Acordei, olhei para o celular: mensagem
dela, rindo. Postei um negócio nas redes sociais ontem e ninguém
entendeu direito, só ela. E eu amanheci sorrindo porque ela
entendeu. Porque ela sempre entende. Porque ela existe. Porque eu sei
que enquanto houver ela, sempre haverá alguém que entenda.
Ela é muito diferente de mim. Uma fala
pelos cotovelos, pelos joelhos, pelos calcanhares e a outra raramente
pronuncia uma sequência maior do que quatro palavras em série. Uma
penteia o cabelo três vezes por hora, a outra nem sabe a cor da
própria escova. Uma é profissional exemplar, técnica, objetiva, a
outra se atrapalha com os e-mails, tem medo de se impor, pede
socorro.
Ela é muito igual a mim. A sobrancelha
tão cheia de falhas. A dependência dos óculos. O ódio por salto
fino. O jeito sorridente de olhar para a vida. A firmeza, sin
perder la ternura jamás. A capacidade de dizer o que precisa ser
dito na hora certa, por mais difícil que isso possa ser. A
capacidade de reconhecer que as nossas falhas não moram só nas
sobrancelhas.
Olho para trás e é mesmo incrível:
nosso amor sobreviveu a uma quantidade inacreditável de pancadarias.
As brigas pelos bombons da caixa azul de especialidades Nestlé. O
“Vai tomar banho você primeiro – Não, você primeiro – Não,
você vai primeiro porque eu falei primeiro”. As canetas coloridas
desaparecidas semeando a discórdia. As disputas por quem iria no
banco da frente. Sobre o que tocaria no rádio. Sobre quem deixou o
copo em cima do móvel. As polêmicas sobre os sapatos e brincos
roubados na sexta à noite.
Foi ela que falou “Para de sair com
esse cara que ele é um babaca” e eu respondi “Cala a boca, você
nem conhece ele”. E depois que o tempo passava… É claro que ela
tinha razão. Ela sempre vê tudo o que eu não consigo ver. Fui eu
quem sempre disse “Não faz isso que a mamãe vai ficar brava –
Vai nada” e vinha a mamãe e ficava louca da vida. E as duas ouviam
o sermão juntas, cúmplices, caladas. Hoje, adultas, continua
igualzinho.
Foi ela que sempre esteve. Quando eu caí
de boca do balanço. Quando arrumei encrenca com uns grandalhões na
escola. Quando passei no vestibular. Quando tomei um pé na bunda e
fui pro fundo do poço. Fui eu que sempre estive. Quando ela enfiou o
joelho em uns pregos. Quando ela ficou em recuperação em história
pela quarta vez. Quando ela começou no primeiro emprego. Quando ela
teve a primeira contração para dar à luz.
É ela que conhece minha história toda.
Às vezes até mais do que eu mesma conheço. Sou eu que conheço a
dela, até naquelas partezinhas que nem ela lembra. É ela que sabe
me dizer o que preciso fazer quando me desespero. Sou eu que sei
dizer como o cabelo dela fica melhor. E mesmo que ela nunca me
obedeça, eu continuarei dizendo.
É o cheiro dela que é o cheiro da minha
casa em qualquer lugar do mundo. É o meu abraço que é a certeza
que ela pode ter a qualquer tempo. É pra ela que eu posso falar um
monte de coisa sem pensar. É comigo que ela pode fazer grosseria sem
que eu a ame menos por isso.
É ela, minha companheira através do
tempo. Que sempre esteve de mãos dadas comigo mesmo quando a
distância achava que não ia permitir. A gente ri da distância. A
gente ri do tempo e das dores do passado. É ela que me defende que
nem bicho. É por ela que eu rosno, eu mordo e avanço. É para ela
que eu olho. É ela que olha por mim. É ela. Sou eu. Somos duas.
Somos uma. Somos, sempre fomos, sempre seremos.
Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso
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