sexta-feira, 30 de abril de 2021

Ana Carolina / Coração Selvagem

A hora grafada

De noite no mato as árvores semelhavam
uma águia acabada de pousar,
um anjo saudando,
um galo perfeitinho,
uma ave grande vista de frente.
De noite no mato, as vivas figuras enraizadas,
prontas a falar ou bater asas.

Adélia Prado

Pérolas de tradução

 


A frase em inglês era:
The bride entered the church like an erect and elegant although a little too confident swan.
A jovem com pretensões a tradutora assim a verteu fielmente para o português:
A noiva entrou na igreja como um aprumado e elegante embora um pouco confiante demais cisne.”
Numa tradução dos poemas de William Blake para a nossa língua, encontro, entre outras, estas preciosidades: pretty pretty robin traduzido para “preto preto pardal”; merry merry sparrow para “meigo meigo melro”; little lamb para “lambidinha” – e assim por diante. Esta última me intrigou tanto que recorri ao dicionário para ver que diabo de lambidinha era essa. Não tem dúvida, lamb significa só cordeiro mesmo – deve ter sido alguma brincadeirinha do tradutor.
Tudo bem – cada um traduz como quer. A não ser que acabe traduzindo o que não quer e tenha de se valer de uma errata. Como aconteceu com Elizabeth Bishop, que viveu longos anos no Brasil mas era americana e, embora excelente poetisa, não podia conhecer bem algumas sutilezas da nossa língua. No livro de Robert Lowell Quatro poemas, por ela traduzido, o verso A colored fairy tinkles the blues ficou sendo “uma fada negra tilinta blues”, o que exigiu a seguinte errata:
Na página 190, linha 4, em vez de ‘uma fada negra’, leia-se ‘um preto veado’.”
Casos como esses em geral se devem a uma instituição que os editores se habituaram a chamar de “bagrinhos”: pequenos tradutores desconhecidos, em geral estudantes, que se valem do relativo conhecimento de algum idioma estrangeiro para desincumbir-se da tarefa que lhes transfere um tradutor de renome. E nem se veja nessa prática uma exploração do trabalho alheio, pois muitas vezes se inspira em motivação nobre: a de proporcionar uma ajuda a alguém necessitado, cujo nome por si só não basta para conseguir trabalho de tradução. E a remuneração costuma ser tão baixa que acontece não raro acabar transferida na sua totalidade ao tradutor assim subempreitado. Também não chega a constituir propriamente uma fraude literária, desde que a tradução se submeta a uma criteriosa revisão por aquele que vai assiná-la.
Não se sabe qual era a de um tradutor ilustre como Monteiro Lobato, por exemplo, mas consta que ele teria de viver mais de cem anos para dar conta de todas as traduções com sua assinatura.
E a pressuposta supervisão de quem assina nem sempre é tão rigorosa quanto se espera. Como naquele caso do editor que reclamou do “tradutor”:
Vê se toma mais cuidado com essas suas traduções! Dá ao menos uma lida, que diabo!
Tinha razão em reclamar, pois, logo nas primeiras páginas, havia esbarrado com a seguinte frase, em bom português:
“– Eu te amo – borbulhou ela aos ouvidos dele.”
São infindáveis os casos de infidelidade ao texto original, convertidos em anedotário – não há quem não cite um. Alguns já se tornaram clássicos, como o do telefonema que virou anel na frase I’ll give you a ring, ou o do estado-maior que virou um general chamado Staff, na expressão General Staff. O tradutor, aliás afamado ficcionista, ao passar para o português um livro de guerra, tanto usou e abusou do pretenso General que, para justificar a sua presença em várias frentes de batalha pelo mundo, acrescentou uma frase por conta própria, afirmando que “o General Staff era um comandante tão extraordinário que parecia estar em vários lugares ao mesmo tempo”.
Não é invenção minha: Moacir Werneck de Castro, na época comentarista literário de um jornal, ele próprio excelente tradutor, a cuja fina percepção não escapou essa tirada do outro, fez-lhe uma alusão em sua coluna, “não sem malícia e verve”, como no verso de Vinicius. Encontrando-o pouco depois na rua, recebeu dele uma sentida queixa e, sensível ele próprio aos ditames da boa convivência entre confrades, justificou-se educadamente:
Bem, não nego que haja um pouco de gozação no meu comentário. Mas você também não pode negar a mancada na sua tradução.
Ao que o “tradutor” lhe apresentou este argumento irrespondível:
Como é que você queria que eu traduzisse, se eu não sei inglês?
A recíproca é verdadeira: nas traduções de livros brasileiros que se publicam no exterior também costuma haver mancadas, como é de se imaginar.
Eu mesmo já fui vítima de algumas. A de ver, por exemplo, numa versão inglesa do romance O encontro marcado, o personagem que em português se diz um romancista, afirmando: I am a romantic.
Imagino o que se passa com um Guimarães Rosa, cuja linguagem brasileira, mais rica e elaborada, pode dar margem a desastrosos equívocos. Ou Jorge Amado, que por essas e outras em geral prefere nem saber o que fazem de sua obra em língua estrangeira. Segundo me contou, numa das poucas vezes que se interessou deu logo com algo que não constava do original: um personagem que seguia pela estrada carregando uma garrafa de aguardente. Custou a descobrir como aquela garrafa havia surgido, já que o personagem, como o concebera, ia seguindo pela estrada apenas “com uma botina ringideira”. Naturalmente, o tradutor devia ser bom era em espanhol e não em português, e daí a botina lhe ter soado como qualquer coisa parecida com botella, ou garrafa. E ringideira, em consequência, teria que ser uma espécie de aguardente.
Mencionei há algum tempo estas pérolas de tradução numa crônica, e em pouco estava pagando meus pecados. Rubem Braga logo me telefonou:
Essa última novela publicada na sua coleção já foi distribuída?
Ele se referia à coleção Novelas Imortais, que eu dirigia para a editora Rocco. A última tinha sido Bartleby, o escriturário, de Herman Melville.
Se foi publicada, foi distribuída. Por quê?
Porque vai te deixar mal. Tem um erro de tradução que é de amargar. Merecia ser recolhida.
A tradução é de Luís de Lima, e da melhor qualidade.
Não é erro do tradutor não – insiste o Braga. – É seu mesmo. Na apresentação você cita um livro do homem e traduz o título para o português.
Realmente, menciono um livro de Melville chamado White jacket, or the world in a man-of-war, que traduzi literalmente para “Túnica branca, ou o mundo num homem-de-guerra”.
Convém botar uma emenda, uma errata, qualquer coisa assim. Não vão perdoar esse seu “Homem-de-guerra”.
Man é “homem”, of é “de” e war é “guerra”. Como é que você queria que eu traduzisse?
Navio de guerra. Ou vaso de guerra, se você preferir.
Guerra é guerra. Me lembrei que o capitão Braga entendia dessas coisas, desde que fez parte da Força Expedicionária durante a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de verdadeiro cabo de guerra (que em inglês é war-horse, isso eu sei).
Fui conferir no Webster, mas já me reconhecendo derrotado. Não adiantava chicanar, o Braga estava com a razão. Fiquei sabendo de uma vez por todas que homem também pode ser navio, pelo menos em inglês.
Deixa o Alfredo falar! Telefonei imediatamente para ele:
Você sabe o que quer dizer man-of-war?
Sei: quer dizer navio de guerra – ele foi dizendo logo.
E não deixou por menos:
Você sabe o que quer dizer portuguese man-of-war?
Já vem você – respondi, cauteloso. – Navio de guerra português?
Nada disso. Quer dizer água-viva. Aquela medusa pegajosa que tem no mar e que queima a pele da gente. Agora me diga como o português chama água-viva.
Claro que não sei.
Caravela. Se não acredita, tira no dicionário.
Antes que ele fizesse a volta completa e chegasse de novo ao navio de guerra, agradeci e dei prudentemente o assunto por encerrado.
E para encerrar mesmo, de uma vez por todas, só repetindo Paulo Rónai, mestre no assunto, ao citar Cervantes, para quem a tradução “é o avesso de uma tapeçaria”. Ou Goethe, ao comparar os tradutores “aos alcoviteiros, que nos elogiam uma beldade meio velada como altamente digna de amor, e que despertam em nós uma curiosidade irresistível de conhecer o original”.

Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula

Laerte: sempre atual

 

Fartura e carência

Mas o pior é o súbito cansaço de tudo. Parece uma fartura, parece que já se teve tudo e que não se quer mais nada. Cansaço dos Beatles. E cansaço também daqueles que não os são. Cansaço inclusive de minha liberdade íntima que foi tão duramente conquistada. Cansaço de um amar o outro. Melhor seria o ódio. O que me salvaria dessa impressão de fartura – é fartura ou uma liberdade de que está sendo inútil? – seria a raiva. Não um tipo de raiva amorosa que existe. Mas a raiva simples e violenta. Quanto mais violenta, melhor. Raiva dos que não sabem de nada. Raiva também dos inteligentes do tipo que dizem coisas. Raiva do cinema novo, por que não? E do outro cinema também. Raiva da afinidade que sinto com algumas pessoas, como se já não houvesse fartura de mim em mim. E raiva do sucesso? O sucesso é uma gafe, é uma falsa realidade. A raiva me tem salvado a vida. Sem ela o que seria de mim? Como suportaria eu a manchete que saiu um dia no jornal dizendo que 100 crianças morrem no Brasil diariamente de fome? A raiva é a minha revolta mais profunda de ser gente? Ser gente me cansa. E tenho raiva de sentir tanto amor. Há dias que vivo de raiva de viver. Porque a raiva me envivece toda: nunca me senti tão alerta. Bem sei que isso vai passar, e que a carência necessária volta. Então vou querer tudo, tudo! Ah como é bom precisar e ir tendo. Como é bom o instante de precisar que antecede o instante de se ter. Mas ter facilmente, não. Porque essa aparente facilidade cansa. Até escrever está sendo fácil? Por que é que eu escrevia com as entranhas e neste momento estou escrevendo com a ponta dos dedos? É um pecado, bem sei, querer a carência. Mas a carência de que falo é tão mais plenitude do que essa espécie de fartura. Simplesmente não a quero. Vou dormir porque não estou suportando este meu mundo de hoje, cheio de coisas inúteis. Boa noite para sempre, para sempre. Até sábado que vem. E não me respondam: não quero ouvir a voz humana. E se suporto a minha voz se despedindo é porque ela piora de muito a minha raiva.
Só uma raiva, no entanto, é bendita: a dos que precisam.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Tudo sobre minha irmã

Acordei, olhei para o celular: mensagem dela, rindo. Postei um negócio nas redes sociais ontem e ninguém entendeu direito, só ela. E eu amanheci sorrindo porque ela entendeu. Porque ela sempre entende. Porque ela existe. Porque eu sei que enquanto houver ela, sempre haverá alguém que entenda.
Ela é muito diferente de mim. Uma fala pelos cotovelos, pelos joelhos, pelos calcanhares e a outra raramente pronuncia uma sequência maior do que quatro palavras em série. Uma penteia o cabelo três vezes por hora, a outra nem sabe a cor da própria escova. Uma é profissional exemplar, técnica, objetiva, a outra se atrapalha com os e-mails, tem medo de se impor, pede socorro.
Ela é muito igual a mim. A sobrancelha tão cheia de falhas. A dependência dos óculos. O ódio por salto fino. O jeito sorridente de olhar para a vida. A firmeza, sin perder la ternura jamás. A capacidade de dizer o que precisa ser dito na hora certa, por mais difícil que isso possa ser. A capacidade de reconhecer que as nossas falhas não moram só nas sobrancelhas.
Olho para trás e é mesmo incrível: nosso amor sobreviveu a uma quantidade inacreditável de pancadarias. As brigas pelos bombons da caixa azul de especialidades Nestlé. O “Vai tomar banho você primeiro – Não, você primeiro – Não, você vai primeiro porque eu falei primeiro”. As canetas coloridas desaparecidas semeando a discórdia. As disputas por quem iria no banco da frente. Sobre o que tocaria no rádio. Sobre quem deixou o copo em cima do móvel. As polêmicas sobre os sapatos e brincos roubados na sexta à noite.
Foi ela que falou “Para de sair com esse cara que ele é um babaca” e eu respondi “Cala a boca, você nem conhece ele”. E depois que o tempo passava… É claro que ela tinha razão. Ela sempre vê tudo o que eu não consigo ver. Fui eu quem sempre disse “Não faz isso que a mamãe vai ficar brava – Vai nada” e vinha a mamãe e ficava louca da vida. E as duas ouviam o sermão juntas, cúmplices, caladas. Hoje, adultas, continua igualzinho.
Foi ela que sempre esteve. Quando eu caí de boca do balanço. Quando arrumei encrenca com uns grandalhões na escola. Quando passei no vestibular. Quando tomei um pé na bunda e fui pro fundo do poço. Fui eu que sempre estive. Quando ela enfiou o joelho em uns pregos. Quando ela ficou em recuperação em história pela quarta vez. Quando ela começou no primeiro emprego. Quando ela teve a primeira contração para dar à luz.
É ela que conhece minha história toda. Às vezes até mais do que eu mesma conheço. Sou eu que conheço a dela, até naquelas partezinhas que nem ela lembra. É ela que sabe me dizer o que preciso fazer quando me desespero. Sou eu que sei dizer como o cabelo dela fica melhor. E mesmo que ela nunca me obedeça, eu continuarei dizendo.
É o cheiro dela que é o cheiro da minha casa em qualquer lugar do mundo. É o meu abraço que é a certeza que ela pode ter a qualquer tempo. É pra ela que eu posso falar um monte de coisa sem pensar. É comigo que ela pode fazer grosseria sem que eu a ame menos por isso.
É ela, minha companheira através do tempo. Que sempre esteve de mãos dadas comigo mesmo quando a distância achava que não ia permitir. A gente ri da distância. A gente ri do tempo e das dores do passado. É ela que me defende que nem bicho. É por ela que eu rosno, eu mordo e avanço. É para ela que eu olho. É ela que olha por mim. É ela. Sou eu. Somos duas. Somos uma. Somos, sempre fomos, sempre seremos.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Apelo ao medo

 


Esta falácia aposta no medo do público, criando a ameaça de um futuro assustador caso uma determinada proposta seja escolhida. Em vez de oferecer provas concretas de que essa proposta levaria mesmo a tal cenário sombrio, esse tipo de argumento é baseado apenas em retórica, ameaças ou mentiras descaradas. Por exemplo: “Peço que todos os funcionários dessa empresa votem no meu candidato na próxima eleição. Se o outro candidato ganhar, ele irá aumentar impostos e vocês irão perder seus empregos.”
Aqui vai um outro exemplo, do livro O processo (Kafka): “É melhor você me entregar todos os seus objetos de valor antes que a polícia chegue aqui. Senão, os policiais vão colocá-los num depósito, e as coisas tendem a se perder no depósito.” Embora seja quase uma ameaça, ainda que sutil, há uma tentativa de argumentação. Ameaças ostensivas ou ordens que não tentem oferecer alguma evidência não podem ser confundidas com esta falácia, mesmo que busquem explorar o medo de alguém (Engel). Quando um apelo ao medo descreve uma série de eventos aterrorizantes que irão ocorrer como resultado de uma determinada opção – sem conexões causais claras entre a proposta e essas consequências –, o argumento fica próximo à falácia da bola de neve. E quando a pessoa fazendo o apelo ao medo oferece apenas uma alternativa à proposta atacada, a falácia também pode ser um tipo de falso dilema.

