A frase em inglês era:
The bride entered the church like an
erect and elegant although a little too confident swan.
A jovem com pretensões a tradutora assim
a verteu fielmente para o português:
“A noiva entrou na igreja como um
aprumado e elegante embora um pouco confiante demais cisne.”
Numa tradução dos poemas de William
Blake para a nossa língua, encontro, entre outras, estas
preciosidades: pretty pretty robin traduzido para “preto
preto pardal”; merry merry sparrow para “meigo meigo
melro”; little lamb para “lambidinha” – e assim por
diante. Esta última me intrigou tanto que recorri ao dicionário
para ver que diabo de lambidinha era essa. Não tem dúvida, lamb
significa só cordeiro mesmo – deve ter sido alguma brincadeirinha
do tradutor.
Tudo bem – cada um traduz como quer. A
não ser que acabe traduzindo o que não quer e tenha de se valer de
uma errata. Como aconteceu com Elizabeth Bishop, que viveu longos
anos no Brasil mas era americana e, embora excelente poetisa, não
podia conhecer bem algumas sutilezas da nossa língua. No livro de
Robert Lowell Quatro poemas, por ela traduzido, o verso A
colored fairy tinkles the blues ficou sendo “uma fada negra
tilinta blues”, o que exigiu a seguinte errata:
“Na página 190, linha 4, em vez de
‘uma fada negra’, leia-se ‘um preto veado’.”
Casos como esses em geral se devem a uma
instituição que os editores se habituaram a chamar de “bagrinhos”:
pequenos tradutores desconhecidos, em geral estudantes, que se valem
do relativo conhecimento de algum idioma estrangeiro para
desincumbir-se da tarefa que lhes transfere um tradutor de renome. E
nem se veja nessa prática uma exploração do trabalho alheio, pois
muitas vezes se inspira em motivação nobre: a de proporcionar uma
ajuda a alguém necessitado, cujo nome por si só não basta para
conseguir trabalho de tradução. E a remuneração costuma ser tão
baixa que acontece não raro acabar transferida na sua totalidade ao
tradutor assim subempreitado. Também não chega a constituir
propriamente uma fraude literária, desde que a tradução se submeta
a uma criteriosa revisão por aquele que vai assiná-la.
Não se sabe qual era a de um tradutor
ilustre como Monteiro Lobato, por exemplo, mas consta que ele teria
de viver mais de cem anos para dar conta de todas as traduções com
sua assinatura.
E a pressuposta supervisão de quem
assina nem sempre é tão rigorosa quanto se espera. Como naquele
caso do editor que reclamou do “tradutor”:
– Vê se toma mais cuidado com essas
suas traduções! Dá ao menos uma lida, que diabo!
Tinha razão em reclamar, pois, logo nas
primeiras páginas, havia esbarrado com a seguinte frase, em bom
português:
“– Eu te amo – borbulhou ela
aos ouvidos dele.”
São infindáveis os casos de
infidelidade ao texto original, convertidos em anedotário – não
há quem não cite um. Alguns já se tornaram clássicos, como o do
telefonema que virou anel na frase I’ll give you a ring, ou
o do estado-maior que virou um general chamado Staff, na expressão
General Staff. O tradutor, aliás afamado ficcionista, ao
passar para o português um livro de guerra, tanto usou e abusou do
pretenso General que, para justificar a sua presença em várias
frentes de batalha pelo mundo, acrescentou uma frase por conta
própria, afirmando que “o General Staff era um comandante tão
extraordinário que parecia estar em vários lugares ao mesmo tempo”.
Não é invenção minha: Moacir Werneck
de Castro, na época comentarista literário de um jornal, ele
próprio excelente tradutor, a cuja fina percepção não escapou
essa tirada do outro, fez-lhe uma alusão em sua coluna, “não sem
malícia e verve”, como no verso de Vinicius. Encontrando-o pouco
depois na rua, recebeu dele uma sentida queixa e, sensível ele
próprio aos ditames da boa convivência entre confrades,
justificou-se educadamente:
– Bem, não nego que haja um pouco de
gozação no meu comentário. Mas você também não pode negar a
mancada na sua tradução.
Ao que o “tradutor” lhe apresentou
este argumento irrespondível:
– Como é que você queria que eu
traduzisse, se eu não sei inglês?
