Realmente,
como vocês devem estar cansados de me ver repetir, não se pode
querer tudo neste mundo. Há gente, contudo, como eu, que continua
neuroticamente tentando. E não consegue, claro. Por exemplo, aqui
com o juízo coçando, eu ia falar mal do governo outra vez. Como
também já disse, não é que eu goste de falar mal do governo. Pelo
contrário, queria falar bem, mas sabem como é, às vezes fica
difícil (lá ia eu de novo, mil perdões). Pronto, não vou falar
mal do governo. Mas aí outro problema que me aflige se apresentou,
como é também freqüente: um dos meus acessozinhos de
pernosticismo, no título acima, com o uso de uma palavra que nem
mesmo está registrada nos dicionários que consultei, embora sua
formação me pareça tão legítima quanto a de “imexível”.
Procurei esquivar-me, mas não deu e me redimo parcialmente,
explicando que “iatro” é um elemento de composição que vem do
grego e quer dizer “médico”. Por exemplo, “iatrogênico”,
palavra que existe mesmo, qualifica uma enfermidade ou anomalia
provocada pelo tratamento, ou seja, pelo médico. Não sei nem por
que ela existe, pois ninguém ignora que médico não comete esse
tipo de erro, como, segundo me dizem, costuma ser a posição dos
conselhos regionais de medicina diante de denúncias — sempre
calúnias geradas por pacientes irresponsáveis e, notadamente, pela
imprensa, como todas as desgraças e calamidades.
Preâmbulo
concluído, apresso-me a apresentar-lhes meu grande amigo Toinho
Sabacu, conceituado cidadão de Itaparica, de quem nunca lhes falei
antes devido a injusto esquecimento, pois ele, por suas inúmeras
boas qualidades, já de muito merecia ser mais conhecido. E também
porque, apesar de sermos amigos, ai de nós, há mais de 60 anos, não
prestara suficiente atenção a certas colocações suas (vejam como
posso não ser craque, mas dá para manejar o linguajar
contemporâneo), que considero educativas, relevantes e de acentuado
interesse público. No exemplo que vou narrar-lhes, as utilidades
práticas e filosóficas são evidentes e devem interessar bastante
aos que se preocupam com a saúde dos brasileiros, na vanguarda dos
quais está o governo (pronto, lá vou eu novamente; por favor,
ignorem esta última ironia).
Toinho
é, que eu saiba, o autor da metáfora da catraca, alusão ao
inevitável transcurso de todos nós desta para melhor. Ele sabe que
ninguém escapa de passar pela catraca e, da mesma forma que a
maioria, deseja adiar esse momento, digamos, desagradável, o máximo
possível. É, aliás, da ala radical, não quer nem ouvir falar na
catraca. Cuida-se com seriedade, não fuma, só bebe um copinho de
cerveja de caju em caju, não come o que faz mal e, enfim, obedece
escrupulosamente às recomendações aplicáveis à preservação da
boa saúde. E oferece conselhos e exemplos práticos sempre que surge
uma ocasião oportuna. Como os que expôs há pouco tempo, em relação
a adivinhe o quê. Claro, exame de próstata, ato execrado pelos
varões em geral e especialmente os itaparicanos, eis que a machidão
altiva por lá impera, em grau ainda maior que entre outras
coletividades. Ele me contou por que, apesar de seus princípios, a
lembrança da catraca o leva a fazer o exame com resignação e
assiduidade, sem receio ou acanhamento.
— O
médico me disse — disse ele — uma coisa importante. Ele queria
fazer o exame, mas mandava minha natureza perguntar se não dava para
quebrar o galho sem precisar enfiar o dedo num orifício de grande
privacidade, em que eu nunca aprovei enfiar nada, pelo menos no meu.
Aí ele me explicou que o exame do PSA era uma indicação
importante, mas insuficiente, por isso e por aquilo. E, no que se
refere à ultrassonografia, ele me elucidou: “Seu Antônio, vamos
comparar a ultrassonografia a uma fotografia. Ela me dá uma visão
de sua próstata, do tamanho a outros aspectos, é mais ou menos como
uma foto. Mas, se eu puser um grãozinho de areia da praia na sua mão
e fizer a foto dela, o senhor não vai enxergar o grãozinho. No
entanto, se o senhor passar o dedo na mão, vai sentir alguma coisa,
por mais miudinha que seja. É por isso que, apesar de compreender e
respeitar a sua posição, enfiar o dedo é indispensável para um
exame correto.”
— E
o que foi que você respondeu?
— Ah,
então pode até enfiar os cinco, doutor. Eu sou um homem de decisão
e não é assim que eu vou dar moleza para a catraca.
Impressionado
com a destemida atitude, passo adiante para o distinto leitor que
ainda reluta e para as pessoas a ele afeiçoadas. É de fato rematada
frescura esse negócio de não permitir o exame da dedada,
catraquismo explícito, para não dizer pior. E acrescento um
complemento adicional à lição. Outro amigo nosso, viúvo e em seus
galantes 66 anos, tem-se recusado a fazer uma operação na próstata,
porque traz a possibilidade de torná-lo impotente.
— Que
é que você está me dizendo? — espantou-se Toinho. — Ele não
vai fazer a operação com medo disso? E ainda mais com 66 anos?
— Pois
é.
— Interessante
essa, muito interessante. Agora eu lhe pergunto, ele quer morrer com
uma ereção, é isso? — Indagou ele, sem propriamente usar a
expressão “com uma ereção”, mas outra, essa mesma em que vocês
estão pensando. — É, bonita morte. Caixão especial abaulado no
meio, algumas pessoas querendo conferir, coisa fina mesmo, uma
beleza. E de fato não se pode negar que tem uma vantagem nisso.
— Vantagem,
que vantagem?
— Ele
vai poder transar com todas as caveirinhas do cemitério, não deve
ser isso que ele está querendo?
João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite
Nenhum comentário:
Postar um comentário