quinta-feira, 25 de abril de 2024

Verdades e mentiras do "Tango de Nancy"


Tango de Nancy
(Chico Buarque e Edu Lobo – 1985)

Quem sou eu para falar de amor
Se o amor me consumiu até a espinha
[...]

Quem sou eu para falar de amor
Se de tanto me entregar nunca fui minha
O amor jamais foi meu
O amor me conheceu
Se esfregou na minha vida
E me deixou assim

Homens, eu nem fiz a soma
De quantos rolaram no meu camarim
Bocas chegavam a Roma passando por mim
Ela de braços abertos
Fazendo promessas
Meus deuses, enfim!
Eles gozando depressa
[...]
Eles querendo na hora
Por dentro, por fora
Por cima e por trás
Juro por Deus, de pés juntos
Que nunca mais

Analisaremos aqui o “Tango de Nancy” à luz do contexto dramático-musical para o qual ele foi concebido. Julgamos essa perspectiva interessante não por estarmos à procura de um sentido original da canção, mas porque analisá-la na peça teatral nos proporciona descobrir diferentes efeitos de sentido que não aparecem na canção veiculada em seus meios convencionais de circulação (rádio, internet, MP3, CD etc.). Submeteremos a análise desses efeitos a um foco que será nosso principal recorte metodológico aqui: centraremos o exame na figura do enunciador feminino (quem fala na canção). De antemão, advertimos que esse eu, que em literatura tem sido chamado, a nosso ver inapropriadamente, de eu lírico, não será pensado como um núcleo fechado e concentrado, exibindo, por meio da canção, seu “ponto de vista feminino” ou a voz de alguém representante de uma categoria genérica (mulher) ou profissional (prostituta). Ao contrário, esse eu será pensado como manifestação material de uma dispersão subjetiva complexa. Dispersão que se dá em função mesma dessa materialização (na canção e no texto da peça(1)). Acreditamos que uma análise do “Tango de Nancy” a partir de seu contexto dramático-musical nos possibilita entender alguns aspectos dessa dispersão. O instrumental teórico da Análise do Discurso (Maingueneau(2), Foucault(3), Bakhtin(4), embora não explicitado, foi utilizado na análise que aqui apresentamos.
O “Tango de Nancy” foi composto por Chico Buarque e Edu Lobo para a peça dramático-musical O corsário do rei, de autoria de Augusto Boal(5). A peça foi encenada pela primeira vez em 18 de setembro de 1985, no Teatro João Caetano (Rio de Janeiro), com Marco Nanini, Lucinha Lins, Nelson Xavier, dentre outros, e sob direção do autor. O próprio Edu Lobo foi responsável pela direção musical da peça, que teve a orquestração de Eduardo Souto Neto e a regência de Maurício Maestro. No mesmo ano, a canção é lançada no LP homônimo da peça, de Chico Buarque e Edu Lobo, na voz de Lucinha Lins, ela que interpretou, na montagem de 1985, o papel de Nancy, personagem que canta o tango.
Um ligeiro resumo da peça faz-se necessário aqui. O corsário do rei é uma obra metadiscursiva, isto é, que remete ao seu próprio campo discursivo a cena dramatúrgica. A cenografia principal é a de um bar portuário no Rio de Janeiro do começo do século XIX. O bar, em situação de insolvência financeira, é posto à venda pela proprietária e esta tenta convencer um negociante a comprá-lo. A transação é presenciada por prostitutas e um professor de História que frequentam o estabelecimento e, por vezes, interferem na conversa. De repente, revela-se que a clientela de bêbados está revoltada com a suspensão do crédito da cachaça e ameaça invadir para roubar a bebida. Um grupo de bêbados de fato invade o bar, armados de paus e pedras. A polícia é chamada. Porém o policial que chega alerta, morrendo de medo, sobre a chegada de uma frota de navios com comerciantes estrangeiros. Nesse ínterim, os bêbados desistem do assalto ao bar e decidem unir-se à patroa e ao negociante para reagir contra a invasão. Os “invasores”, porém, estão em missão de paz e propõem uma festa na sua chegada. É a propósito dessa festa que o professor sugere aos presentes naquele momento no bar a encenação de uma peça de teatro sobre outra invasão ocorrida um século antes. Essa cenografia, que a partir de então vai se desenrolar, a que chamamos secundária, na verdade vai ser frequentemente entrecortada pela cenografia principal, de modo que os personagens desta não apenas atuam como personagens daquela, mas também dialogam e tentam interferir nela, mediados pelo professor. É apenas por ela ser derivada da primeira que chamamos secundária, porque, de fato, é ela que prevalece e inclusive dá nome à peça.
Nessa cenografia superposta, os personagens representam, começando pela morte, vários momentos da vida de René Duguay-Trouin, corsário francês que viveu entre os anos l673 e 1736:
No leito de morte (III)
A infância (IV)
Primeiro encontro com o Rei Luís XIV (V)
As primeiras aventuras no mar (VI)
A prisão em Plymouth (Inglaterra) (VII)
A morte de Étienne, seu irmão (VIII)
As guerras no mar (IX)
A conquista do apoio do Rei para a invasão do Brasil (X)
A invasão do Rio de Janeiro (XIII)

