Dona
Carmen, a senhora faz sopa maggi, a de pacotinho?, perguntou Isora
para a velha. Não, minha filha, por quê? Diz a minha avó que a
sopa maggi é sopa de putas. Ah, minha filha, sei lá eu. A sopa que
faço eu faço com as galinhas que tenho. Dona Carmen estava meio
tantã, mas era boa. Quase todo mundo a menosprezava, porque, como
dizia a minha avó, ela fazia coisas que eram o fim da picada. Dona
Carmen se esquecia de quase tudo, passava longas horas caminhando e
repetindo rezas que ninguém conhecia, tinha um cachorro com os
dentes de baixo saltados pra fora, saltados pra fora como os de um
camelo. Vira-lata, vira-lata, chispa daqui e que o diabo te carregue,
ela dizia. Às vezes pousava a mão na cabeça dele com carinho;
outras, gritava fora daqui, cachorro, fora daqui, cão dos infernos.
Dona Carmen se esquecia de quase tudo, mas era uma mulher generosa.
Gostava que Isora a visitasse. Morava pra baixo da igreja, numa
casinha de pedras pintadas de branco com a porta pintada de verde e
as telhas velhas e cheias de limo e de lagartos e de lona de sapatos
trazidos de Caracas, Venezuela, e de verodes grandes como
arvorezinhas. Dona Carmen se esquecia de tudo, menos de descascar as
batatas, isso sim ela sabia, descascava em círculos, punha as
batatas num canto e com uma faca de cabo de madeira tirava a casca
delas como se fosse um enorme colar. Dona Carmen fazia batatas fritas
com ovos para lanchar. Isora levava as batatas e os ovos da venda da
sua avó e dona Carmen guardava um pouquinho pro lanche de Isora e se
eu ia junto, ela também me dava. Ela me dava, mas de mim dona Carmen
não gostava tanto quanto gostava da Isora, isso eu já sabia. Isora
sabia falar com as pessoas velhas. Eu me limitava a ouvir o que
diziam. Vocês querem um tiquinho de café, minhas filhas? Não me
deixam beber café, respondi. Eu, sim, um tiquinho, disse Isora. Só
um tiquinho. Ela, sempre só um tiquinho. Experimentava tudo. Uma vez
comeu comida de cachorro da que havia na venda para saber como era.
Ela experimentava tudo e depois, se fosse necessário, vomitava. Eu
tinha medo de que os meus pais sentissem na minha boca o cheiro de
café e me pusessem de castigo, mas Isora nunca tinha medo. Não
tinha medo, embora a avó lhe ameaçasse dar uma surra. Ela pensava
que a vida era uma só e que era preciso experimentar um tiquinho
sempre que tivesse a chance. E um tiquinho de licor de anis, minha
filha? Só um tiquinho. Só um tiquinho. Só um tiquinho, dizia.
Isora
bebeu a gotinha de café que restava na xícara da qual dona Carmen
estava bebendo e, sem rodeios, esticou o braço para pegar o copinho
que a velha tinha servido com Anís del Mono. Isora arrotou, arrotou
umas cinco vezes seguidas. E depois bocejou. E nesse momento dona
Carmen a segurou pelo queixo e olhou nos olhos dela, aqueles olhos
verdes feito uvas verdes. Escavava os seus olhos lacrimosos como quem
tira água de uma galeria. A velha ficou assustada: minha filha, você
sabe se alguém tem inveja de você? Isora permaneceu imóvel. Por
quê, dona Carmen? O que aconteceu? Minha filha, você tem
mau-olhado. Vá, pelo amor de Deus, à casa da Eufracia, pra ela te
benzer. Conte isso pra sua avó, que ela sabe dessas coisas e que ela
te leve pra benzer.
