Tango
de Nancy
(Chico
Buarque e Edu Lobo – 1985)
Quem
sou eu para falar de amor
Se
o amor me consumiu até a espinha
[...]
Quem
sou eu para falar de amor
Se
de tanto me entregar nunca fui minha
O
amor jamais foi meu
O
amor me conheceu
Se
esfregou na minha vida
E
me deixou assim
Homens,
eu nem fiz a soma
De
quantos rolaram no meu camarim
Bocas
chegavam a Roma passando por mim
Ela
de braços abertos
Fazendo
promessas
Meus
deuses, enfim!
Eles
gozando depressa
[...]
Eles
querendo na hora
Por
dentro, por fora
Por
cima e por trás
Juro
por Deus, de pés juntos
Que
nunca mais
Analisaremos
aqui o “Tango de Nancy” à luz do contexto dramático-musical
para o qual ele foi concebido. Julgamos essa perspectiva interessante
não por estarmos à procura de um sentido original da canção, mas
porque analisá-la na peça teatral nos proporciona descobrir
diferentes efeitos de sentido que não aparecem na canção veiculada
em seus meios convencionais de circulação (rádio, internet, MP3,
CD etc.). Submeteremos a análise desses efeitos a um foco que será
nosso principal recorte metodológico aqui: centraremos o exame na
figura do enunciador feminino (quem fala na canção). De antemão,
advertimos que esse eu, que em literatura tem sido chamado, a nosso
ver inapropriadamente, de eu lírico, não será pensado como um
núcleo fechado e concentrado, exibindo, por meio da canção, seu
“ponto de vista feminino” ou a voz de alguém representante de
uma categoria genérica (mulher) ou profissional (prostituta). Ao
contrário, esse eu será pensado como manifestação material de uma
dispersão subjetiva complexa. Dispersão que se dá em função
mesma dessa materialização (na canção e no texto da peça(1)).
Acreditamos que uma análise do “Tango de Nancy” a partir de seu
contexto dramático-musical nos possibilita entender alguns aspectos
dessa dispersão. O instrumental teórico da Análise do Discurso
(Maingueneau(2), Foucault(3), Bakhtin(4), embora não explicitado,
foi utilizado na análise que aqui apresentamos.
O
“Tango de Nancy” foi composto por Chico Buarque e Edu Lobo para a
peça dramático-musical O corsário do rei, de autoria de
Augusto Boal(5). A peça foi encenada pela primeira vez em 18 de
setembro de 1985, no Teatro João Caetano (Rio de Janeiro), com Marco
Nanini, Lucinha Lins, Nelson Xavier, dentre outros, e sob direção
do autor. O próprio Edu Lobo foi responsável pela direção musical
da peça, que teve a orquestração de Eduardo Souto Neto e a
regência de Maurício Maestro. No mesmo ano, a canção é lançada
no LP homônimo da peça, de Chico Buarque e Edu Lobo, na voz de
Lucinha Lins, ela que interpretou, na montagem de 1985, o papel de
Nancy, personagem que canta o tango.
Um
ligeiro resumo da peça faz-se necessário aqui. O corsário do rei é
uma obra metadiscursiva, isto é, que remete ao seu próprio campo
discursivo a cena dramatúrgica. A cenografia principal é a de um
bar portuário no Rio de Janeiro do começo do século XIX. O bar, em
situação de insolvência financeira, é posto à venda pela
proprietária e esta tenta convencer um negociante a comprá-lo. A
transação é presenciada por prostitutas e um professor de História
que frequentam o estabelecimento e, por vezes, interferem na
conversa. De repente, revela-se que a clientela de bêbados está
revoltada com a suspensão do crédito da cachaça e ameaça invadir
para roubar a bebida. Um grupo de bêbados de fato invade o bar,
armados de paus e pedras. A polícia é chamada. Porém o policial
que chega alerta, morrendo de medo, sobre a chegada de uma frota de
navios com comerciantes estrangeiros. Nesse ínterim, os bêbados
desistem do assalto ao bar e decidem unir-se à patroa e ao
negociante para reagir contra a invasão. Os “invasores”, porém,
estão em missão de paz e propõem uma festa na sua chegada. É a
propósito dessa festa que o professor sugere aos presentes naquele
momento no bar a encenação de uma peça de teatro sobre outra
invasão ocorrida um século antes. Essa cenografia, que a partir de
então vai se desenrolar, a que chamamos secundária, na verdade vai
ser frequentemente entrecortada pela cenografia principal, de modo
que os personagens desta não apenas atuam como personagens daquela,
mas também dialogam e tentam interferir nela, mediados pelo
professor. É apenas por ela ser derivada da primeira que chamamos
secundária, porque, de fato, é ela que prevalece e inclusive dá
nome à peça.