Um dado histórico aqui é importante para melhor compreender-se a história encenada: os corsários eram navegadores armados que, entre os séculos XVI e XIX, vendiam seus serviços de pilhagem e combate navais às diversas nações da época. Diferentemente dos piratas, que agiam por conta própria, os corsários portavam uma carta fornecida pelo rei e, por meio desse documento (frequentemente falsificado), eles eram reconhecidos como força militar auxiliar do país. Desse modo, se fossem capturados, exibiam sua carta real e eram considerados prisioneiros de guerra, recebendo tratamento diferenciado e, muitas vezes, escapando da condenação à morte reservada aos piratas. Um desses corsários, René Duguay-Trouin, conseguiu, em 1711, invadir a cidade do Rio de Janeiro, sendo dessa invasão que trata a encenação encaixada na peça O corsário do rei.
Voltando a esta última, à peça principal, é importante notar que Nancy não é diretamente sua personagem, e sim da peça encaixada, que é, a um só tempo, concebida e encenada pelos personagens da peça-mãe. Ela aparece unicamente na cena VII (“A prisão em Plymouth”), considerando a divisão cênica da peça maior, e na quinta cena da representação secundária. Nesta, conta-se que, tendo se tornado corsário muito jovem, Duguay-Trouin é derrotado pelos ingleses logo na primeira batalha naval. Preso, ele é enviado para Plymouth, cidade inglesa onde vive e trabalha Nancy. Aí ela é criada de um hotel utilizado como prisão, para onde eram enviados prisioneiros de guerra antes de serem conduzidos ao tribunal. Sua missão: cuidar dos prisioneiros “fazendo comida, lavando prato, fazendo cama, cuidando ferida...(6)”.
A protagonista da canção da peça, portanto, é inglesa, e não francesa, como poderíamos julgar à primeira vista, levados pelas várias referências feitas ao universo francês pela peça e pelo próprio gênero da canção (marcado em seu título), julgamento reforçado pela relativa reputação da cidade francesa de Nancy e pelo título do famoso longa-metragem “O último tango em Paris”. Assim, o que está em análise neste momento é o “Tango de Nancy” ([‘nænsi] ou, aportuguesadamente, “nénci”) e não o “Tango de Nancy” ([nã’si] ou “nansí”). Eis o primeiro elemento dessa identidade subjetiva que estamos aqui investigando. Elemento a não se desprezar, pois, no decorrer da cena VIII, sua aparição, seguida pela execução do tango e por seu diálogo com o “público” (personagens da cena principal), marca um deslocamento da cenografia da França para a Inglaterra e consequentemente a apresentação de um segundo ponto de vista sobre os acontecimentos relatados. Tendo sido apresentada nas cenas anteriores a guerra da França contra a Inglaterra do ponto de vista dos representantes das classes dominantes francesas (a nobreza, o clero, a burocracia), que, diante da iminência da derrota, decidem “privatizar a guerra”, Nancy apresenta, nessa cena, não o ponto de vista das classes dominantes inglesas, mas o seu ponto de vista enquanto vítima indireta dessa privatização. É uma mudança de cenografia, mas é também uma mudança de foco, que sai do macro para o micropolítico. Com efeito, a primeira fala de Nancy é o tango, que representa ele mesmo mais duas cenas: uma cena definida pelo gênero musical (cena genérica), em que Nancy aparece como cantora de tango, e uma cenografia que pode ser classificada como um “desabafo” de uma mulher que se sente sufocada pelo excesso. A primeira marca uma identidade fugaz (que dura os poucos minutos de execução do tango), mas que, de certa maneira, informa sobre o estado emocional e a condição social de Nancy. Dado que o tango enquanto gênero musical surgiu no final do século XIX e não existia portanto nem no período da cenografia da peça-mãe (início do século XIX) nem muito menos no período da cenografia da peça encaixada (início do século XIII), a escolha de tal gênero musical representa uma licença artística que certamente tem o propósito de captar o etos de gravidade, exasperação e dramaticidade que o tem caracterizado. De fato, a fala da personagem mantém esse etos nos momentos que sucedem a execução do tango, já que ela, dirigindo-se aos expectadores (personagens da cena primária), explica didaticamente, também como um desabafo, o motivo “macropolítico” do seu infortúnio. Por outro lado, também a cena genérica contribui para o clima de excitação masculina (e também feminina) com a presença da mulher e para a sua entrada “em grande estilo” na peça. Enfatizamos a palavra “presença” porque, embora haja personagens mulheres na peça principal, elas são mulheres sem presença, tanto que não têm nome, sendo identificadas no texto dramático por epítetos (“Patroa”, “Tísica”, “Gorda”, “Cabisbaixa”). Assim, um pouco antes da entrada de Nancy cantando o tango, os personagens-espectadores reclamam do personagem-dramaturgo justamente a presença de uma mulher:

BÊBADO VALENTÃO
É muito moralista essa peça, o senhor não acha?

BÊBADO MIÚDO
Tem gosto pra tudo...

TÍSICA
Não tinha mulher nesse barco?

CABISBAIXA
Umas profissionais... Podiam ter serventia…

GORDA
Com tantos homens tanto tempo em tanto mar... tão sozinhos...(7)

A outra cena evocada pelo tango funciona como uma pergunta retórica que sintetiza a história micropolítica de Nancy. Trata-se de uma cenografia que simula uma réplica conversacional (resposta a alguém que supostamente teria solicitado ao enunciador “falar de amor”) e que se constitui estruturalmente de duas cenas encaixadas: uma se põe no presente da enunciação e a outra se põe no pretérito, seja perfeito, seja imperfeito, funcionando como pano de fundo “argumentativo”, isto é, que justifica, explica ou contextualiza a cena do presente.
Assim, a canção se inicia a partir de uma frase no presente (“Quem sou eu para falar de amor”) que é articulada por meio da partícula argumentativa “se” à seguinte, que se situa em tempo anterior à enunciação (“Se o amor me consumiu até a espinha”), produzindo um esquema, recorrente em toda a canção, que poderíamos exprimir como: “como X (presente), se Y (passado)?”. De fato, se observamos as frases seguintes da primeira estrofe, vemos que mais uma vez o esquema prossegue, porém articulado de modo gramaticalmente diferente (articulação gramatical provavelmente exigida pela melodia):

Dos meus beijos que falar
Dos desejos de queimar
E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha

Ou seja, como falar em beijos e desejos (X) no presente, se, no passado, os beijos recebidos apagaram os desejos (Y)?
A segunda estrofe repete o esquema, ficando mais claro o processo simultâneo de metonimização e personificação do conteúdo “amor”, objeto polêmico da enunciação (“falar de amor”), como estratégia para dotar de força dramática o argumento Y. O amor, na verdade síntese das frustradas relações amorosas de Nancy (“O amor jamais foi meu”), é então relatado como tendo tido um poder anímico e destrutivo sobre ela (“me conheceu / Se esfregou na minha vida / E me deixou assim”), relato já iniciado na primeira estrofe (“Se o amor me consumiu até a espinha”).
Podemos dizer que esse esquema reproduz um discurso amoroso que apresenta o amor feminino como uma entidade que integraria sentimento (imaterial) e desejo sexual (material). Essa entidade harmônica, sintética, fonte de poder da mulher sobre o homem, mas que sobre a qual ela não tem absoluto controle, capta na língua uma forte legitimação (pois a palavra “amor” pode designar sexo e sentimento). No entanto, nesse discurso, o amor encontraria na “vida real” sua degradação, a destruição de sua inteireza, no que resultaria na dominação e desgaste da amante pelo aspecto material do amor. Podemos encontrar esse discurso em outras canções de Chico Buarque, como “Viver do amor” e “Ana de Amsterdam”, e, de uma forma ligeiramente diferente, em “Maria Rosa”, de Lupicínio Rodrigues.
A narrativa argumentativa prossegue na terceira estrofe, tomando contornos ainda mais fortes. Intensificadores jogam aí um papel fundamental: “Homens, eu nem fiz a soma...”, “Bocas chegavam a Roma passando por mim”. Essa intensificação culmina com uma “tomada cinematográfica” que se estende quase até o fim da canção. Tratando-se a si mesma como terceira pessoa (“ela”), Nancy exibe subitamente, na entonação nervosa da melodia, a dramática cena-síntese da imolação de sua sexualidade: “Ela de braços abertos / Fazendo promessas / Meus deuses, enfim!”. Em mais essa cenografia encaixada, Nancy se mostra e se vê como personagem que investe na dimensão imaterial do amor. A mulher oferece aos homens, em busca do amor integral (“Na esperança de casar / [...] outro mar”, como diria Ana de Amsterdam, sua colega de infortúnio), seu “alto-corporal” na relação amorosa: os braços, a boca (das promessas), a mente (dos deuses), enfim, o que o discurso amoroso alegoriza como o “coração”. Por sua vez, o outro, o homem (“eles”) é visto e apresentado como aquele que, ao contrário, ignora a sacralização do amor proposta por Nancy e investe exclusivamente no baixo-corporal – o ato carnal puro, imediato e intenso (em oposição ao extenso, que certamente ela preferiria): “gozando depressa”, “querendo na hora / Por dentro, por fora / Por cima e por trás”. Em suma, a tragédia de Nancy foi ter apostado que, oferecendo seu corpo e sua alma a tantos homens, algum realizaria seu sonho do amor integral. Aposta malograda, pois nenhum deles aceitou os dois, preenchendo o espaço amoroso que ela reservara ao “coração” com mais e mais sexo.
No final, na última frase da canção, e também súbita e energicamente, a reação: “Juro por Deus, de pés juntos / Que nunca mais”. Fecha-se a cortina da cenografia criada pela Nancy personagem da canção, fecha-se a cortina da cena genérica criada pela Nancy personagem da peça. Fecha-se o coração de Nancy para tentativas futuras. Nancy nega seu tango. Porque se o gênero tango nos fala geralmente do amor trágico, esse é o último tango de Nancy (“nunca mais”).

Depois de cantar, ela confirma e assume seu etos de mulher de presença. Presente integralmente no amor integral que oferece aos homens; presente na reação e indignação diante desses homens que não o aceitam. E agora ela está presente na peça criada pelo professor-personagem, dialogando com os espectadores-personagens que lhe admiram a presença, eles tão sem presença, tanto os homens quanto as mulheres, referidos por suas qualidades tão pouco dignas (“Bêbado Valentão”, “Bêbado Miúdo”, “Cabisbaixa” etc.).
Como dissemos, a personagem dá continuidade ao etos de “mulher de fibra”, indignada e decidida que seu tango tão bem manifesta. Suas palavras, que se seguem à interpretação da canção na peça, são, como também já dissemos, uma explicação dos motivos de sua angústia. Esses esclarecimentos, lidos à luz da letra da canção, acabam, no entanto, por revelar que Nancy, mais do que fazer comida, lavar prato, fazer cama e cuidar das feridas dos prisioneiros, oferecia-se sexualmente aos mesmos em busca, como vimos, do amor integral. É o seu erro trágico, mas é também sua paixão, pela qual será capaz de trair sua nação. Nesse momento, portanto, Nancy revela-se transgressora da ordem, pois, sendo ex-mulher de um capitão ainda apaixonado e administrador do hotel-cárcere onde trabalha, ela transa com piratas, corsários e marinheiros estrangeiros e, provavelmente, o homem condenado à morte que aceitasse seu amor ganharia em troca a vida e a liberdade. Nancy é, assim, uma mulher que, em nome do seu amor, “trai” sua pátria. Nesse sentido, ela se irmana a outra personagem dramático-musical de Chico Buarque: Bárbara, da peça também histórica Calabar: o elogio da traição, criada em parceria com Ruy Guerra(8).

