Belonísia me encontrou dobrando algumas
peças de roupa e guardando na mala que pertenceu a nossa avó. Vi
seus olhos surpresos com a descoberta e não fui capaz de comunicar
nada sobre o que estava fazendo. Nem ela. Seu olhar era inquisidor,
árido como o tempo que nos cercava, e minha vergonha era suficiente
para que sequer tentasse justificar o que fazia. Chorei depois que
minha irmã saiu, porque tinha a certeza de que estava contribuindo
para seu sofrimento. Estava tendo encontros com nosso primo, talvez
ela já desconfiasse da gravidez, mas além de tudo isso, eu era sua
irmã – não tínhamos segredos, ou ao menos evitávamos ter – e
havia me encerrado em meu mundo naquelas últimas semanas,
esquecendo-me da família e dela, principalmente, que parecia cada
vez mais distante.
Não suportei recordar seu olhar, chorei
distante de casa, não poderia mais continuar com a ideia de deixar
Água Negra, precisava dizer a Severo que queria continuar a viver na
fazenda, que enfrentaríamos nossos pais, que no fim tudo daria
certo. Construiríamos nossa casa perto da casa de tio Servó e tia
Hermelina. Era assim que deveria ser quando dois jovens se uniam;
construíam sua casa no terreiro da casa dos pais, havia uma
comunicação e a espera de uma espécie de consentimento por parte
do gerente da fazenda para que começassem a erguê-la. Faríamos
nossa casa como todas as outras, com o barro das várzeas, com as
forquilhas que forjávamos das matas. Cobriríamos com o junco que
tomou conta do leito do Utinga com a grande seca. Quando estivéssemos
estabelecidos poderíamos planejar a nossa partida, ir atrás dos
sonhos de Severo, que passaram a ser meus também. Não queria também
viver o resto da vida ali, ter a vida de meus pais. Se algo
acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à
terra onde plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada,
sairíamos da fazenda carregando nossos poucos pertences. Se não
pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a deixar Água Negra,
terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores havia
nascido. Aquele sistema de exploração já estava claro para mim.
Mas eu era muito nova e aquele não seria o momento, muito menos as
circunstâncias adequadas para partir.
Puxei a mala de debaixo da cama e retirei
tudo o que havia guardado. Não iria seguir a viagem com Severo, para
um destino incerto, de fazenda em fazenda até chegar à cidade. Iria
encontrá-lo naquele mesmo dia para dizer que falaria tudo aos meus
pais e que permaneceríamos ali, juntos, se assim quisesse. Se
quisesse deixar a fazenda, seguiria só sua vida, que se sentisse
livre. Eu criaria a criança, não nos faltaria família. Não seria
abandonada por meus pais. Eles eram rigorosos na nossa educação,
mas até esse rigor tinha um limite. Terminariam por me ajudar, me
acolheriam em casa, não haveria mágoa nem rancor. Até Belonísia
se renderia ao sorriso do sobrinho e eu poderia dá-lo para que
batizasse, o que significaria um gesto de aproximação e perdão
pelas diferenças que haviam surgido entre nós nos últimos meses.
Havia também o que foi dito pela
encantada de dona Miúda, a tal Santa Rita Pescadeira. Não me
deixava impressionar pelos encantados, estava tão acostumada à sua
presença que não me permitia envolver pelo mundo de obrigações e
interditos da crença. A distância me protegia das bênçãos ou
infortúnios, era o que esperava. Mas também não havia sido o acaso
que me trouxera aquela mensagem. Ou se fosse o acaso, era fato que o
que foi dito se endereçava a mim, e achava que apenas eu e Severo
sabíamos. Permaneci no limite entre a crença e a descrença. Passei
noites em claro, pensando no significado das palavras “vitória”
e “derrota” e o que tudo aquilo poderia dizer sobre a viagem,
sobre o filho, sobre minha vida com Severo. Minha ansiedade aumentou.
Imaginava o porquê da encantada segurar meu braço e não o de dona
Tonha que estava ao meu lado, ou o braço de Crispina de mãos dadas
com o sobrinho e a irmã Crispiniana. Será que dona Miúda já havia
me visto deitada com Severo no meio da mata? Sua casa não era muito
próxima do lugar onde costumávamos nos encontrar, e ela parecia ser
muito idosa para sair vagando pela mata e bisbilhotar dois jovens em
momentos de afeto.
Encontrei Severo no mesmo lugar de
sempre. A jaqueira fazia uma sombra rara, considerando a estiagem que
se prolongava além do esperado. Comuniquei que havia começado a
separar algumas roupas para nossa viagem, mas que Belonísia tinha me
surpreendido. Gesticulei muito para expressar o quanto não estava
segura da viagem. Para tentar fazê-lo compreender que eu era muito
nova. Minhas mãos iam à cabeça e ao peito numa urgência que o
deixou sobressaltado. Quis fazer com que soubesse que aquela fuga
seria uma ruptura – e cruzei meus braços para depois separá-los –
e a traição imperdoável por meus pais. Por tudo que eles haviam
vivido, por tudo que fizeram por nós. Que não era certo com Tio
Servó e tia Hermelina, da mesma forma. Que eles ficariam aflitos –
levei a mão direita ao meu rosto – e que eu não sabia como cuidar
de uma criança sem ter minha mãe por perto, apesar de ser a mais
velha e de ter cuidado um pouco de todos os outros irmãos.
