terça-feira, 29 de outubro de 2024

A leste do Éden | 3


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Quando uma criança descobre pela primeira vez o que os adultos realmente são — quando entra pela primeira vez na sua cabecinha honesta que os adultos não possuem inteligência divina, que seus julgamentos nem sempre são sábios, nem seu pensamento sincero, nem suas frases justas — seu mundo cai num pânico desolador. Os deuses tombaram e toda a segurança se foi. E há algo de certo em relação à queda dos deuses: eles não caem um pouco; eles despencam e se despedaçam ou mergulham fundo no esterco verde. É um trabalho tedioso reconstruí-los; nunca chegam a brilhar mais. E o mundo da criança nunca mais é o mesmo. É uma espécie de crescimento doloroso.
Adam descobriu a verdade do seu pai. Não que seu pai tenha mudado, mas uma nova qualidade foi percebida por Adam. Ele sempre detestara a disciplina, como todo animal normal, mas ela era verdadeira e inevitável como o sarampo, não era para ser negada ou amaldiçoada, apenas odiada. E um dia — foi muito rápido, quase como um estalo no cérebro — Adam percebeu que, para ele pelo menos, os métodos do pai não tinham referência a nada no mundo senão ao próprio pai. As técnicas e o treinamento não eram destinados de modo algum aos meninos, mas só a fazer de Cyrus um grande homem. E o mesmo estalo no cérebro disse a Adam que seu pai não era um grande homem, que ele era, na verdade, um homenzinho muito obstinado e concentrado, dotado de um ego imenso. Quem sabe o que causa isso — uma expressão no olhar, uma mentira descoberta, um momento de hesitação? —, e o deus despenca por inteiro na cabeça de uma criança.
O jovem Adam sempre foi um menino obediente. Algo nele o fazia evitar a violência, a contenda, as terríveis tensões abafadas que podem dilacerar uma casa. Contribuía para a paz que almejava não oferecendo qualquer violência, disputa, e para fazer isso precisava refugiar-se dentro de si, uma vez que existe um pouco de violência em todo mundo. Cobria sua vida com um véu de alheamento, enquanto por trás dos seus olhos quietos uma vida rica e cheia fluía. Isso não o protegia de ataques, mas lhe dava uma certa imunidade.
Seu meio-irmão Charles, apenas um ano e pouco mais novo, cresceu com a agressividade do pai. Charles era um atleta natural, com um senso de oportunidade e uma coordenação instintivos e com a delicada garra do competidor que quer vencer os outros, o que determina o sucesso no mundo.
O jovem Charles ganhava todas as disputas com Adam, quer envolvessem habilidade, força ou inteligência rápida, e ganhava com tanta facilidade que logo perdeu o interesse e teve de dar vazão à sua competitividade com outras crianças. Por isso, uma espécie de afeição se formou entre os dois meninos, mas era mais como uma associação entre irmão e irmã do que entre irmãos. Charles brigava com qualquer garoto que provocasse ou admoestasse Adam e geralmente ganhava. Protegia Adam da dureza do pai com mentiras e até assumindo a culpa. Charles sentia por seu irmão o afeto que se tem pelas coisas desamparadas, como cachorrinhos cegos e recém-nascidos.
Adam olhava do fundo de seu cérebro protegido — pelos longos túneis dos seus olhos — para as pessoas do seu mundo: seu pai, uma força da natureza perneta a princípio, instalada justamente para fazer meninos pequenos se sentirem menores e meninos burros se darem conta da sua burrice; e depois — quando o deus desabou — via seu pai como o policial nato, uma autoridade que podia ser evitada ou enganada, mas nunca desafiada. E através dos longos túneis dos seus olhos Adam via seu meio-irmão Charles como um ser brilhante de outra espécie, dotado de músculos e ossos, velocidade e prontidão, situado num plano diferente, para ser admirado como se admira o perigo liso e preguiçoso de um leopardo negro, de modo algum comparável a nós mesmos. E jamais ocorreu a Adam fazer do irmão o seu confidente — contar-lhe seus anseios, os sonhos nebulosos, os planos e os prazeres silenciosos que se ocultavam no final do túnel dos olhos — em vez de partilhar seus pensamentos com uma árvore bonita ou com um faisão em voo. Adam apreciava Charles como uma mulher aprecia um grande diamante, e dependia do irmão assim como uma mulher depende do brilho do diamante e da segurança que o seu valor lhe traz; mas amor, afeto e empatia eram inimagináveis.