Na sequência da peça, eis que chega ao hotel-cárcere de Plymouth para ser julgado o jovem Duguay-Trouin. Posto aos cuidados de Nancy, ela é seduzida e renega a jura feita no final do tango. Após cantar o “Chorinho da abordagem”(9) e travar um diálogo carnavalesco, em que as atrocidades (mentirosas) cometidas pelo corsário, descritas com riqueza de detalhes e orgulho, em vez de chocarem Nancy, deixam-na ainda mais fascinada por ele, o casal se entrega a intensas jornadas de amor carnal, exatamente aquilo de que ela se queixava no tango.
No final da cena, Duguay-Trouin trai Nancy. Ele arma um plano de fuga que envolve sua libertação simultânea do cárcere do Capitão e do amor de Nancy:

DUGUAY-TROUIN
É preciso que ela sinta o seu amor traído. Paixão sem recompensa. Vamos fazer assim, Capitão: essa moça pensa que esta noite eu vou fugir com ela. Lá embaixo no porto tem um navio sueco, “Estrela da Noite”. Eu disse que ia comprar esse navio pra ela, mas estou sem dinheiro.(10)

Numa nova cenografia, dessa vez criada pela fala do corsário (o que dá à peça contornos vertiginosos, dado o encaixamento sucessivo e vertical de cenografias), os dois imaginam o momento do encontro entre Duguay-Trouin e Nancy:

DUGUAY-TROUIN
(Os atores trocam o cenário do teatrinho: o porto) Nancy vai entrar por aquela porta, vestida com seu vestido mais rendado, pérolas, brilhantes, anéis e braceletes (entra Nancy como ele diz)... apaixonada…

[...]

CAPITÃO
E eu? O que é que eu faço?

DUGUAY-TROUIN
Espera atrás do muro, porque depois que eu for embora, ela fica sozinha, infeliz, triste e desolada, lágrima nos olhos e aí o senhor sai de trás do muro e ela cairá nos seus braços! Elementar, meu caro Capitão…

CAPITÃO
E você?

DUGUAY-TROUIN
Eu tomo o navio!

CAPITÃO
E vai fugir???!!!

DUGUAY-TROUIN
Pelas barbas do profeta, não! Claro que não. Só o tempo de fazer de conta. Dou uma voltinha no “Estrela da Noite” e vou me depositar na prisão que o senhor indicar...(11)

Essa cenografia imaginada se transforma em cenografia “real”, ou seja, passa para o mesmo plano daquela que a engendrou. O encontro, portanto, se dá “de fato”, tudo acontece como Duguay-Trouin previu, salvo a reação de Nancy, que, mais uma vez, desmente o seu tango com outra canção, “Marinheiros de muitos portos”:(12)

Quem me dera ficar, meu amor, de uma vez
Mas escuta o que dizem as ondas do mar
[...]
Minha vida, querida, não é nenhum mar de rosas
[…]

Quem me dera amarrar meu amor quase um mês
Mas escuta o que dizem as pedras do cais
[...]
Minha vida, querido, não é nenhum mar de rosas
[...]

Essa canção, cantada em dueto por Duguay-Trouin e Nancy, mostra então que o que esta última diz em seu tango, se não era uma mentira, não era toda a verdade. Nancy não está sufocada pelo excesso, como o tango dá a entender. Ao contrário, se identificando às avessas com Duguay-Trouin, marinheiro que diz amar eternamente uma mulher a cada porto, ela ama “todos os marinheiros no mesmo porto”. De amante frustrada por nunca encontrar homem que aceite seu amor integral, que queira trocar a prisão de Plymouth pela prisão de seu amor (ou, mais tragicamente, que preferem a morte), ela se revela o seu contrário: amante do excesso e da variedade, que ama os marinheiros exatamente porque eles não se fixam, e não querem outra coisa senão o seu sexo.
Poder-se-ia objetar: não estará Nancy, como forma de se proteger contra mais uma cruel decepção, fingindo diante de Duguay-Trouin, sendo o conteúdo de sua fala em “Marinheiros de muitos portos”, na verdade, a mentira? Não se trataria de um tipo de resignação amorosa como a que se ouve em “Olha Maria”? (Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes):

