— Nossa, este é o último lugar em que
eu esperava encontrar alguém.
— Sim, também nunca poderia imaginar
encontrar alguém aqui dentro.
— Você sempre vem aqui? Esta é a
primeira vez que venho. Tenho pensado em refugiar-me aqui já faz
algum tempo, mas só hoje tomei coragem e, num momento de distração,
corri e consegui.
— Sim, já frequento este lugar há
alguns meses. É um tipo de esconderijo que eu tenho. Mas fico
contente que mais uma pessoa o tenha descoberto. Não sinto ciúmes
daqui e gostaria que muita gente viesse se juntar a mim, na verdade.
Mas até hoje ninguém mais tinha aparecido. Quer um pedaço? Posso
te dar metade.
— Puxa, obrigado. Você é uma pessoa
diferente. Por que está dividindo isso comigo? É claro que eu
quero.
— Tenho um fornecedor regular. Troco
isso por canções, acredita? Sou cantor de óperas italianas. Você
é de onde?
— Italiano também, de Turim. Químico
de profissão. Também faço trocas, mas nenhuma tão vantajosa
quanto a sua.
— É difícil falar em vantagem aqui
dentro, como também em sorte, oportunidade ou destino. Já não sei
mais o que significam essas palavras. Acho que o que aconteceu comigo
é acaso e é só por isso que gosto de dividir tudo com os outros.
Porque não penso que o ocultamento dos meus lances de sorte vai
melhorar minha vida. Como tenho isso hoje, posso não ter mais amanhã
ou mesmo daqui a um minuto. Não sei quem você é, pode até ser que
seja um espião, mas não me importo. Não me importo com nada.
— E você acha que é isso que pode
estar te favorecendo?
— Não, também não. Nada favorece
nada. Não existem mais causas e consequências, nada que se possa
mapear ou determinar e dizer: isso é por causa disso. Acho que, aqui
dentro, nem mais a chuva é causada pelas nuvens. A ordem das coisas
foi invertida ou subvertida, não sei, e só o que existe é cada
minuto, segundo talvez. Quer mais um pedaço?
— Concordo com você, totalmente. Vejo
pessoas atribuindo a sorte a Deus, à higiene, à esperteza. Outros,
ao contrário, atribuem seu azar à descrença ou também ao mesmo
Deus que nos teria abandonado. Não associo nada a nada. Você acha
que vamos sair daqui algum dia, que voltaremos a nos ver?
— É estranho. Por que será que é tão
necessário e até bom pensar sobre o futuro e sobre o passado,
enquanto estamos aqui? Encontro alguém e geralmente esta é a
primeira coisa em que penso. Será que algum dia voltarei a vê-lo?
Será uma espécie de masoquismo?
— Ao contrário. Acho que é
credulidade, não sei, ingenuidade. Um prazer possível, estar ao
lado das pessoas e pôr-se a imaginar encontros remotos, localidades
desconhecidas. O que você mais gostaria de fazer na vida?
— Isso é fácil. Comer não um, nem
dois, mas três pedaços de pão quente seguidos. Só isso. Depois eu
poderia morrer. Feliz. E você?
— Claro, comer, comer e comer. Mas
também tomar um banho quente e deitar numa cama com um lençol
limpo.
— Não pensa em encontrar alguém
querido, um parente, uma namorada antiga?
— Não. É estranho, mas essas vontades
estão no fim da lista. Tenho medo, na verdade. Medo de encontrá-los
e de não encontrá-los, medo do que foi feito de cada um de nós e
deles, medo do que poderei dizer, porém mais ainda do que não
poderei dizer, medo de lembrar e medo de esquecer. Quem são, quem
serão as pessoas que deixamos para o lado de lá, o lado de cá que
não é o mesmo para nenhum de nós, como dizer o que nem nós
sabemos entender? Como dizer esse nosso encontro, agora? Quem é
você, quando não estivermos mais aqui, daqui a um minuto ou daqui a
dois, três anos, agora que já sabemos que as coisas estão se
aproximando do fim?
— Sim, é por isso que só penso em
comer. A comida não faz perguntas. A língua da comida é universal.
Por que nos pusemos tão prontamente a filosofar, aqui dentro, nessas
condições?
— Penso que não existem condições
melhores para isso. É aqui que nasce toda a filosofia. E porque tudo
isso é muito engraçado e preciso rir. Você não quer cantar uma
ária de ópera para mim?
— Quero sim, claro. Mas me desculpe,
minha voz não está nada boa.
— Assim que nos virmos novamente, vou
fazer questão de dividir alguma coisa minha com você.
— Não se preocupe, você já está
dividindo. E não é sua amizade, conversa ou presença, não. Não é
tampouco o fato de você falar italiano ou gostar de ópera. O que
você está me dando é concreto, material.
— Mas o quê? O que é que estou te
dando além de te obrigar a dividir este nabo comigo?
— Você usou uma palavra que não ouço
há muito tempo. Já tinha até me esquecido dela. Falou “medo”.
Disse tantas vezes, afirmou tantas vezes seguidas todos os medos que
você tem, sem nenhum pudor de dizê-lo, que me deixou um pouco menos
descrente. Não sei muito bem por quê. Mas precisava ouvir essa
palavra, dita assim, em italiano mesmo, com tanto desprendimento.
Obrigado. Quer mais um pedaço?
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
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