Nessa
cenografia superposta, os personagens representam, começando pela
morte, vários momentos da vida de René Duguay-Trouin, corsário
francês que viveu entre os anos l673 e 1736:
• No
leito de morte (III)
• A
infância (IV)
• Primeiro
encontro com o Rei Luís XIV (V)
• As
primeiras aventuras no mar (VI)
• A
prisão em Plymouth (Inglaterra) (VII)
• A
morte de Étienne, seu irmão (VIII)
• As
guerras no mar (IX)
• A
conquista do apoio do Rei para a invasão do Brasil (X)
• A
invasão do Rio de Janeiro (XIII)
Um
dado histórico aqui é importante para melhor compreender-se a
história encenada: os corsários eram navegadores armados que, entre
os séculos XVI e XIX, vendiam seus serviços de pilhagem e combate
navais às diversas nações da época. Diferentemente dos piratas,
que agiam por conta própria, os corsários portavam uma carta
fornecida pelo rei e, por meio desse documento (frequentemente
falsificado), eles eram reconhecidos como força militar auxiliar do
país. Desse modo, se fossem capturados, exibiam sua carta real e
eram considerados prisioneiros de guerra, recebendo tratamento
diferenciado e, muitas vezes, escapando da condenação à morte
reservada aos piratas. Um desses corsários, René Duguay-Trouin,
conseguiu, em 1711, invadir a cidade do Rio de Janeiro, sendo dessa
invasão que trata a encenação encaixada na peça O corsário do
rei.
Voltando
a esta última, à peça principal, é importante notar que Nancy não
é diretamente sua personagem, e sim da peça encaixada, que é, a um
só tempo, concebida e encenada pelos personagens da peça-mãe. Ela
aparece unicamente na cena VII (“A prisão em Plymouth”),
considerando a divisão cênica da peça maior, e na quinta cena da
representação secundária. Nesta, conta-se que, tendo se tornado
corsário muito jovem, Duguay-Trouin é derrotado pelos ingleses logo
na primeira batalha naval. Preso, ele é enviado para Plymouth,
cidade inglesa onde vive e trabalha Nancy. Aí ela é criada de um
hotel utilizado como prisão, para onde eram enviados prisioneiros de
guerra antes de serem conduzidos ao tribunal. Sua missão: cuidar dos
prisioneiros “fazendo comida, lavando prato, fazendo cama, cuidando
ferida...(6)”.
A
protagonista da canção da peça, portanto, é inglesa, e não
francesa, como poderíamos julgar à primeira vista, levados pelas
várias referências feitas ao universo francês pela peça e pelo
próprio gênero da canção (marcado em seu título), julgamento
reforçado pela relativa reputação da cidade francesa de Nancy e
pelo título do famoso longa-metragem “O último tango em
Paris”. Assim, o que está em análise neste momento é o “Tango
de Nancy” ([‘nænsi] ou, aportuguesadamente, “nénci”) e não
o “Tango de Nancy” ([nã’si] ou “nansí”). Eis o primeiro
elemento dessa identidade subjetiva que estamos aqui investigando.
Elemento a não se desprezar, pois, no decorrer da cena VIII, sua
aparição, seguida pela execução do tango e por seu diálogo com o
“público” (personagens da cena principal), marca um deslocamento
da cenografia da França para a Inglaterra e consequentemente a
apresentação de um segundo ponto de vista sobre os acontecimentos
relatados. Tendo sido apresentada nas cenas anteriores a guerra da
França contra a Inglaterra do ponto de vista dos representantes das
classes dominantes francesas (a nobreza, o clero, a burocracia), que,
diante da iminência da derrota, decidem “privatizar a guerra”,
Nancy apresenta, nessa cena, não o ponto de vista das classes
dominantes inglesas, mas o seu ponto de vista enquanto vítima
indireta dessa privatização. É uma mudança de cenografia, mas é
também uma mudança de foco, que sai do macro para o micropolítico.