Ali Almossawi, in O livro ilustrado dos maus argumentos

Torto Arado / 15

Belonísia me encontrou dobrando algumas peças de roupa e guardando na mala que pertenceu a nossa avó. Vi seus olhos surpresos com a descoberta e não fui capaz de comunicar nada sobre o que estava fazendo. Nem ela. Seu olhar era inquisidor, árido como o tempo que nos cercava, e minha vergonha era suficiente para que sequer tentasse justificar o que fazia. Chorei depois que minha irmã saiu, porque tinha a certeza de que estava contribuindo para seu sofrimento. Estava tendo encontros com nosso primo, talvez ela já desconfiasse da gravidez, mas além de tudo isso, eu era sua irmã – não tínhamos segredos, ou ao menos evitávamos ter – e havia me encerrado em meu mundo naquelas últimas semanas, esquecendo-me da família e dela, principalmente, que parecia cada vez mais distante.
Não suportei recordar seu olhar, chorei distante de casa, não poderia mais continuar com a ideia de deixar Água Negra, precisava dizer a Severo que queria continuar a viver na fazenda, que enfrentaríamos nossos pais, que no fim tudo daria certo. Construiríamos nossa casa perto da casa de tio Servó e tia Hermelina. Era assim que deveria ser quando dois jovens se uniam; construíam sua casa no terreiro da casa dos pais, havia uma comunicação e a espera de uma espécie de consentimento por parte do gerente da fazenda para que começassem a erguê-la. Faríamos nossa casa como todas as outras, com o barro das várzeas, com as forquilhas que forjávamos das matas. Cobriríamos com o junco que tomou conta do leito do Utinga com a grande seca. Quando estivéssemos estabelecidos poderíamos planejar a nossa partida, ir atrás dos sonhos de Severo, que passaram a ser meus também. Não queria também viver o resto da vida ali, ter a vida de meus pais. Se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando nossos poucos pertences. Se não pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores havia nascido. Aquele sistema de exploração já estava claro para mim. Mas eu era muito nova e aquele não seria o momento, muito menos as circunstâncias adequadas para partir.
Puxei a mala de debaixo da cama e retirei tudo o que havia guardado. Não iria seguir a viagem com Severo, para um destino incerto, de fazenda em fazenda até chegar à cidade. Iria encontrá-lo naquele mesmo dia para dizer que falaria tudo aos meus pais e que permaneceríamos ali, juntos, se assim quisesse. Se quisesse deixar a fazenda, seguiria só sua vida, que se sentisse livre. Eu criaria a criança, não nos faltaria família. Não seria abandonada por meus pais. Eles eram rigorosos na nossa educação, mas até esse rigor tinha um limite. Terminariam por me ajudar, me acolheriam em casa, não haveria mágoa nem rancor. Até Belonísia se renderia ao sorriso do sobrinho e eu poderia dá-lo para que batizasse, o que significaria um gesto de aproximação e perdão pelas diferenças que haviam surgido entre nós nos últimos meses.
Havia também o que foi dito pela encantada de dona Miúda, a tal Santa Rita Pescadeira. Não me deixava impressionar pelos encantados, estava tão acostumada à sua presença que não me permitia envolver pelo mundo de obrigações e interditos da crença. A distância me protegia das bênçãos ou infortúnios, era o que esperava. Mas também não havia sido o acaso que me trouxera aquela mensagem. Ou se fosse o acaso, era fato que o que foi dito se endereçava a mim, e achava que apenas eu e Severo sabíamos. Permaneci no limite entre a crença e a descrença. Passei noites em claro, pensando no significado das palavras “vitória” e “derrota” e o que tudo aquilo poderia dizer sobre a viagem, sobre o filho, sobre minha vida com Severo. Minha ansiedade aumentou. Imaginava o porquê da encantada segurar meu braço e não o de dona Tonha que estava ao meu lado, ou o braço de Crispina de mãos dadas com o sobrinho e a irmã Crispiniana. Será que dona Miúda já havia me visto deitada com Severo no meio da mata? Sua casa não era muito próxima do lugar onde costumávamos nos encontrar, e ela parecia ser muito idosa para sair vagando pela mata e bisbilhotar dois jovens em momentos de afeto.
Encontrei Severo no mesmo lugar de sempre. A jaqueira fazia uma sombra rara, considerando a estiagem que se prolongava além do esperado. Comuniquei que havia começado a separar algumas roupas para nossa viagem, mas que Belonísia tinha me surpreendido. Gesticulei muito para expressar o quanto não estava segura da viagem. Para tentar fazê-lo compreender que eu era muito nova. Minhas mãos iam à cabeça e ao peito numa urgência que o deixou sobressaltado. Quis fazer com que soubesse que aquela fuga seria uma ruptura – e cruzei meus braços para depois separá-los – e a traição imperdoável por meus pais. Por tudo que eles haviam vivido, por tudo que fizeram por nós. Que não era certo com Tio Servó e tia Hermelina, da mesma forma. Que eles ficariam aflitos – levei a mão direita ao meu rosto – e que eu não sabia como cuidar de uma criança sem ter minha mãe por perto, apesar de ser a mais velha e de ter cuidado um pouco de todos os outros irmãos.
Severo apenas se aproximou e me acolheu em seus braços. Disse que era normal que estivesse aflita, mas que já se sentia homem e pronto para deixar a fazenda. Que não falaria de imediato aos pais porque enfrentaria resistência, mas que em breve, quando encontrasse pouso e trabalho, mandaria notícias e diria qual era o seu destino. Senti vontade de dizer que ele poderia ir só, que eu permaneceria ali, esperaria a criança nascer. Ficaria com meus pais, trabalharia em Água Negra. Quando ele estivesse estabelecido, iria encontrá-lo, com as bênçãos de Zeca e Salu. Mas me faltou coragem. Estava com o coração quebrantado com a iminência da separação, seja de Severo ou da minha família. Com muito sofrimento, nos despedimos sem decidir nossos destinos.
Na manhã seguinte, Sutério apareceu em nossa casa para dizer que meu pai precisava terminar o pequeno barramento que fazia no riacho. Que precisava organizar os trabalhadores para capinar e fazer a coivara, deixar a terra limpa, sempre, para quando a chuva chegasse. Entrou em nossa cozinha e perguntou onde havíamos colhido as batatas-doces. Meu pai respondeu que havíamos comprado na feira da cidade. Com que dinheiro, ele quis saber. Vendemos o resto de azeite de dendê que tínhamos fabricado, disse. Sutério pegou a maior parte da batata-doce com as duas mãos grandes que tinha e levou para a Rural que havia deixado em nossa porta. Pilhou também duas garrafas de dendê que guardávamos para fazer os peixes miúdos que pescávamos no rio. Lembrou a meu pai da terça parte que tinha que dar da produção do quintal. Mas as batatas não eram produção do quintal. Da terra seca não brotava nem pasto, muito menos batata. E a secura era tanta que nem as várzeas estavam sendo cultivadas. No leito do rio, onde não havia água, era possível encontrar uma lama que apodrecia as sementes, de onde também não brotava nada, apenas taboa para fazer esteira, sacola e teto de casa. Vi a vergonha de meu pai crescer em nossa frente, sem poder fazer nada. Zeca Chapéu Grande era um curador respeitado e conhecido além das cercas de Água Negra. Mas ali, nos limites da fazenda, sob o domínio da família Peixoto – que quase não colocava os pés por lá a não ser para dar ordens, pagar ao gerente e dizer que não poderíamos fazer casa de tijolo – e de Sutério, sua lealdade pela morada que havia recebido no passado, quando vagava por terra e trabalho, falava mais alto. Vi minha mãe se movimentar, seus olhos se injetaram indignados, mas se deteve ao perceber meu pai se sentindo incapaz de questionar e reclamar sobre qualquer coisa. Muito pelo contrário, ainda colaborava com sua liderança espiritual para a manutenção da ordem entre as famílias que moravam ali. Era a ele que Sutério ou qualquer um dos herdeiros se dirigia para pedir a intervenção em conflitos dos mais variados, desde animal comendo em roça alheia até construção levantada com material que descumprisse as interdições impostas aos moradores.
Não poderíamos feri-lo ainda mais em sua humilhação, pedindo que ele tomasse de volta as batatas-doces que havíamos adquirido com nosso trabalho na feira. Como foi longa aquela noite. Não dormi. A insônia havia se tornado companheira nas últimas semanas. Pensei nas palavras de Severo sobre a situação de nossas famílias na fazenda. Que a vida toda estaríamos submissos, sujeitos às humilhações, como a pilhagem do nosso alimento. Que eu tinha um papel nisso tudo, e que meus pais precisavam de mim para mudar de vida. Que poderíamos, sim, comprar nossa própria terra e vir buscá-los. Que só assim conseguiríamos ter uma vida digna.
Dei um jeito de encontrar Severo, mesmo sem ter combinado. Quando nos vimos, precisei apenas olhar para que ele soubesse que havia me decidido pela partida. Então planejamos o dia exato, a hora, até onde seguiríamos andando e de onde tentaríamos carona para deixar a Chapada Velha. Na madrugada da partida, a mala antiga de Donana estava arrumada, com a poeira espanada, para que eu pudesse levar o pouco que tinha para essa nova vida que despontava. Levantei enquanto dormiam, pedi a Deus pela saúde e vida de todos pelo tempo que passaria fora. Pedi que os encantados me ajudassem a não ser considerada uma desonra e que, quando retornasse com dinheiro, já estabelecida em nossa terra, para buscar nossas famílias, todos entendessem que aquela viagem havia sido por uma boa causa. Pedi a Deus, especialmente por Belonísia, que há pouco mais de dez anos compartilhou comigo o incidente que mudou de certa forma nossas vidas. Quando deixei a casa pela porta do quintal, no sereno da noite, não pude evitar de olhar para trás por algumas vezes, enquanto seguia pela estrada ao encontro de Severo. Enumerava as coisas que levava comigo e tudo que deixava para trás. Quase desisti nesse exato momento, deixaria Severo partir sozinho, mas a imagem de Sutério levando nosso pouco suprimento, e a fome e o improviso que se seguiram para fazermos a refeição mais tarde, me deram a firmeza necessária para prosseguir. Dentre as coisas que levava, e talvez a que mais me machucava, era a minha língua. Era a língua ferida que havia expressado em sons durante os últimos anos as palavras que Belonísia evitava dizer por vergonha dos ruídos estranhos que haviam substituído sua voz. Era a língua que a havia retirado de certa forma do mutismo que se impôs com o medo da rejeição e da zombaria das outras crianças. E que por inúmeras vezes a havia libertado da prisão que pode ser o silêncio.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Flávio Venturini & Orquestra Opus / Clube da Esquina II