Em relação a Alice Trask, Adam ocultava um sentimento que se aproximava de uma cálida vergonha. Ela não era sua mãe — sabia disso porque lhe contaram muitas vezes. Não através de coisas ditas, mas pelo tom com que outras coisas eram ditas, sabia que tivera uma mãe e que ela havia feito algo de vergonhoso, como esquecer de recolher as galinhas ou errar o alvo na prática de tiro no quintal. Adam achava às vezes que se pudesse apenas descobrir o pecado que ela havia cometido, e por quê, ele o cometeria também — e não estaria ali.
Alice tratava os meninos com igualdade, dava-lhes banho e os alimentava, e deixava o resto por conta do pai, que fizera saber com clareza e propósito que treinar os meninos física e mentalmente era o seu território exclusivo. Mesmo elogios e reprimendas ele não delegava. Alice nunca se queixava, brigava, ria ou chorava. Sua boca fora reduzida a uma linha que nada escondia e nada oferecia também. Mas certa vez, quando Adam era bem pequeno, ele entrou silenciosamente na cozinha. Alice não o viu. Cerzia uma meia e sorria. Adam afastou-se secretamente e saiu da casa até o quintal, escolhendo um local protegido atrás de um toco de árvore que conhecia bem. Enfiou-se fundo entre as raízes protetoras. Adam ficou tão chocado como se a tivesse encontrado nua. Nervoso, a respiração soava em sua garganta. Porque Alice estava nua — ela havia sorrido. Quis saber como ela ousara entregar-se a tanta lascívia. E desejou-a com um anseio apaixonado e caloroso. Não entendia por que, mas o longo tempo sem que o pegassem nos braços, embalassem, acariciassem, a fome de seio e de mamilo, a maciez de um colo e a voz sussurrada do amor e da compaixão, e o doce sentimento de ansiedade — tudo isso fazia parte da sua paixão e ele não sabia, porque desconhecia que tais coisas existissem, então como podia sentir falta delas?
Naturalmente, ocorreu-lhe que poderia estar errado, que alguma sombra perdida tinha caído sobre seu rosto e perturbado a sua visão. E então voltou à imagem nítida na sua cabeça e viu que os olhos sorriam também. A luz distorcida podia ocasionar uma ou outra coisa, mas não as duas.
Vigiou-a então, como um caçador, como fizera com as marmotas no outeiro quando dia após dia se deitou inanimado como uma jovem pedra para observar as marmotas velhas e desconfiadas trazerem seus filhotes para o sol. Espionava Alice, escondido, insuspeitado, com o canto do olho, e era verdade. Às vezes, quando estava sozinha e sabia que estava sozinha, ela permitia que seu pensamento brincasse num jardim e sorria. Era maravilhoso ver a rapidez com que podia enterrar o seu sorriso, como as marmotas enfiavam os filhotes na toca.
Adam escondeu seu tesouro bem no fundo dos seus túneis, mas resolveu pagar pelo seu prazer com algo. Alice começou a encontrar presentes — na sua cesta de costura, na bolsa surrada, debaixo do travesseiro — duas ramas de canela, uma pena do rabo de um azulão, meio bastão de lacre verde, um lenço roubado. No começo, Alice ficou espantada, mas depois passou, e quando encontrava algum presente inesperado o sorriso do jardim se abria e desaparecia como uma truta atravessa uma lâmina de sol num lago. Não fazia perguntas e não fazia comentários.
Sua tosse piorava muito à noite, era tão alta e perturbadora que Cyrus teve de colocá-la num outro quarto, ou não conseguiria dormir. Mas ele a visitava com muita frequência — saltitando sobre seu pé nu, apoiando-se com a mão na parede. Os meninos podiam ouvir o barulho do seu corpo através da casa enquanto ele manquejava até o quarto de Alice e de volta ao seu.
À medida que crescia, Adam temia uma coisa acima de qualquer outra. Receava o dia em que fosse levado e alistado no Exército. Seu pai nunca o deixava esquecer que tal ocasião chegaria. Falava nela frequentemente. Era Adam quem precisava que o Exército fizesse dele um homem. Charles já era quase um homem. E Charles era um homem, e um homem perigoso, mesmo aos quinze anos, quando Adam tinha dezesseis.

John Steinbeck, em A leste do Éden

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