Com efeito, a primeira fala de Nancy é o tango, que representa ele
mesmo mais duas cenas: uma cena definida pelo gênero musical (cena
genérica), em que Nancy aparece como cantora de tango, e uma
cenografia que pode ser classificada como um “desabafo” de uma
mulher que se sente sufocada pelo excesso. A primeira marca uma
identidade fugaz (que dura os poucos minutos de execução do tango),
mas que, de certa maneira, informa sobre o estado emocional e a
condição social de Nancy. Dado que o tango enquanto gênero musical
surgiu no final do século XIX e não existia portanto nem no período
da cenografia da peça-mãe (início do século XIX) nem muito menos
no período da cenografia da peça encaixada (início do século
XIII), a escolha de tal gênero musical representa uma licença
artística que certamente tem o propósito de captar o etos de
gravidade, exasperação e dramaticidade que o tem caracterizado. De
fato, a fala da personagem mantém esse etos nos momentos que sucedem
a execução do tango, já que ela, dirigindo-se aos expectadores
(personagens da cena primária), explica didaticamente, também como
um desabafo, o motivo “macropolítico” do seu infortúnio. Por
outro lado, também a cena genérica contribui para o clima de
excitação masculina (e também feminina) com a presença da mulher
e para a sua entrada “em grande estilo” na peça. Enfatizamos a
palavra “presença” porque, embora haja personagens mulheres na
peça principal, elas são mulheres sem presença, tanto que
não têm nome, sendo identificadas no texto dramático por epítetos
(“Patroa”, “Tísica”, “Gorda”, “Cabisbaixa”). Assim,
um pouco antes da entrada de Nancy cantando o tango, os
personagens-espectadores reclamam do personagem-dramaturgo justamente
a presença de uma mulher:
BÊBADO
VALENTÃO
É
muito moralista essa peça, o senhor não acha?
BÊBADO
MIÚDO
Tem
gosto pra tudo...
TÍSICA
Não
tinha mulher nesse barco?
CABISBAIXA
Umas
profissionais... Podiam ter serventia…
GORDA
Com
tantos homens tanto tempo em tanto mar... tão sozinhos...(7)
A
outra cena evocada pelo tango funciona como uma pergunta retórica
que sintetiza a história micropolítica de Nancy. Trata-se de uma
cenografia que simula uma réplica conversacional (resposta a alguém
que supostamente teria solicitado ao enunciador “falar de amor”)
e que se constitui estruturalmente de duas cenas encaixadas: uma se
põe no presente da enunciação e a outra se põe no pretérito,
seja perfeito, seja imperfeito, funcionando como pano de fundo
“argumentativo”, isto é, que justifica, explica ou contextualiza
a cena do presente.
Assim,
a canção se inicia a partir de uma frase no presente (“Quem sou
eu para falar de amor”) que é articulada por meio da partícula
argumentativa “se” à seguinte, que se situa em tempo anterior à
enunciação (“Se o amor me consumiu até a espinha”), produzindo
um esquema, recorrente em toda a canção, que poderíamos exprimir
como: “como X (presente), se Y (passado)?”. De fato, se
observamos as frases seguintes da primeira estrofe, vemos que mais
uma vez o esquema prossegue, porém articulado de modo
gramaticalmente diferente (articulação gramatical provavelmente
exigida pela melodia):
Dos
meus beijos que falar
Dos
desejos de queimar
E
dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha
Ou
seja, como falar em beijos e desejos (X) no presente, se, no passado,
os beijos recebidos apagaram os desejos (Y)?
A
segunda estrofe repete o esquema, ficando mais claro o processo
simultâneo de metonimização e personificação do conteúdo
“amor”, objeto polêmico da enunciação (“falar de amor”),
como estratégia para dotar de força dramática o argumento Y. O
amor, na verdade síntese das frustradas relações amorosas de Nancy
(“O amor jamais foi meu”), é então relatado como tendo tido um
poder anímico e destrutivo sobre ela (“me conheceu / Se esfregou
na minha vida / E me deixou assim”), relato já iniciado na
primeira estrofe (“Se o amor me consumiu até a espinha”).
Podemos
dizer que esse esquema reproduz um discurso amoroso que apresenta o
amor feminino como uma entidade que integraria sentimento (imaterial)
e desejo sexual (material). Essa entidade harmônica, sintética,
fonte de poder da mulher sobre o homem, mas que sobre a qual ela não
tem absoluto controle, capta na língua uma forte legitimação (pois
a palavra “amor” pode designar sexo e sentimento). No entanto,
nesse discurso, o amor encontraria na “vida real” sua degradação,
a destruição de sua inteireza, no que resultaria na dominação e
desgaste da amante pelo aspecto material do amor. Podemos encontrar
esse discurso em outras canções de Chico Buarque, como “Viver do
amor” e “Ana de Amsterdam”, e, de uma forma ligeiramente
diferente, em “Maria Rosa”, de Lupicínio Rodrigues.