A recíproca é verdadeira: nas traduções
de livros brasileiros que se publicam no exterior também costuma
haver mancadas, como é de se imaginar.
Eu mesmo já fui vítima de algumas. A de
ver, por exemplo, numa versão inglesa do romance O encontro
marcado, o personagem que em português se diz um romancista,
afirmando: I am a romantic.
Imagino o que se passa com um Guimarães
Rosa, cuja linguagem brasileira, mais rica e elaborada, pode dar
margem a desastrosos equívocos. Ou Jorge Amado, que por essas e
outras em geral prefere nem saber o que fazem de sua obra em língua
estrangeira. Segundo me contou, numa das poucas vezes que se
interessou deu logo com algo que não constava do original: um
personagem que seguia pela estrada carregando uma garrafa de
aguardente. Custou a descobrir como aquela garrafa havia surgido, já
que o personagem, como o concebera, ia seguindo pela estrada apenas
“com uma botina ringideira”. Naturalmente, o tradutor devia ser
bom era em espanhol e não em português, e daí a botina lhe ter
soado como qualquer coisa parecida com botella, ou garrafa. E
ringideira, em consequência, teria que ser uma espécie de
aguardente.
Mencionei há algum tempo estas pérolas
de tradução numa crônica, e em pouco estava pagando meus pecados.
Rubem Braga logo me telefonou:
– Essa última novela publicada na sua
coleção já foi distribuída?
Ele se referia à coleção Novelas
Imortais, que eu dirigia para a editora Rocco. A última tinha sido
Bartleby, o escriturário, de Herman Melville.
– Se foi publicada, foi distribuída.
Por quê?
– Porque vai te deixar mal. Tem um erro
de tradução que é de amargar. Merecia ser recolhida.
– A tradução é de Luís de Lima, e
da melhor qualidade.
– Não é erro do tradutor não –
insiste o Braga. – É seu mesmo. Na apresentação você cita um
livro do homem e traduz o título para o português.
Realmente, menciono um livro de Melville
chamado White jacket, or the world in a man-of-war, que
traduzi literalmente para “Túnica branca, ou o mundo num
homem-de-guerra”.
– Convém botar uma emenda, uma errata,
qualquer coisa assim. Não vão perdoar esse seu “Homem-de-guerra”.
– Man é “homem”, of é
“de” e war é “guerra”. Como é que você queria que
eu traduzisse?
– Navio de guerra. Ou vaso de guerra,
se você preferir.
Guerra é guerra. Me lembrei que o
capitão Braga entendia dessas coisas, desde que fez parte da Força
Expedicionária durante a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de
verdadeiro cabo de guerra (que em inglês é war-horse, isso
eu sei).
Fui conferir no Webster, mas já
me reconhecendo derrotado. Não adiantava chicanar, o Braga estava
com a razão. Fiquei sabendo de uma vez por todas que homem também
pode ser navio, pelo menos em inglês.
Deixa o Alfredo falar! Telefonei
imediatamente para ele:
– Você sabe o que quer dizer
man-of-war?
– Sei: quer dizer navio de guerra –
ele foi dizendo logo.
E não deixou por menos:
– Você sabe o que quer dizer
portuguese man-of-war?
– Já vem você – respondi,
cauteloso. – Navio de guerra português?
– Nada disso. Quer dizer água-viva.
Aquela medusa pegajosa que tem no mar e que queima a pele da gente.
Agora me diga como o português chama água-viva.
– Claro que não sei.
– Caravela. Se não acredita, tira no
dicionário.
Antes que ele fizesse a volta completa e
chegasse de novo ao navio de guerra, agradeci e dei prudentemente o
assunto por encerrado.
E para encerrar mesmo, de uma vez por
todas, só repetindo Paulo Rónai, mestre no assunto, ao citar
Cervantes, para quem a tradução “é o avesso de uma tapeçaria”.
Ou Goethe, ao comparar os tradutores “aos alcoviteiros, que nos
elogiam uma beldade meio velada como altamente digna de amor, e que
despertam em nós uma curiosidade irresistível de conhecer o
original”.
Fernando Sabino, in Fernando Sabino na sala de aula
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