Aparição

Tão de súbito, por sobre o perfil noturno da casaria, tão de súbito surgiu, como um choque, um impacto, um milagre, que o coração, aterrado, nem lhe sabia o nome: — a lua! — a lua ensanguentada e irreconhecível de Babilônia e Cartago, dos campos malditos de após-batalha, a lua dos parricídios, das populações em retirada, dos estupros, a lua dos primeiros e dos últimos tempos.

Mário Quintana, in Sapato florido

Deixa solto, doutor

Desculpem, senhores editores das revistas masculinas, mas não quero saber de conselhos para se alcançar um corpo malhadão. A barriga tábua-de-tanque é dom de quem tem, não insistam em torná-la item obrigatório para ser homem nestes tempos. Não capitularemos ao ridículo.
Muito menos peçam, como vi numa revista, para se perder a vergonha de tratar com os amigos sobre os cremes que estamos carregando escondidos na maleta, como se eu e o Arnaldo Jabor admitíssemos carregar outra coisa conosco que não um volume qualquer do Bukowski, um canivete suíço e o par de joelheiras para um time-contra no Aterro. Mudamos, nem sempre por iniciativa própria, mas vamos com calma. Temos um Zé do Boné a zelar. Ainda não será dessa vez que receberemos de vocês, Moisés dos aquários das Redações, a tábua com as dez melhores cantadas a se dar numa mulher ou como abrir com estilo contemporâneo a porta de um single-bar. Temos nossas próprias manhas. Relaxem.
São muitas revistas dizendo que tipo de flor entregar, o que cozinhar para ela no primeiro encontro (esqueça o amendoim, deixa cascas nos dentes). Dos conselhos de homem que tenho ouvido, prefiro seguir exclusivamente a sabedoria do flanelinha – “deixa solto, doutor”. É o que tenho feito. Se o mocassim colorido combina com jeans customizado? Por favor, senhores.
Eu sou do tempo em que o exercício da masculinidade plena era atividade simples, algo que precisava como apêndice estético apenas do apoio de um bom pente Flamengo e, pronto - deixa a vida me levar. Milhões de homens passaram felizes suas existências balizados por uma única filosofia: “Dura lex, sed lex, no cabelo só Gumex”. Infelizmente, já era. Complicou. Tenho visto cada vez mais revistas especializadas em dizer como o homem, se gordo, deve se vestir de preto para anular as adiposidades ao redor da barriga, e se de cabelos finos, como torná-los mais cheios com o xampu de ovo transgênico.
Ora, senhores editores dessa nova tendência das bancas, me poupem os poros. Acabei de limpá-los com o Clay Mask da Zirh. É uma loção relaxante, mas não o suficiente para me obnubilar a razão.
Seria reduzir demais o espectro de uma revista masculina deixá-la em eterno rodízio pelo corpo das deusas nuas e piadas de loura. Nada contra ampliar a pauta. Mas eis que se volta contra o macho, este que ainda há pouco ria da Nova e da Cláudia por estabelecerem para suas leitoras a obrigatoriedade de a cada estação do ano trocarem o tamanho dos seios – eis que se volta contra o macho a mesma ditadura. Ei, garotos, agora depilem os pêlos do peito. Ótimo. Agora vamos aplicar um silicone no peitoral.
Leio nessas revistas que ficou absolutamente impossível continuar homem no século XXI sem ter feito, por exemplo, um curso de vinho e saber a temperatura ideal para servi-lo. Não tenho a mínima ideia de que uva é feito o branco – e não arvoro aqui qualquer orgulho especial pela ignorância. Só quero ser dispensado, como até ontem, da súbita obrigatoriedade de frequentar esse vestibular cafona para ganhar inclusão sexual.
Repara só: como são de safra triste os senhores que, treinados a dispensar com elegância o cangote da moças, tentam seduzir cheirando a rolha.
As revistas masculinas, quase todas editadas por mulheres, estão ensinando o homem a aplacar a testosterona, suavizar o instinto e trabalhar a pegada de jeito menos extravagante. Querem-no sensível e ouvinte do que elas têm a dizer. Sejam românticos, rapazes, liguem no dia seguinte. É o contrário das mensais femininas, que obrigaram a mulherada a um papel mais agressivo. Recuperem o tempo perdido, tigresas. Caiam matando, guerreiras. Querem-nas turbinadas e assumindo o controle da situação. Como são infelizes homens e mulheres que pautam suas vidas pelas pautas dos editores de revistas.
Gerações inteiras de fortões achavam que bastava apertar um punho contra o outro, o método Atlas da Força Aérea Canadense, e elas se renderiam. Podia até ser, mas só até anteontem. Acabei de ler na banca: excesso de músculos cheira a falta de masculinidade.
Elas detestam marombados. Pior: mulheres gostariam que seus amigos gays fossem héteros, pois estão num momento em que cultuam machos sensíveis. Não aconselho meus pares a correrem atrás. Quando você, para entrar no perfil da moda, estiver acabando de ler toda a poesia de Bandeira, é bem provável que elas já tenham sido convocadas a preferirem o novo cafaja da novela das oito.
Machos, líderes, campeões, já soubemos de tudo. Hoje somos convencidos pelos sabichões da press de que não passamos de uns pobres coitados ignorantes das coisas da vida, compradores de revistas em busca de dicas espertas. Que roupa se deve usar para agradar a uma mulher no primeiro encontro? Cuidado para não estar mais perfumado do que ela.
Uma dessas publicações, que tenta ensinar o homem a se comportar segundo os novos valores da pele hidratada, lista cinquenta coisas sobre elas que ele, o papai-sabe-tudo na televisão de outrora, não sabe mais. Aqueles beijos que levavam nas orelhas e pareciam se derreter todas? Pois então. Depois de anos conformadas em se deixarem lambuzar, elas tomaram coragem para dizer. De-tes-tam. Inventem outra, rapazes.
Conheci mulheres, vítimas da opressão editorial, que começaram a semana com as unhas azuis e sexta-feira, quando saiu a nova edição da revista, precisaram trocar para o rosa-escuro. Outras, sexualmente tímidas, foram convencidas de que estavam fora de seu tempo e convocadas a colocar fogo no colchão, ou, quem sabe, na própria mesa do chefe. Os homens são as novas vítimas. Flagrados no contrapé, no momento em que boa parte deles ainda emula o Brucutu e puxa a Hula pelo cabelo nas boates, eles piscam inseguros diante das novas ordens. Revelem suas emoções, rapazes, mas em seguida corram ao dermatologista e providenciem um botox básico para aliviar as marcas de tanta expressão de carinho, amor e compreensão.
Caçar javali, Santo Asterix, socorrei!, era mais fácil.