Ao
sair pela porta, estava passando a novela das cinco. A essa hora do
dia, uma camada enorme de nuvens pousava sobre os telhados das casas
do bairro. Não exibiam mais Pasión de Gavilanes, agora
exibiam La mujer en el espejo. A protagonista era a mesma
mulher que fez Gimena na
Pasión, mas Isora e eu não gostávamos muito dela. Era junho,
no bairro ainda não tinham posto as bandeirinhas coloridas das
festas e ainda demoraria muito para que pusessem. Da janela da
entradinha de dona Carmen dava pra ver o mar e o céu. O mar e o céu
pareciam a mesma coisa, a mesma massa acinzentada e espessa de
sempre. Era junho, mas podia ter sido qualquer outro mês do ano, em
qualquer outra parte do mundo. Podia ter sido numa cidadezinha
montanhosa do Norte da Inglaterra, um lugar em que quase nunca se
visse o céu aberto e azul, azul, um lugar em que o sol fosse na
verdade uma recordação distante. Era junho e fazia apenas um dia
que as aulas tinham terminado, mas eu já estava sentindo essa
exaustão imensa, essa tristeza de nuvens baixas sobre a cabeça. Não
parecia verão. O meu pai trabalhava na construção e a minha mãe
limpando hotéis. Eles trabalhavam no Sul e às vezes a minha mãe
também ia limpar as casas de veraneio dos arredores, a minha casa
ficava bem pertinho, em El Paso del Burro. Os meus pais saíam cedo
pro Sul e voltavam tarde. Isora e eu ficávamos trancadas num
conjunto de casas, pinheiros e ruas íngremes no alto do bairro. Era
junho e eu estava sentindo tristeza. E agora, agora também medo.
Quando
saímos pela porta da dona Carmen, um verme percorreu a minha
garganta. Esse verme preto me dizia que eu já tinha, alguma vez,
invejado Isora. Eu gostava da cor dos seus cabelos e dos seus braços.
Gostava da sua letra. Ela fazia um g com um rabo gigante, que não
permitia que se entendesse o que dizia a linha de baixo. Eu gostava
dos seus olhos e de muitas outras coisas. Invejava o seu jeito de
falar com as pessoas mais velhas. Ela era capaz de interromper as
conversas e dizer não, a Moreiva é filha da Gloria, a da esquina,
não da outra Gloria. Invejava os seus peitinhos redondos e macios
feito uma jujuba com açucarzinho branco, embora ela mesma não
gostasse deles. E porque ela tinha ficado mocinha e porque tinha
pelos na perereca. Isora tinha bastante pelo preto, duro e pontudo
como o gramado falso das casas de veraneio. Eu invejava ela por causa
do seu cartucho de jogos para o gameboi, pirateado por um primo seu
de segundo grau que mexia com informática e morava em Santa Cruz.
Invejava ela porque o cartucho tinha o jogo do Hamtaro e eu adorava o
jogo do Hamtaro.
Isora
não tinha mãe. Vivia com a sua tia Chuchi e com a sua avó Chela, a
dona da venda do bairro. De ela não ter mãe, disso eu não tinha
inveja, pra falar a verdade. De ela não ter mãe e de ser cuidada
pela tia e pela avó eu não tinha inveja, pra falar a verdade. Do
que eu então tinha medo, na verdade, era de que dissessem a ela que
eu lhe joguei mau-olhado. Chela, a avó da Isora, era uma mulher que
acreditava muito nessas coisas. Se ficasse sabendo que eu tinha feito
isso à neta, ia esmagar a minha cabeça. A avó da Isora era uma
mulher gorda e bigoduda. Gorda e bigoduda e briguenta. Seu verdadeiro
nome era Graciela, mas todo mundo a chamava de Chela, a da venda. Era
muito religiosa, mas muito boca suja. E por ser tão religiosa também
a chamavam de Chela, a santa. Chela, a santa, porque todo o tempo
livre que tinha, que era bem pouco, ela dedicava a rezar e a falar
com o padre e a decorar a igreja com orelhas-de-burro e samambaias
que ela cortava do lado de fora da casa, além de véu-de-noiva, véu
como penugens brancas caindo do céu. Mas, por outro lado, a avó de
Isora adorava explicar a todas as meninas coisas sobre gordura. Ou,
antes, sobre magreza. Para ficar magra é preciso comer de um prato
pequeno, ela dizia, e para ficar magra é preciso comer menos batata
frita, e uma batata frita é como comer duas batatas cozidas, e o que
essas cretinas têm que fazer é parar de comer tanta guloseima, e o
que vou dar a essa menina é uma surra de cinta pra ela deixar de
comer merda, e eu mantenho a menina na dieta porque ela já está
ficando enorme, e se eu deixar ela vira uma bola, e dá-lhe comer
jujubas e engordar feito um animal, e come-come e depois lá vem a
caganeira e ela passa três dias no banheiro feito um tabobo, e
come-come e depois ouço ela botando pra fora, a safada põe tudo pra
fora e com caganeira, e come e caga e põe pra fora e depois se enche
de fortasec como se fossem cápsulas de jujubas, e come e caga e caga
e caga e põe pra fora que nem um bicho e quando se espreme que
parece que não cabe mais nem mais um fiapo pelo cu ela põe os
supositórios pra cagar outra vez. E vai me ficar doente e vai me
adoecer de tanto comer, essa menina, essa garota dos infernos.
