrecer comigo.
Eu
não tinha mulher, elas não queriam saber de mim, me chamavam pelo
apelido, Gordo. Todo mundo me conhecia como Gordo, e eu era gordo
mesmo, estava pesando noventa quilos e era baixinho. Como não tinha
mulher o jeito era fazer o que fazia, me trancar no banheiro com uma
daquelas revistas de mulher nua jogadas na lixeira e fazer o que
tinha de fazer. O Santana tinha mulher, mas vivia brigando com ela.
Eu gostaria de ter uma mulher, mas não tinha e não brigava com
ninguém e era feliz. Estou economizando um dinheiro, não sei o que
vou fazer com ele, talvez comprar uma casinha no subúrbio quando me
aposentar, eu não quero me mudar desta cidade, a minha casinha pode
ser pequena, mas tem que ter um quintal com um pé de manga, sou
louco por manga.
Então
chegou o domingo de carnaval. Entrei na portaria às dez horas, ia
trabalhar até as seis da manhã de segunda-feira. Pouco depois Lulu
e Karin saíram vestidas com roupas coloridas e pernas de fora. A
roupa de Karin deixava ver também parte dos seios dela, grandes e
bonitos, como tudo nela. Elas estavam muito alegres e Lulu, que sabia
que eu era louco por doce de leite, me deu uma enorme barra de doce
de leite. Vamos a um baile de carnaval, Gordo, disse Lulu.
Comi
todo o doce de leite em menos de meia hora. Que maravilha, aquilo me
deu uma sensação boa, sempre que como doce de leite ou pão com
manteiga eu sinto uma coisa boa no meu corpo.
Eram
mais ou menos duas da manhã quando um táxi parou na porta do prédio
e Karin saltou dele. Entrou cambaleante e eu perguntei, a Lulu não
veio? Karin disse na voz enrolada dela que havia bebido demais e não
estava se sentindo bem.
Então
ela cambaleou mais um pouco e se agarrou em mim. Senti os peitos dela
encostarem no meu corpo, eu nunca tive uma mulher assim tão próximo
de mim e senti o meu pau ficar igual como ficava no banheiro quando
eu fazia aquilo olhando a revista de mulher pelada.
Estou
precisando deitar um pouco, ela disse da maneira estranha dela. Deita
aqui no meu quarto, eu disse. Os porteiros tinham um quarto, que
ficava atrás dos elevadores.
Levei
Karin até o quarto e deitei ela na cama. Suas pernas gordas ficaram
todas de fora e vi a calcinha dela. Uma coisa como um choque elétrico
correu pelo meu corpo e eu me curvei sobre ela, arranquei sua
calcinha e procurei como um louco o lugar onde ia enfiar o meu pau.
Demorei
a achar o buraco, era a minha primeira vez, até que achei e o pau
foi entrando com dificuldade e eu logo gozei como acontecia no
banheiro.
Então
notei que Karin estava chorando.
Desculpa,
eu disse, me perdoa, não conta isso para ninguém, promete.
Ela
disse soluçando alguma coisa que entendi como dar queixa na polícia,
que eu tinha que ser preso.
Me
desculpe, me desculpe, eu disse, não faço mais isso, juro por Deus.
Ela
levantou-se da cama dizendo que eu ia ser preso, que eu era um
criminoso. Eu a segurei e disse, promete, promete, e ela repetia, vai
ser preso, vai ser preso. Eu a agarrei pelo pescoço. Sacudi,
promete, anda, promete.
Quando
ela calou a boca eu a larguei e Karin caiu no chão, com olhos
abertos esbugalhados.
Sentei
na cama. Rezei um padre-nosso, pedindo perdão a Nosso Senhor Jesus
Cristo, mas mesmo assim eu ia para o inferno depois de ter feito
aquilo.
Abri
com dificuldade o pesado tampo de cimento da caixa-d’água do
prédio, que ficava no subsolo. Depois peguei o corpo da menina e
joguei dentro da caixa-d’água e tapei novamente.
Continuei
pedindo perdão a Jesus Cristo enquanto fazia uma mochila com alguma
roupa. Saí do prédio, abandonei o serviço, mais uma coisa errada
que eu fazia.
Fiquei
sentado na porta do banco onde eu tinha a minha poupança, esperando
ele abrir. Ia pegar o dinheiro e fugir. Para onde? Para o inferno eu
sabia que ia, mas isso quando morresse.
Tirei
todo o meu dinheiro da poupança. Se eu fugisse para algum lugar bem
longe e pudesse comprar uma casa com um pequeno quintal com um pé de
manga, talvez o meu sofrimento diminuísse.
Rubem Fonseca, em Ela e Outra Mulheres
Primeira infância
Era
rosa, era malva, era leite,
as
amigas de minha mãe vaticinando:
vai
ser muito feliz, vai ser famosa.
Eram
rendas, pano branco, estrela dalva,
benza-te
a cruz, no ouvido, na testa.
Sobre
tua boca e teus olhos
o
nome da Trindade te proteja.
Em
ponto de marca no vestidinho: navios.
Todos
a vela. A viagem que eu faria
em
roda de mim.
Adélia Prado, em O Coração Disparado
A sentença
Naquela
noite, na hora da ratazana, o imperador sonhou que havia saído de
seu palácio e que, no escuro, caminhava pelo jardim sob as árvores
floridas. Algo se ajoelhou a seus pés e pediu amparo. O imperador
concordou, e o suplicante disse que era um dragão e que os astros
lhe tinham revelado que no dia seguinte, antes .de cair à noite, Wei
Cheng, ministro do imperador, lhe cortaria a cabeça. No sonho, o
imperador jurou protegê-lo.
Ao
acordar, o imperador perguntou por Wei Cheng. Disseram-lhe que não
estava no palácio; o imperador mandou buscá-lo, mantendo-o
atarefado o dia inteiro para que não matasse o dragão, e por volta
do entardecer lhe propôs jogar xadrez. A partida era longa, o
ministro estava cansado e adormeceu.
Um
estrondo sacudiu a terra. Pouco depois irromperam dois capitães que
traziam uma imensa cabeça de dragão ensopada de sangue.
Arrojaram-na aos pés do imperador e disseram: — Caiu do céu.
Wei
Cheng, que tinha acordado, olhou-a com perplexidade e observou: —
Sonhei que matava um dragão assim.
Wu Cheng'En, em Livro de Sonhos, de Jorge Luis Borges
Assinar:
Postagens (Atom)