Joaquim Ferreira dos Santos, in Em busca do borogodó perdido

A Mão de Deus



A Mão de Deus (1898), de Auguste Rodin

Com a cabeça dobrada sobre o peito, ruminava as palavras de Zorba e, subitamente, me veio ao espírito um cidade longínqua, coberta de neve. Havia parado para olhar, numa exposição de obras de Rodin, uma enorme mão de bronze, a Mão de Deus. A palma estava entreaberta e, no meio desta palma, estáticos, enlaçados, lutavam e se confundiam um homem e uma mulher.
Uma mocinha se aproximou e parou a meu lado. Perturbada também, olhava o inquietante e eterno abraço do homem e da mulher. Ela era esguia, bem vestida, espessos cabelos louros, um queixo forte e lábios finos. E eu, que detesto comprometer-me em conversas fáceis, não sei o que me deu. Voltei-me para ela:
Em que pensa? — perguntei.
Se ao menos pudéssemos escapar! — murmurou ela com desgosto.
Para ir aonde? A mão de Deus está por toda a parte. Não há salvação. Você o lamenta?
Não. Pode ser que o amor seja a alegria mais intensa que existe na terra. É possível. Mas, vendo esta mão de bronze, tenho vontade de fugir dele.
Você prefere a liberdade?
Sim.
Mas, se não é senão quando obedecemos à mão de bronze que somos livres? Se a palavra de adeus não tivesse o sentido cômodo que lhe dá o povo?
Ela me olhou, inquieta. Seus olhos eram de um cinza metálico, seus lábios secos e amargos.
Não compreendo — disse ela, e afastou-se como se assustada.
Desapareceu. E desde então não havia me lembrado dela. E, no entanto, ela vivia certamente em mim, sob a campa de meu peito — e hoje, nesta costa deserta, ei-la que surge do fundo de meu ser, pálida e queixosa.
Sim, tinha me comportado mal; Zorba tinha razão. Era um bom pretexto para aquela mão de bronze, feito o primeiro contato, as primeiras palavras doces pronunciadas, e nós poderíamos, pouco a pouco, sem tomar consciência nem um nem outro, nos abraçar e unir na palma de Deus. Mas, havia-me lançado bruscamente da terra ao céu, e a mulher espantada fugira.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Senhor Capitão

O homem só, a bordo de seu silêncio,
não necessita bens que não sejam velas remos;

língua olhos sexo secam no vento sem vontade
de outra pátria que não o esquecimento;

se o mar tivesse janelas talvez houvesse
outro mundo no qual esse homem descansasse

o seu desprezo;
por onde passa tudo se quebra

grave, mesmo a linha
do horizonte, mesmo o voo das aves.

Eucanaã Ferraz

Mudanças

 

— Tarantão, meu patrão...