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender

Parece que não, conforme mostra a didascália que segue a canção:

(Duguay-Trouin parte no naviozinho “Estrela da Noite” durante a canção. Nancy finge que chora, depois volta a trabalhar. O Capitão quer beijá-la e leva um tapa na cara).(13)

Bem entendido, tal didascália não é do dramaturgo-personagem, o professor de História, e sim do autor, Augusto Boal. Portanto, da consciência de quem, em princípio, tem a visão do todo da obra escrita (ainda que essa totalidade seja aberta, pois não se pode ter o controle absoluto dos sentidos do que se fala ou escreve). Ela revela que Nancy, mais do que vítima, administra suas relações com os marinheiros de modo a gerar neles um desejo de voltar, muito embora tenha dito “volta não” (dizer “volte”, por contrariar o regime da vida marinheira, poderia gerar o desejo de não mais voltar). Sua fala na canção, por meio de um etos leve, sereno e até bem-humorado, manifesta um discurso amoroso em certa medida oposto ao discurso de seu tango. Segundo tal discurso, o amor, mais do que vivido, deve ser usufruído. Esse usufruto deve ser regulado pelo critério da variedade (um de cada vez), sem que se descarte a possibilidade de uma mesma relação amorosa ser eventualmente usufruída mais de uma vez. O todo desse amor corresponde ao amor físico, usufruído com intensidade, porém com desprendimento e sem sentimentalismo(14).
Os fingimentos dentro e após essa canção, essa surpreendente contradição, transformam o discurso amoroso do “Tango de Nancy” numa farsa? Teria ela enganado os públicos (da peça principal e da peça encaixada), assim como enganou o corsário que pensava estar enganando-a? Sim e não. Do ponto de vista lógico e linear da sucessão das cenografias encaixadas, sim. Ou também se acreditarmos numa unicidade do sujeito e negarmos a possibilidade deste (mesmo fictício) conter em si clivagens, contradições. Mas, se pensarmos que tais discursos estão ancorados em regimes de verdade acerca do amor e que, como dissemos no início, o que se chama “personagem”, “narrador” ou “eu lírico” é antes uma unidade dispersa, isto é, um princípio de agrupamento de uma pluralidade de representações, posições e funções(15), podemos responder que não. As duas Nancys contêm em si cada uma um pouco de verdade e de mentira.
Aliás, a problemática da verdade e da mentira não é senão a questão de fundo da peça de Boal, sintetizada na canção de abertura, da qual destacamos os nove últimos versos:

Na verdade cresce a ira
A mentira é só desdém
A verdade faz a mira
A mentira diz amém
A verdade quando atira
O cartucho vai e vem
A verdade é que no bucho
De toda mentira
Verdade tem

(“Verdadeira embolada ou O incrível duelo da Mentira com a Verdade”).

Notas:
1. À representação da peça, infelizmente, não tivemos acesso.
2. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas de enunciação. São Paulo: Parábola, 2008.
3. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2003.
4. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
5. BOAL, Augusto; BUARQUE, Chico; LOBO, Edu. O corsário do rei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
6. BOAL et al. Op. cit., p. 61.
7. BOAL et al. Op. cit., p. 58.
8. BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 3a ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
9. Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Edu Lobo e Tom Jobim, sob o título “Choro bandido”.
10. BOAL et al. Op. cit., p. 70.
11. BOAL et al. Op. cit., p. 70-71.
12. BOAL et al. Op. cit., p. 59. Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Chico Buarque e Gal Costa, sob o título “A mulher de cada porto”.
13. BOAL et al. Op. cit., p. 72. O grifo é nosso.
14. Dir-se-ia um amor que seguiria a lógica do consumo da “modernidade leve ou líquida”, conforme Z. Bauman (A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001). No entanto, não é senão a contrapartida feminina do amor de marinheiro cujo estilo de vida, conforme W. Benjamin (“O narrador”. In: Textos escolhidos. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1983), é um dos constituintes, por meio de suas narrativas, do mundo simbólico pré-capitalista. Por outro lado, se pensarmos que se trata de uma leitura desse estilo feita na contemporaneidade, a primeira hipótese não é absurda.
15. FOUCAULT. Op. cit., p. 58.

Nelson Barros da Costa, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

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