Isora
odiava a avó com todas as forças. No colégio uma vez ela aprendeu
que bitch significava puta, e desde então sempre que a avó lhe
dizia leva pra dona Carmen os ovos e as batatas, é pra cobrar da
mulher, traz duas caixas de músculo pra moça aqui, quatro pães,
duzentos gramas de queijo amarelo, duzentocinquenta gramas de queijo
de cabra, põe um pedaço de goiabada pra moça aqui, um saco de
batatas, sobe uns camarões, cobra do estrangeiro, que você sabe
falar inglês, eu só sei falar em bom castelhano, Isora respondia
certo, bitch, estou indo, bitch, está bem, bitch, o que quiser,
bitch, obrigada, bitch, alguma coisinha mais, bitch? E a avó olhava
meio desconfiada, mas Isora dizia que bitch significava avó em
inglês.
Na
venda também trabalhava Chuchi. Chuchi, a tia da Isora, a segunda
filha da Chela. Todo mundo chamava Chuchi de Chuchi, mas ninguém
sabia qual era o seu nome de verdade. Chuchi tinha os olhos verdes
como Isora, mas com manchas como de café derramadas na parte branca.
Como manchas de café no fundo da xícara. Chuchi era alta, magra,
pernas compridas, chupada, seca. Não se parecia com Isora, a não
ser pelos olhos. Nunca ninguém a tinha visto com namorado e ela não
tinha filhos. Chuchi também era muito de estar na igreja, mas o seu
sonho não era ser santa, como a mãe, e sim vendedora. Durante um
tempo ela vendeu maquiagem para a cara e cremes e sabão para o
cabelo e sabão para o corpo para as vizinhas do bairro. Andava com
sua roupa de secretária, com um bleiser verde, como os seus olhos
verdes, e uma saia verde, como os olhos verdes da Isora, e umas botas
marrons com salto quadrado e uma pasta com as revistas da Avon nas
quais mostrava os produtos, casa por casa. A mãe dizia às pessoas
que a filha estava se estragando, pois estava toda oferecida, o dia
todo pelas veredas.
Subimos
pela rodovia até passar na frente da venda. Isora não parou para
falar com a avó. Aonde vocês estão indo? Não conseguem parar em
casa?, gritou Chela no balcão cheio de gente. A única coisa que
fazem é ficar bisbilhotando poraí? Isora continuou subindo a
ladeira como se nada. Eu a segui e olhei para Chela e Chuchi. Chuchi
cortava embutidos com a cabeça baixa, escutando as rezas da Chela,
como se tivesse um peso pendurado no pescoço, a presença pesada da
mãe feito um falcão pousado nos ossos das costas. Vamos pra casa da
Eufracia, pra ela me benzer, essa bitch não vai ficar sabendo, me
disse Isora. E de novo o verme preto. Eu sabia bem pouco sobre o
mau-olhado. Sabia que nos bebês de colo, que são avermelhados e
carecas e feios e sem dentes e com a cabeça cheia de crostas, punham
um lacinho vermelho no carrinho porque as mães e as avós tinham
medos. Medos, dizia vovó, do mau-olhado. Se as gentes olhavam os
bebês de colo por muito tempo nos olhos ou lhes diziam muitas coisas
bonitas, que bebê tão bonito, deus o guarde, deus o guarde, quanto
tempo tem, que bonito, as mães e as avós ficavam mais duras que a
perna de um morto. Quando a vovó via um bebê recém-nascido, a
primeira coisa que fazia era fazer-lhe o sinal da cruz e repetir Deus
o guarde e o abençoe dos pés à barriga. Dos pés à barriga e daí
pra cima nada, pensava eu. Por isso eu achava que o mau-olhado era
jogado nessa parte do corpo, na região da perereca e da bunda e dos
pelos das pernas, eu queria que a minha mãe me depilasse e ela não
me depilava. Isora e eu fazíamos muitas coisas nessa região do
corpo, dos pés até a barriga. Sobretudo na região da perereca.
Então talvez o mau-olhado tivesse a ver com isso. Mas fiquei quieta
e não disse nada, fiquei quieta e continuamos a andar.