           Suspa! — que me não dão nem tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da cozinha. Aí — ...“ai-te...” — a voz da mulher do caseiro declarou, quando o caso começou. Vi o que era. E, pois. Lá se ia, se fugia, o meu esmarte Patrão, solerte se levantando da cama, fazendo das dele, velozmente, o artimanhoso. Nem parecesse senhor de tanta idade, já sem o escasso juízo na cabeça, e aprazado de moribundo para daí a dia desses, ou horas ou semanas. Ôi, tenho de sair também por ele, já se vê, lhe corro todo atrás. Ao que, trancei tudo, assungo as tripas do ventre, viro que me viro, que a mesmo esmo, se me esmolambo, se me despenco, se me esbandalho: obrigações de meu ofício. — “Ligeiro, Vagalume, não larga o velho!” — acha ainda de me informar o caseiro Sô Vincêncio, presumo que se rindo, e: — “Valha-me eu!” — rogo, ih, danando-o, êpa! e desço em pulos passos esta velha escada de pau, duma droga, desta antiquíssima fazenda, ah...
E o homem — no curral, trangalhadançando, zureta, de afobafo — se propondo de arrear cavalo! Me encostei nele, eu às ordens. Me olhou mal, conforme pior que sempre. — “Tou meio precisado de nada...” — me repeliu, e formou para si uma cara, das de desmamar crianças. Concordei. Desabanou com a cabeça. Concordei com o não. Aí ele sorriu, consigo meio mesmo. Mas mais me olhou, me desprezando, refrando: — “Que, o que é, menino, é que é sério demais, para você, hoje!” Me estorvo e estranhei, pelo peso das palavras. Vi que a gente estávamos era em tempo-de-guerra, mas com espadas entortadas; e que ele não ia apelar para manias antigas. E a gente, mesmo, vesprando de se mandar buscar, por conta dele, o doutor médico, da cidade, com sábias urgências! Jeito que, agora, o velho me mandava pôr as selas. Bom desatino! Nem queria os nossos, mansos, mas o baio-queimado, cavalão alto, e em perigos apresentado, que se notava. E o pedresão, nem mor nem menor. Os amaldiçoados, estes não eram de lá, da fazenda, senão que animais esconhecidos, pegados só para se saber depois de quem fosse que sejam. Obedeci, sem outro nenhum remédio de recurso; para maluco, maluco-e-meio, sei. O velho me pespunha o azul daqueles seus grandes olhos, ainda de muito mando delirados. Já estava com a barba no ar — aquela barba de se recruzar e baralhar, de nenhum branco fio certo. Fez fabulosos gestos. Ele estava melhor do que na amostra.
Mal pus pé em estrivos, já ele se saía pela porteira, no que esporeava. E eu — arre a Virgem — em seguimentos. Alto, o velho, inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer. O que era se ser um descendente de sumas grandezas e riquezas — um Iô João-de-Barros-Diniz-Robertes! — encostado, em maluca velhice, para ali, pelos muitos parentes, que não queriam seus incômodos e desmandos na cidade. E eu, por precisado e pobre, tendo de aguentar o restante, já se vê, nesta desentendida caceteação, que me coisa e assusta, passo vergonhas. O cavalo baio-queimado se avantajava, andadeiro de só espaços. Cavalo rinchão, capaz de algum derribamento. Será que o velho seria de se lhe impor? Suave, a gente se indo, pelo cerrado, a bom ligeiro, de lados e lados. O chapéu dele, abado pomposo, por debaixo porém surgindo os compridos alvos cabelos, que ainda tinha, não poucos. — “Ei, vamos, direto, pegar o Magrinho, com ele hoje eu acabo!” — bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal. — “Mato! Mato, tudo!” — esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o grito, revelando a causa e verdade: — “Eu ’tou solto, então sou o demônio!” A cara se balançava, vermelha, ele era claro demais, e os olhos, de que falei. Estava crente, pensava que tinha feito o trato com o Diabo!
P’r’onde vou? — a trote, a gente, pelas esquerdas e pelas direitas, pisando o cascalharal, os cavalos no bracear. O velho tendo boa mão na rédea. De mim, não há de ouvir, censuras minhas. Eu, meus mal-estares. O encargo que tenho, e mister, é só o de me poitar perto, e não consentir maiores desordens. Pajeando um traste ancião — o caduco que não caia! De qualquer repente, se ele, tão doente, por si se falecesse, que trabalhos medonhos que então não ia haver de me dar? Minha mexida, no comum, era pouca e vasta, o velho homem meu Patrão me danava-se. Me motejou: — “Vagalume, você então pensa que vamos sair por aí é p’ra fazer crianças?” A voz toda, sem sobrossos nem encalques. E ia ter a coragem de viagem, assim, a logradouros — tão sambanga se trajando? Sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim sem cor, calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um colete, enfiado no braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar. Um de espantos! E, ao menos, desarmado, senão que só com uma faca de mesa, gastada a fino e enferrujada — pensava que era capaz, contra o sobrinho, o doutor médico: ia pôr-lhe nos peitos o punhal! — feio, fulo. Mas, me disse, com o pausar: — “Vagalume, menino, volta, daqui, não quero lhe fazer enfrentar, comigo, riscos terríveis.” Esta, então! Achava que tinha feito o trato com o Diabo, se dando agora de o mor valentão, com todas as sertanejices e braburas. Ah, mas, ainda era um homem — da raça que tivera — e o meu Patrão! Nisto, apontava o dedo, para lá ou cá, e dava tiros mudos. Se avançou, à frente, só avançávamos, a fora, por aí, campampantes.
Por entre arvoredos grandes, ora demos, porém, com um incerto homem, desconfioso e quase fugidiço, em incerta montada. Podia-se-o ver ou não ver, com um tal sujeito não se tinha nada. Mas o velho adivinhou nele algum desar, se empertigando na sela, logo às barbas pragas: — “Mal lhe irá!” — gritou altamente. Aproximou seu cavalão, volumou suas presenças. Parecia que lhe ia vir às mãos. Não é que o outro, no tir-te, se encolheu, borrafofo, todo num empate? Nem pude regularizar o de meu olhar, tudo expresso e distenso demais se passava. O velho achando que esse era um criminoso! — e, depois, no Breberê, se sabendo: que ele o era, de fato, em meios termos. Isto que é, que somente um Sem-Medo, ajudante de criminoso, mero. Nem pelejou para se fugir, dali donde moroso se achava; estava como o gato com chocalho. — “Ai-te!” — o velho, sacudindo sua cabeça grande, sem com que desenfezar-se: — “Pague o barulho que você comprou!” — o intimava. O ajudante-de-criminoso ouviu, fazendo uns respeitos, não sabendo o que não adiar. Aí, o velho deu ordem: — “Venha comigo, vosmicê! Lhe proponho justo e bom foro, se com o sinal de meu servidor...” E... É de se crer? Deveras. Juntou o homem seu cavalinho, bem por bem vindo em conosco. Meio coagido, já se vê; mas, mais meio esperançado.
Sem nem mais eu me sonhar, nem a quantas, frigido de calor e fartado. Aquilo tudo, já se vê, expunha a desarrazoada loucura. O velho, pronto em arrepragas e fioscas, no esbrabejo, estrepa-e-pega. No gritar: — “Mato pobres coitados!” Se figurava, nos trajos, de já ser ele mesmo o demo, no triste vir, na capetagem?
Só de déu e em léu tocávamos, num avante fantasmado. O ajudante-de-criminoso não se rindo, e eu ainda mais esquivançando. Nisto, o visto: a que ia com feixinho de lenha, e com a escarrapachada criança, de lado, a mulher, pobrepérrima. O velho, para vir a ela, apressou macio o cavalo. Receei, pasmado para tudo. O velho se safou abaixo o chapéu, fazia dessas piruetas, e outras gesticulações. Me achei: — “Meu, meu, mau! Esta é aquela flor, de com que não se bater nem em mulher!” Se bem que as coisas todas foram outras. O velho, pasmosamente, do doidar se arrefecia. Não é que, àquela mulher, ofereceu tamanhas cortesias? Tanto mais quanto ele só insistindo, acabou ela afinal aceitando: que o meu Patrão se apeou, e a fez montar em seu cavalo. Cuja rédea ele veio, galante, a pé, puxando. Assim, o nosso ajudante-de-criminoso teve de pegar com o feixe de lenha, e eu mesmo encarregado, com a criança a tiracolo. Se bem que nós dois montados; já se vê? — nessas peripécias de pato.
Só, feliz, que curta foi a farsalhança, até ali a pouco, num povoado. Onde o destino dessa pobre e festejada mulher, que se apeou, menos agradecida que envergonhada. Mas, veja um, e reveja, em o que às vezes dá uma boa patacoada. Por fato que, lá, havia, rústico, um “Felpudo”, rapaz filho dessa mulher. O qual, num reviramento, se ateou de gratidões, por ver a mãe tão rainha tratada. Mas o velho determinou, sem lhe dar atualmentes nem ensejos: — “Arranja cavalo e vem, sob minhas ordens, para grande vingança, e com o demônio!” Advirto, desse Felpudo: tão bom como tão não, da mioleira. No que — não foi, quê? — saiu, para se prover do dito cavalo; e vir, a muito adiante. Para vexar o pejo da gente, nessa toda trapalhada. Das pessoas moradoras, e de nós, os terceiros personagens. Mas, que ser, que haver? Os olhos do velho se sucediam. Que estragos?
Se o que seja. Se boto o reto no correto: comecei a me duvidar. Tirar tempo ao tempo. Mas, já a gente já passávamos pelo povoadinho do M’engano, onde meu primo Curucutu reside. Cujo o nome vero não é, mas sendo João Tomé Pestana; assim como o meu, no certo, não seria Vagalume, só, só, conforme com agrado me tratam, mas João Dosmeuspés Felizardo. Meu primo vi, e a ele fiz sinal. Lhe pude dar, dito: — “Arreia alguma égua, e alcança a gente, sem falta, que nem sei adonde ora andamos, a não ser que é do Dom Demo esta empreitada!” Meu primo prestes me entendeu, acenou. E já a gente — haja o galopar — no encalço do velho, estramontado. Que, nisto de ainda mais se sair de si, desadoroso, num outro assomo ao avante se lançava: — “Eu acabo com este mundo!”