Severo apenas se aproximou e me acolheu
em seus braços. Disse que era normal que estivesse aflita, mas que
já se sentia homem e pronto para deixar a fazenda. Que não falaria
de imediato aos pais porque enfrentaria resistência, mas que em
breve, quando encontrasse pouso e trabalho, mandaria notícias e
diria qual era o seu destino. Senti vontade de dizer que ele poderia
ir só, que eu permaneceria ali, esperaria a criança nascer. Ficaria
com meus pais, trabalharia em Água Negra. Quando ele estivesse
estabelecido, iria encontrá-lo, com as bênçãos de Zeca e Salu.
Mas me faltou coragem. Estava com o coração quebrantado com a
iminência da separação, seja de Severo ou da minha família. Com
muito sofrimento, nos despedimos sem decidir nossos destinos.
Na manhã seguinte, Sutério apareceu em
nossa casa para dizer que meu pai precisava terminar o pequeno
barramento que fazia no riacho. Que precisava organizar os
trabalhadores para capinar e fazer a coivara, deixar a terra limpa,
sempre, para quando a chuva chegasse. Entrou em nossa cozinha e
perguntou onde havíamos colhido as batatas-doces. Meu pai respondeu
que havíamos comprado na feira da cidade. Com que dinheiro, ele quis
saber. Vendemos o resto de azeite de dendê que tínhamos fabricado,
disse. Sutério pegou a maior parte da batata-doce com as duas mãos
grandes que tinha e levou para a Rural que havia deixado em nossa
porta. Pilhou também duas garrafas de dendê que guardávamos para
fazer os peixes miúdos que pescávamos no rio. Lembrou a meu pai da
terça parte que tinha que dar da produção do quintal. Mas as
batatas não eram produção do quintal. Da terra seca não brotava
nem pasto, muito menos batata. E a secura era tanta que nem as
várzeas estavam sendo cultivadas. No leito do rio, onde não havia
água, era possível encontrar uma lama que apodrecia as sementes, de
onde também não brotava nada, apenas taboa para fazer esteira,
sacola e teto de casa. Vi a vergonha de meu pai crescer em nossa
frente, sem poder fazer nada. Zeca Chapéu Grande era um curador
respeitado e conhecido além das cercas de Água Negra. Mas ali, nos
limites da fazenda, sob o domínio da família Peixoto – que quase
não colocava os pés por lá a não ser para dar ordens, pagar ao
gerente e dizer que não poderíamos fazer casa de tijolo – e de
Sutério, sua lealdade pela morada que havia recebido no passado,
quando vagava por terra e trabalho, falava mais alto. Vi minha mãe
se movimentar, seus olhos se injetaram indignados, mas se deteve ao
perceber meu pai se sentindo incapaz de questionar e reclamar sobre
qualquer coisa. Muito pelo contrário, ainda colaborava com sua
liderança espiritual para a manutenção da ordem entre as famílias
que moravam ali. Era a ele que Sutério ou qualquer um dos herdeiros
se dirigia para pedir a intervenção em conflitos dos mais variados,
desde animal comendo em roça alheia até construção levantada com
material que descumprisse as interdições impostas aos moradores.
Não poderíamos feri-lo ainda mais em
sua humilhação, pedindo que ele tomasse de volta as batatas-doces
que havíamos adquirido com nosso trabalho na feira. Como foi longa
aquela noite. Não dormi. A insônia havia se tornado companheira nas
últimas semanas. Pensei nas palavras de Severo sobre a situação de
nossas famílias na fazenda. Que a vida toda estaríamos submissos,
sujeitos às humilhações, como a pilhagem do nosso alimento. Que eu
tinha um papel nisso tudo, e que meus pais precisavam de mim para
mudar de vida. Que poderíamos, sim, comprar nossa própria terra e
vir buscá-los. Que só assim conseguiríamos ter uma vida digna.
Dei um jeito de encontrar Severo, mesmo
sem ter combinado. Quando nos vimos, precisei apenas olhar para que
ele soubesse que havia me decidido pela partida. Então planejamos o
dia exato, a hora, até onde seguiríamos andando e de onde
tentaríamos carona para deixar a Chapada Velha. Na madrugada da
partida, a mala antiga de Donana estava arrumada, com a poeira
espanada, para que eu pudesse levar o pouco que tinha para essa nova
vida que despontava. Levantei enquanto dormiam, pedi a Deus pela
saúde e vida de todos pelo tempo que passaria fora. Pedi que os
encantados me ajudassem a não ser considerada uma desonra e que,
quando retornasse com dinheiro, já estabelecida em nossa terra, para
buscar nossas famílias, todos entendessem que aquela viagem havia
sido por uma boa causa. Pedi a Deus, especialmente por Belonísia,
que há pouco mais de dez anos compartilhou comigo o incidente que
mudou de certa forma nossas vidas. Quando deixei a casa pela porta do
quintal, no sereno da noite, não pude evitar de olhar para trás por
algumas vezes, enquanto seguia pela estrada ao encontro de Severo.
Enumerava as coisas que levava comigo e tudo que deixava para trás.
Quase desisti nesse exato momento, deixaria Severo partir sozinho,
mas a imagem de Sutério levando nosso pouco suprimento, e a fome e o
improviso que se seguiram para fazermos a refeição mais tarde, me
deram a firmeza necessária para prosseguir. Dentre as coisas que
levava, e talvez a que mais me machucava, era a minha língua. Era a
língua ferida que havia expressado em sons durante os últimos anos
as palavras que Belonísia evitava dizer por vergonha dos ruídos
estranhos que haviam substituído sua voz. Era a língua que a havia
retirado de certa forma do mutismo que se impôs com o medo da
rejeição e da zombaria das outras crianças. E que por inúmeras
vezes a havia libertado da prisão que pode ser o silêncio.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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