quarta-feira, 28 de abril de 2021

Diálogo

Nossa, este é o último lugar em que eu esperava encontrar alguém.
Sim, também nunca poderia imaginar encontrar alguém aqui dentro.
Você sempre vem aqui? Esta é a primeira vez que venho. Tenho pensado em refugiar-me aqui já faz algum tempo, mas só hoje tomei coragem e, num momento de distração, corri e consegui.
Sim, já frequento este lugar há alguns meses. É um tipo de esconderijo que eu tenho. Mas fico contente que mais uma pessoa o tenha descoberto. Não sinto ciúmes daqui e gostaria que muita gente viesse se juntar a mim, na verdade. Mas até hoje ninguém mais tinha aparecido. Quer um pedaço? Posso te dar metade.
Puxa, obrigado. Você é uma pessoa diferente. Por que está dividindo isso comigo? É claro que eu quero.
Tenho um fornecedor regular. Troco isso por canções, acredita? Sou cantor de óperas italianas. Você é de onde?
Italiano também, de Turim. Químico de profissão. Também faço trocas, mas nenhuma tão vantajosa quanto a sua.
É difícil falar em vantagem aqui dentro, como também em sorte, oportunidade ou destino. Já não sei mais o que significam essas palavras. Acho que o que aconteceu comigo é acaso e é só por isso que gosto de dividir tudo com os outros. Porque não penso que o ocultamento dos meus lances de sorte vai melhorar minha vida. Como tenho isso hoje, posso não ter mais amanhã ou mesmo daqui a um minuto. Não sei quem você é, pode até ser que seja um espião, mas não me importo. Não me importo com nada.
E você acha que é isso que pode estar te favorecendo?
Não, também não. Nada favorece nada. Não existem mais causas e consequências, nada que se possa mapear ou determinar e dizer: isso é por causa disso. Acho que, aqui dentro, nem mais a chuva é causada pelas nuvens. A ordem das coisas foi invertida ou subvertida, não sei, e só o que existe é cada minuto, segundo talvez. Quer mais um pedaço?
Concordo com você, totalmente. Vejo pessoas atribuindo a sorte a Deus, à higiene, à esperteza. Outros, ao contrário, atribuem seu azar à descrença ou também ao mesmo Deus que nos teria abandonado. Não associo nada a nada. Você acha que vamos sair daqui algum dia, que voltaremos a nos ver?
É estranho. Por que será que é tão necessário e até bom pensar sobre o futuro e sobre o passado, enquanto estamos aqui? Encontro alguém e geralmente esta é a primeira coisa em que penso. Será que algum dia voltarei a vê-lo? Será uma espécie de masoquismo?
Ao contrário. Acho que é credulidade, não sei, ingenuidade. Um prazer possível, estar ao lado das pessoas e pôr-se a imaginar encontros remotos, localidades desconhecidas. O que você mais gostaria de fazer na vida?
Isso é fácil. Comer não um, nem dois, mas três pedaços de pão quente seguidos. Só isso. Depois eu poderia morrer. Feliz. E você?
Claro, comer, comer e comer. Mas também tomar um banho quente e deitar numa cama com um lençol limpo.
Não pensa em encontrar alguém querido, um parente, uma namorada antiga?
Não. É estranho, mas essas vontades estão no fim da lista. Tenho medo, na verdade. Medo de encontrá-los e de não encontrá-los, medo do que foi feito de cada um de nós e deles, medo do que poderei dizer, porém mais ainda do que não poderei dizer, medo de lembrar e medo de esquecer. Quem são, quem serão as pessoas que deixamos para o lado de lá, o lado de cá que não é o mesmo para nenhum de nós, como dizer o que nem nós sabemos entender? Como dizer esse nosso encontro, agora? Quem é você, quando não estivermos mais aqui, daqui a um minuto ou daqui a dois, três anos, agora que já sabemos que as coisas estão se aproximando do fim?
Sim, é por isso que só penso em comer. A comida não faz perguntas. A língua da comida é universal. Por que nos pusemos tão prontamente a filosofar, aqui dentro, nessas condições?
Penso que não existem condições melhores para isso. É aqui que nasce toda a filosofia. E porque tudo isso é muito engraçado e preciso rir. Você não quer cantar uma ária de ópera para mim?
Quero sim, claro. Mas me desculpe, minha voz não está nada boa.
Assim que nos virmos novamente, vou fazer questão de dividir alguma coisa minha com você.
Não se preocupe, você já está dividindo. E não é sua amizade, conversa ou presença, não. Não é tampouco o fato de você falar italiano ou gostar de ópera. O que você está me dando é concreto, material.
Mas o quê? O que é que estou te dando além de te obrigar a dividir este nabo comigo?
Você usou uma palavra que não ouço há muito tempo. Já tinha até me esquecido dela. Falou “medo”. Disse tantas vezes, afirmou tantas vezes seguidas todos os medos que você tem, sem nenhum pudor de dizê-lo, que me deixou um pouco menos descrente. Não sei muito bem por quê. Mas precisava ouvir essa palavra, dita assim, em italiano mesmo, com tanto desprendimento. Obrigado. Quer mais um pedaço?

Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou

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