Aí, o mais: poeiras! Ao pino. E, depois de uma virada, o arraial do Breberê, a gente ia dar de lá chegar, de entrada. O vento tangendo, para nós, pedaços de toque de sinos. Do dia me lembrei: que sendo uma Festa de Santo. E uns foguetes pipoquearam, nesse interintintim, com no ar azuis e fumaças. O Patrão parou a nós todos, a gesto, levantado envaidecido: — “Tão me saudando!” — ele se comprouve, do a-tchim-pum-pum dos foguetes, que até tiros. Não se podia dele discordar. Nós: o ajudante-de-criminoso, o Felpudo filho da pobre mulher, meu primo Curucutu; e eu, por ofício. Que, de galope, no arraial então entrou-se, nós dele assim, atrasmente, acertados. No Breberê.
Foi danado. Lá o povo, se apinhando, no largo enorme da igreja, procissão que se aguardava. Ô velho! — ele veio, rente, perante, ponto em tudo, pá! p’r’ achato, seu cavalão a se espinotear, z’t-zás...; e nós. Aí, o povaréu fez vêvêvê: pé, p’rá lá, se esparziam. O velho desapeou, pernas compridas, engraçadas; e nós. Meio o que pensei, pus a rédea no braço: que íamos ter de pegar nos bentos tirantes do andor. Mas, o velho, mais, me pondo em espantos. Vem chegando, discordando, bradou vindas ao pessoal: — “Vosmicês!...” — e sacou o que teria em algibeiras. E tinha. Vazou pelo fundo. Era dinheiro, muitíssimas moedas, o que no chão ele jogava. Suspa e ai-te! — à choldraboldra, desataram que se embolaram, e a se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar prodigiosamente aquela porqueira imortal. Tribuzamos. Safanamos. Empurrou-se para longe a confusão. No clareado, se tomou fôlego. Porém, durante esse que-o-quê, o padre, à porta da igreja, sobrevestido se surgia. O velho caminhou para o padre. Caminhou, chegou, dobrou joelho, para ser bem abençoado; mas, mesmo antes, enquanto que em caminhando, fez ainda várias outras ajoelhadas: — “Ele está com um vapor na cabeça...” — ouvi mote que glosavam. O velho, circunspecto, alto, se prazia, se abanava, em sua barba branca, sujada. — “Só saiu de riba da cama, para vir morrer no sagrado?” — outro senhor perguntava. O que qual era um “Cheira-Céu”, vizinho e compadre do padre. Mais dizia: — “A ele não abandono, que devo passados favores à sua estimável família.” Ouviu-o o velho: — “Vosmicê, venha!” E o outro, baixo me dizendo: — “Vou, para o fim, a segurar na vela...” — assentindo. Também quis vir um rapaz Jiló; por ganâncias de dinheiro? O velho, em fogo: — “Cavalos e armas!” — queria. O padre o tranquilizou, com outra bênção e mão beijável. Já menos me achei: — “Lá se avenha Deus com o seu mundo...” Montou-se, expediu-se, esporeou-se, deixando-se o Breberê para trás. Os sinos em toada tocavam.
Seja — galopes. Depois de nenhum almoço, meio caminho desandado; isto é, caminho-e-meio. Ao que, o velho: pá! impava. Aí, em beira da estrada-real, parava o acampo dos ciganos. — “Tira lá!” — se teve: aos com cachorros e meninos, e os tachos, que consertavam. No burloló, esses ciganos, em tretas, tramóias, zarandalhas; cigano é sempre descarado. No entendimento do vulgo: pois, esses, propunham cangancha, de barganhar todos os cavalos. — “À p’r’-a-parte! Cruz, diabo!” Mas o velho convocou; e um se quis, bandeou com a gente. O cigano Pé-de-Moleque; para possíveis patifarias? Me tive em admirações. Tantos vindo, se em seguida. Assim, mais um Gouveia “Barriga-Cheia”, que já em outros tempos, piores, tinha sido ruim soldado. Já me vejo em adoidadas vantagens?
Assim a gente, o velho à frente — tiplóco... t’plóco... t’plóco... — já era cavalaria. Mais um, ainda, sem cujo nem quem: o vagabundo “Corta-Pau”; o sem-que-fazer, por influências. A gente, com Deus: onze! Ao adiante — tira-que-tira — num sossego revoltoso. Eu via o velho, meu Patrão: de louvada memória maluca, torre alta. Num córrego, ele estipulou: — “Os cavalos bebem. A gente, não. A gente não tenha sede!” Por áspera moderação, penitência de ferozes. O Patrão, pescoço comprido, o grande gogó, respeitável. O rei! guerreiro. Posso fartar de suar; mas aquilo tinha para grandezas.
— “Mato sujos e safados!” — o velho. Os cavalos, cavaleiros. Galopada. A gente: treze... e quatorze. A mais um outro moço, o “Bobo”, e a menos um João-Paulino. Aí, o chamado “Rapa-pé”, e um amigo nosso por nome anônimo; e, por gostar muito de folguedos, o preto de Gorro-Pintado. Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer ideias. Era um desembaraçamento — o de se prezar, haja sol ou chuva. E gritos de chegar ao ponto: — “Mato mortos e enterrados!” — o velho se pronunciava.
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro. — “Vou ao demo!” — bramava. — “Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!” — de seu sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Súspe-te! que eu não era um porqueira; e quem não entende dessas seriedades? Aí o trupitar — cavalos bons! — que quem visse se perturbasse: não era para entender nem fazer parar. Fechamos nos ferros. — “Vigie-se, quem vive!” — espandongue-se. Não era. Num galopar, ventos, flores. Me passei para o lado do velho, junto — ... tapatrão, tapatrão... tarantão... tarantão... — e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses muito se mexiam. Me viu mil. — “Vagalume!” — só, só, cá me entendo, só de se relancear o olhar . — “João é João, meu Patrão...” Aí: e — patrapão, tampantrão, tarantão... — cá me entendo. Tarantão, então... — em nome em honra, que se assumiu, já se vê. Bravos! Que na cidade já se ia chegar, maiormente, à estrupida dos nossos cavalos, desbestada.
Agora, o que é que ia haver? — nem pensei; e o velho: — “Eu mato! Eu mato!” Ia já alta a altura. — “Às portas e janelas, todos!” — trintintim, no desbaralhado. E eu ali no meio. O um Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Bobo, o Gorro-Pintado; e o sem-nome nosso amigo. O Velho, servo do demo — só bandeiras despregadas. O espírito de pernas-para-o-ar, pelos cornos da diabrura. E estávamos afinal-de-contas, para cima de outros degraus, os palhaços destemidos. Estávamos, sem até que a final. Ah, já era a rua. A cidade — catastrapes! Que acolhenças?
A cidade, estupefacta, com automóveis e soldados. Aquelas ruas, aldemenos, consideraram nosso maltrupício. A gente nem um tico tendo medo, com o existido não se importava. Ah, e o Velho, estardalhão? — que jurava que matava. Pois, o demo! vamos... O Velho sabia bem, aonde era o lugar daquela casa.
Lá fomos, chegamos. A grande, bela casa. O meu em glórias Patrão, que saudoso. Ao chegar a este momento, tenho os olhos embaciados. Como foi, crente, como foi, que ele tinha adivinhado? Pois, no dia, na hora justa, ali uma festa se dava. A casa, cheia de gente, chiquetichique, para um batizado: o de filha do Magrinho, doutor! Sem temer leis, nem flauteio, por ali entramos, de rajada. Nem ninguém para impedimento — criados, pessoas, mordomado. Com honra. Se festava!
Com surpresas! A família, à reunida, se assombrava gravemente, de ver o Velho rompendo — em formas de mal-ressuscitado; e nós, atrás, nesse estado. Aquela gente, da assemblança, no estatelo, no estremunho. Demais. O que haviam: de agora, certos sustos em remorsos. E nós, empregando os olhos, por eles. O instante, em tento. A outra instantaneação. Mas, então, foi que de repente, no fechar do aberto, descomunal. O Velho nosso, sozinho, alto, nos silêncios, bramou — dlão! — ergueu os grandes braços:
— “Eu pido a palavra...”
E vai. Que o de bem se crer? Deveras, que era um pasmar. Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se vê. Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! — e se saiu, foi por aí embora a fora, sincero de nada se entender, mas a voz portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar. Tive mais lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O Velho, fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, ideias já dissolvidas. O Velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que desconhecia.
Até que parou, porque quis. Os parentes se abraçavam. Festejavam o recorte do Velho, às quantas, já se vê. E nós, que atrás, que servidos, de abre-tragos, desempoeirados. Porque o Velho fez questão: só comia com todos os dele em volta, numa mesa, que esses seus cavaleiros éramos, de doida escolta, já se vê, de garfo e faca. Mampamos. E se bebeu, já se vê. Também o Velho de tudo provou, tomou, manjou, manducou — de seus próprios queixos. Sorria definido para a gente, aprontando longes. Com alegrias. Não houve demo. Não houve mortes.
Depois, ele parou em suspensão, sozinho em si, apartado mesmo de nós, parece’que. Assaz assim encolhido, em pequenino e tão em claro: quieto como um copo vazio. O caseiro Sô Vincêncio não o ia ver, nunca mais, à doidiva, nos escuros da fazenda. Aquele meu esmarte Patrão, com seu trato excelentriste — Iô João-de-Barros-Diniz-Robertes. Agora, podendo daqui para sempre se ir, com direito a seu inteiro sossego. Dei um soluço, cortado. Tarantão — então... Tarantão... Aquilo é que era!

Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

Lua Vermelha / Maria Bethânia

Diálogo

Nossa, este é o último lugar em que eu esperava encontrar alguém.
Sim, também nunca poderia imaginar encontrar alguém aqui dentro.
Você sempre vem aqui? Esta é a primeira vez que venho. Tenho pensado em refugiar-me aqui já faz algum tempo, mas só hoje tomei coragem e, num momento de distração, corri e consegui.
Sim, já frequento este lugar há alguns meses. É um tipo de esconderijo que eu tenho. Mas fico contente que mais uma pessoa o tenha descoberto. Não sinto ciúmes daqui e gostaria que muita gente viesse se juntar a mim, na verdade. Mas até hoje ninguém mais tinha aparecido. Quer um pedaço? Posso te dar metade.
Puxa, obrigado. Você é uma pessoa diferente. Por que está dividindo isso comigo? É claro que eu quero.
Tenho um fornecedor regular. Troco isso por canções, acredita? Sou cantor de óperas italianas. Você é de onde?
Italiano também, de Turim. Químico de profissão. Também faço trocas, mas nenhuma tão vantajosa quanto a sua.
É difícil falar em vantagem aqui dentro, como também em sorte, oportunidade ou destino. Já não sei mais o que significam essas palavras. Acho que o que aconteceu comigo é acaso e é só por isso que gosto de dividir tudo com os outros. Porque não penso que o ocultamento dos meus lances de sorte vai melhorar minha vida. Como tenho isso hoje, posso não ter mais amanhã ou mesmo daqui a um minuto. Não sei quem você é, pode até ser que seja um espião, mas não me importo. Não me importo com nada.
E você acha que é isso que pode estar te favorecendo?
Não, também não. Nada favorece nada. Não existem mais causas e consequências, nada que se possa mapear ou determinar e dizer: isso é por causa disso. Acho que, aqui dentro, nem mais a chuva é causada pelas nuvens. A ordem das coisas foi invertida ou subvertida, não sei, e só o que existe é cada minuto, segundo talvez. Quer mais um pedaço?
Concordo com você, totalmente. Vejo pessoas atribuindo a sorte a Deus, à higiene, à esperteza. Outros, ao contrário, atribuem seu azar à descrença ou também ao mesmo Deus que nos teria abandonado. Não associo nada a nada. Você acha que vamos sair daqui algum dia, que voltaremos a nos ver?
É estranho. Por que será que é tão necessário e até bom pensar sobre o futuro e sobre o passado, enquanto estamos aqui? Encontro alguém e geralmente esta é a primeira coisa em que penso. Será que algum dia voltarei a vê-lo? Será uma espécie de masoquismo?
Ao contrário. Acho que é credulidade, não sei, ingenuidade. Um prazer possível, estar ao lado das pessoas e pôr-se a imaginar encontros remotos, localidades desconhecidas. O que você mais gostaria de fazer na vida?
Isso é fácil. Comer não um, nem dois, mas três pedaços de pão quente seguidos. Só isso. Depois eu poderia morrer. Feliz. E você?
Claro, comer, comer e comer. Mas também tomar um banho quente e deitar numa cama com um lençol limpo.
Não pensa em encontrar alguém querido, um parente, uma namorada antiga?
Não. É estranho, mas essas vontades estão no fim da lista. Tenho medo, na verdade. Medo de encontrá-los e de não encontrá-los, medo do que foi feito de cada um de nós e deles, medo do que poderei dizer, porém mais ainda do que não poderei dizer, medo de lembrar e medo de esquecer. Quem são, quem serão as pessoas que deixamos para o lado de lá, o lado de cá que não é o mesmo para nenhum de nós, como dizer o que nem nós sabemos entender? Como dizer esse nosso encontro, agora? Quem é você, quando não estivermos mais aqui, daqui a um minuto ou daqui a dois, três anos, agora que já sabemos que as coisas estão se aproximando do fim?
Sim, é por isso que só penso em comer. A comida não faz perguntas. A língua da comida é universal. Por que nos pusemos tão prontamente a filosofar, aqui dentro, nessas condições?
Penso que não existem condições melhores para isso. É aqui que nasce toda a filosofia. E porque tudo isso é muito engraçado e preciso rir. Você não quer cantar uma ária de ópera para mim?
Quero sim, claro. Mas me desculpe, minha voz não está nada boa.
Assim que nos virmos novamente, vou fazer questão de dividir alguma coisa minha com você.
Não se preocupe, você já está dividindo. E não é sua amizade, conversa ou presença, não. Não é tampouco o fato de você falar italiano ou gostar de ópera. O que você está me dando é concreto, material.
Mas o quê? O que é que estou te dando além de te obrigar a dividir este nabo comigo?
Você usou uma palavra que não ouço há muito tempo. Já tinha até me esquecido dela. Falou “medo”. Disse tantas vezes, afirmou tantas vezes seguidas todos os medos que você tem, sem nenhum pudor de dizê-lo, que me deixou um pouco menos descrente. Não sei muito bem por quê. Mas precisava ouvir essa palavra, dita assim, em italiano mesmo, com tanto desprendimento. Obrigado. Quer mais um pedaço?

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

terça-feira, 27 de abril de 2021

Tio João Gordo

A madrugada estava justo acabando, mas eu já estava de pé, pronto, de café tomado, à espera. A ansiedade era demais. Tio João Gordo, um homem muito magro, de fala mansa, meio rouca, ia me levar à fazenda. Chegou ele a cavalo puxando um outro, que seria o meu. Cheiro bom de cavalo, mistura de suor, couro de arreio e o cheiro próprio dos cavalos. Todo bicho tem cheiro próprio, até os humanos. Mas cheiro próprio de cavalo é melhor que cheiro próprio de humano, como afirmou com justiça um presidente da República. E lá fomos os dois, o tio João Gordo nos seus sessenta anos e eu nos meus sete. Friozinho, o ar esbranquiçado de neblina, ninguém na rua, a cidade ainda não havia despertado para fora, estava despertando para dentro e prova disso eram a chaminés dos fogões de lenha soltando fumaça, sinal de que estavam acesos e de que o café estava sendo coado. Só o barulho das ferraduras batendo pontudas nas pedras e algum canto de galo, a gente não falava, acho que para não perturbar o silêncio, aí o bater pontudo das ferraduras ficou macio, surdo, tínhamos saído da cidade, estávamos na estrada de terra. De cima do morro se via a várzea esbranquiçada de neblina lá embaixo. Aí o tio João Gordo fez um sinal, apontou para a direita, uma trilha no meio do pasto, embicou o cavalo e eu fui seguindo. O silêncio tinha o perfume de capim gordura e a música da água de um riachinho que nem se via, coberto que estava pelo capim, só se adivinhava que ele existia por causa do barulho da água, os grilos arranhavam seus últimos cantos antes que chegasse a sua noite com o nascer do sol, uma garça planou, os cavalos saltaram o riozinho, foi um susto, eu não estava esperando o pulo, quase caí, mas não caí, e lá fomos nós até que a neblina nos cobriu. E quem olhasse do alto do morro não adivinharia que invisíveis no branco da neblina iam um homem sem surpresas, curtido pelos pastos e cavalos, e um menino que não sabia nada e estava encantado com a beleza do mundo…

Rubem Alves, in O velho que acordou menino