A
narrativa argumentativa prossegue na terceira estrofe, tomando
contornos ainda mais fortes. Intensificadores jogam aí um papel
fundamental: “Homens, eu nem fiz a soma...”, “Bocas chegavam a
Roma passando por mim”. Essa intensificação culmina com uma
“tomada cinematográfica” que se estende quase até o fim da
canção. Tratando-se a si mesma como terceira pessoa (“ela”),
Nancy exibe subitamente, na entonação nervosa da melodia, a
dramática cena-síntese da imolação de sua sexualidade: “Ela de
braços abertos / Fazendo promessas / Meus deuses, enfim!”. Em mais
essa cenografia encaixada, Nancy se mostra e se vê como personagem
que investe na dimensão imaterial do amor. A mulher oferece aos
homens, em busca do amor integral (“Na esperança de casar / [...]
outro mar”, como diria Ana de Amsterdam, sua colega de infortúnio),
seu “alto-corporal” na relação amorosa: os braços, a boca (das
promessas), a mente (dos deuses), enfim, o que o discurso amoroso
alegoriza como o “coração”. Por sua vez, o outro, o homem
(“eles”) é visto e apresentado como aquele que, ao contrário,
ignora a sacralização do amor proposta por Nancy e investe
exclusivamente no baixo-corporal – o ato carnal puro, imediato e
intenso (em oposição ao extenso, que certamente ela preferiria):
“gozando depressa”, “querendo na hora / Por dentro, por fora /
Por cima e por trás”. Em suma, a tragédia de Nancy foi ter
apostado que, oferecendo seu corpo e sua alma a tantos homens, algum
realizaria seu sonho do amor integral. Aposta malograda, pois nenhum
deles aceitou os dois, preenchendo o espaço amoroso que ela
reservara ao “coração” com mais e mais sexo.
No
final, na última frase da canção, e também súbita e
energicamente, a reação: “Juro por Deus, de pés juntos / Que
nunca mais”. Fecha-se a cortina da cenografia criada pela Nancy
personagem da canção, fecha-se a cortina da cena genérica criada
pela Nancy personagem da peça. Fecha-se o coração de Nancy para
tentativas futuras. Nancy nega seu tango. Porque se o gênero tango
nos fala geralmente do amor trágico, esse é o último tango de
Nancy (“nunca mais”).
Depois
de cantar, ela confirma e assume seu etos de mulher de presença.
Presente integralmente no amor integral que oferece aos homens;
presente na reação e indignação diante desses homens que não o
aceitam. E agora ela está presente na peça criada pelo
professor-personagem, dialogando com os espectadores-personagens que
lhe admiram a presença, eles tão sem presença, tanto os homens
quanto as mulheres, referidos por suas qualidades tão pouco dignas
(“Bêbado Valentão”, “Bêbado Miúdo”, “Cabisbaixa”
etc.).
Como
dissemos, a personagem dá continuidade ao etos de “mulher de
fibra”, indignada e decidida que seu tango tão bem manifesta. Suas
palavras, que se seguem à interpretação da canção na peça, são,
como também já dissemos, uma explicação dos motivos de sua
angústia. Esses esclarecimentos, lidos à luz da letra da canção,
acabam, no entanto, por revelar que Nancy, mais do que fazer comida,
lavar prato, fazer cama e cuidar das feridas dos prisioneiros,
oferecia-se sexualmente aos mesmos em busca, como vimos, do amor
integral. É o seu erro trágico, mas é também sua paixão, pela
qual será capaz de trair sua nação. Nesse momento, portanto, Nancy
revela-se transgressora da ordem, pois, sendo ex-mulher de um capitão
ainda apaixonado e administrador do hotel-cárcere onde trabalha, ela
transa com piratas, corsários e marinheiros estrangeiros e,
provavelmente, o homem condenado à morte que aceitasse seu amor
ganharia em troca a vida e a liberdade. Nancy é, assim, uma mulher
que, em nome do seu amor, “trai” sua pátria. Nesse sentido, ela
se irmana a outra personagem dramático-musical de Chico Buarque:
Bárbara, da peça também histórica Calabar: o elogio da traição,
criada em parceria com Ruy Guerra(8).
Na
sequência da peça, eis que chega ao hotel-cárcere de Plymouth para
ser julgado o jovem Duguay-Trouin. Posto aos cuidados de Nancy, ela é
seduzida e renega a jura feita no final do tango. Após cantar o
“Chorinho da abordagem”(9) e travar um diálogo carnavalesco, em
que as atrocidades (mentirosas) cometidas pelo corsário, descritas
com riqueza de detalhes e orgulho, em vez de chocarem Nancy,
deixam-na ainda mais fascinada por ele, o casal se entrega a intensas
jornadas de amor carnal, exatamente aquilo de que ela se queixava no
tango.
No
final da cena, Duguay-Trouin trai Nancy. Ele arma um plano de fuga
que envolve sua libertação simultânea do cárcere do Capitão e do
amor de Nancy:
DUGUAY-TROUIN
É
preciso que ela sinta o seu amor traído. Paixão sem recompensa.
Vamos fazer assim, Capitão: essa moça pensa que esta noite eu vou
fugir com ela. Lá embaixo no porto tem um navio sueco, “Estrela da
Noite”. Eu disse que ia comprar esse navio pra ela, mas estou sem
dinheiro.(10)
Numa
nova cenografia, dessa vez criada pela fala do corsário (o que dá à
peça contornos vertiginosos, dado o encaixamento sucessivo e
vertical de cenografias), os dois imaginam o momento do encontro
entre Duguay-Trouin e Nancy:
DUGUAY-TROUIN
(Os
atores trocam o cenário do teatrinho: o porto) Nancy vai entrar
por aquela porta, vestida com seu vestido mais rendado, pérolas,
brilhantes, anéis e braceletes (entra Nancy como ele diz)...
apaixonada…
[...]
CAPITÃO
E
eu? O que é que eu faço?
DUGUAY-TROUIN
Espera
atrás do muro, porque depois que eu for embora, ela fica sozinha,
infeliz, triste e desolada, lágrima nos olhos e aí o senhor sai de
trás do muro e ela cairá nos seus braços! Elementar, meu caro
Capitão…
CAPITÃO
E
você?
DUGUAY-TROUIN
Eu
tomo o navio!
CAPITÃO
E
vai fugir???!!!
DUGUAY-TROUIN
Pelas
barbas do profeta, não! Claro que não. Só o tempo de fazer de
conta. Dou uma voltinha no “Estrela da Noite” e vou me depositar
na prisão que o senhor indicar...(11)
Essa
cenografia imaginada se transforma em cenografia “real”, ou seja,
passa para o mesmo plano daquela que a engendrou. O encontro,
portanto, se dá “de fato”, tudo acontece como Duguay-Trouin
previu, salvo a reação de Nancy, que, mais uma vez, desmente o seu
tango com outra canção, “Marinheiros de muitos portos”:(12)
Quem
me dera ficar, meu amor, de uma vez
Mas
escuta o que dizem as ondas do mar
[...]
Minha
vida, querida, não é nenhum mar de rosas
[…]
Quem
me dera amarrar meu amor quase um mês
Mas
escuta o que dizem as pedras do cais
[...]
Minha
vida, querido, não é nenhum mar de rosas
[...]
Essa
canção, cantada em dueto por Duguay-Trouin e Nancy, mostra então
que o que esta última diz em seu tango, se não era uma mentira, não
era toda a verdade. Nancy não está sufocada pelo excesso, como o
tango dá a entender. Ao contrário, se identificando às avessas com
Duguay-Trouin, marinheiro que diz amar eternamente uma mulher a cada
porto, ela ama “todos os marinheiros no mesmo porto”. De amante
frustrada por nunca encontrar homem que aceite seu amor integral, que
queira trocar a prisão de Plymouth pela prisão de seu amor (ou,
mais tragicamente, que preferem a morte), ela se revela o seu
contrário: amante do excesso e da variedade, que ama os marinheiros
exatamente porque eles não se fixam, e não querem outra coisa senão
o seu sexo.
Poder-se-ia
objetar: não estará Nancy, como forma de se proteger contra mais
uma cruel decepção, fingindo diante de Duguay-Trouin, sendo o
conteúdo de sua fala em “Marinheiros de muitos portos”, na
verdade, a mentira? Não se trataria de um tipo de resignação
amorosa como a que se ouve em “Olha Maria”? (Tom Jobim, Chico
Buarque e Vinicius de Moraes):
Vai,
alegria
Que
a vida, Maria
Não
passa de um dia
Não
vou te prender
Parece
que não, conforme mostra a didascália que segue a canção:
(Duguay-Trouin
parte no naviozinho “Estrela da Noite” durante a canção. Nancy
finge que chora, depois volta a trabalhar. O Capitão quer beijá-la
e leva um tapa na cara).(13)
Bem
entendido, tal didascália não é do dramaturgo-personagem, o
professor de História, e sim do autor, Augusto Boal. Portanto, da
consciência de quem, em princípio, tem a visão do todo da obra
escrita (ainda que essa totalidade seja aberta, pois não se pode ter
o controle absoluto dos sentidos do que se fala ou escreve). Ela
revela que Nancy, mais do que vítima, administra suas relações com
os marinheiros de modo a gerar neles um desejo de voltar, muito
embora tenha dito “volta não” (dizer “volte”, por contrariar
o regime da vida marinheira, poderia gerar o desejo de não mais
voltar). Sua fala na canção, por meio de um etos leve, sereno e até
bem-humorado, manifesta um discurso amoroso em certa medida oposto ao
discurso de seu tango. Segundo tal discurso, o amor, mais do que
vivido, deve ser usufruído. Esse usufruto deve ser regulado pelo
critério da variedade (um de cada vez), sem que se descarte a
possibilidade de uma mesma relação amorosa ser eventualmente
usufruída mais de uma vez. O todo desse amor corresponde ao amor
físico, usufruído com intensidade, porém com desprendimento e sem
sentimentalismo(14).
Os
fingimentos dentro e após essa canção, essa surpreendente
contradição, transformam o discurso amoroso do “Tango de Nancy”
numa farsa? Teria ela enganado os públicos (da peça principal e da
peça encaixada), assim como enganou o corsário que pensava estar
enganando-a? Sim e não. Do ponto de vista lógico e linear da
sucessão das cenografias encaixadas, sim. Ou também se acreditarmos
numa unicidade do sujeito e negarmos a possibilidade deste (mesmo
fictício) conter em si clivagens, contradições. Mas, se pensarmos
que tais discursos estão ancorados em regimes de verdade acerca do
amor e que, como dissemos no início, o que se chama “personagem”,
“narrador” ou “eu lírico” é antes uma unidade dispersa,
isto é, um princípio de agrupamento de uma pluralidade de
representações, posições e funções(15), podemos responder que
não. As duas Nancys contêm em si cada uma um pouco de verdade e de
mentira.
Aliás,
a problemática da verdade e da mentira não é senão a questão de
fundo da peça de Boal, sintetizada na canção de abertura, da qual
destacamos os nove últimos versos:
Na
verdade cresce a ira
A
mentira é só desdém
A
verdade faz a mira
A
mentira diz amém
A
verdade quando atira
O
cartucho vai e vem
A
verdade é que no bucho
De
toda mentira
Verdade
tem
(“Verdadeira
embolada ou O incrível duelo da Mentira com a Verdade”).
Notas:
1.
À representação da peça, infelizmente, não tivemos acesso.
2.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas de enunciação. São Paulo:
Parábola, 2008.
3.
FOUCAULT, Michel. A ordem do
discurso. São Paulo: Loyola, 2003.
4.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
5.
BOAL, Augusto; BUARQUE, Chico; LOBO, Edu. O corsário do rei.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
6.
BOAL et al. Op. cit., p. 61.
7.
BOAL et al. Op. cit., p. 58.
8.
BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição.
3a ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
9.
Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Edu Lobo e
Tom Jobim, sob o título “Choro bandido”.
10.
BOAL et al. Op. cit., p. 70.
11.
BOAL et al. Op. cit., p. 70-71.
12.
BOAL et al. Op. cit., p. 59. Canção gravada, no álbum O
corsário do rei, por Chico Buarque e Gal Costa, sob o título “A
mulher de cada porto”.
13.
BOAL et al. Op. cit., p. 72. O grifo é nosso.
14.
Dir-se-ia um amor que seguiria a lógica do consumo da “modernidade
leve ou líquida”, conforme Z. Bauman (A modernidade líquida.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001). No entanto, não é senão a
contrapartida feminina do amor de marinheiro cujo estilo de vida,
conforme W. Benjamin (“O narrador”. In: Textos escolhidos.
São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1983), é um dos
constituintes, por meio de suas narrativas, do mundo simbólico
pré-capitalista. Por outro lado, se pensarmos que se trata de uma
leitura desse estilo feita na contemporaneidade, a primeira hipótese
não é absurda.
15.
FOUCAULT. Op. cit., p. 58.
Nelson Barros da Costa, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos
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