Agora
que temos uma compreensão melhor do que é religião, podemos voltar
a examinar o relacionamento entre religião e ciência. Há duas
interpretações extremas para esse relacionamento. De acordo com uma
delas, ciência e religião são inimigos jurados e a história
moderna foi moldada pela luta de vida ou morte entre o conhecimento
científico e a superstição religiosa. Ao longo do tempo, a luz da
ciência desfez a escuridão da religião, e o mundo tornou-se cada
vez mais secular, racional e próspero. Porém, ainda que algumas
descobertas científicas solapem dogmas religiosos, isso não é
inevitável. Por exemplo, um dogma muçulmano afirma que o Islã foi
fundado pelo profeta Maomé na Arábia do século VII , e amplas
evidências científicas sustentam isso.
Mais
importante, a ciência sempre precisou da ajuda da religião para
criar instituições humanas viáveis. Os cientistas estudam como o
mundo funciona, mas não há um método científico para determinar
como os humanos devem se comportar. A ciência nos diz que os humanos
não podem sobreviver sem oxigênio. No entanto, será aceitável
executar criminosos por asfixia? A ciência não sabe como responder
a essa pergunta. Somente as religiões nos fornecem a orientação
necessária.
Cada
projeto prático que cientistas empreendem também se baseia em
insights religiosos. Tome-se, por exemplo, a construção da
represa das Três Gargantas no rio Yangtzé. Quando o governo chinês
decidiu construí-la, em 1992, físicos calcularam as pressões que a
represa teria de suportar; economistas previram quanto dinheiro ela
custaria; e engenheiros eletricistas predisseram quanta eletricidade
ela produziria. Contudo, o governo precisava levar em conta fatores
adicionais. A construção da represa causaria a inundação de
territórios extensos, que abrigavam muitas aldeias e cidades,
milhares de sítios arqueológicos, além de paisagens e habitats
únicos. Mais de 1 milhão de pessoas seriam deslocadas e centenas de
espécies correriam perigo. Parece que a represa causou diretamente a
extinção do golfinho-do-rio chinês. Independentemente do que se
poderia pensar sobre a represa das Três Gargantas, sua construção
era uma questão ética e não puramente científica. Nenhum
experimento da física, nenhum modelo econômico e nenhuma equação
matemática seriam capazes de determinar se a geração de milhares
de megawatts e de bilhões de yuans era mais valiosa do que
salvaguardar um pagode antigo ou o golfinho-do-rio chinês.
Consequentemente, a China não pode funcionar com base apenas em
teorias científicas. Ela precisa de alguma religião ou de alguma
ideologia.
Alguns
saltam para o extremo oposto e afirmam que ciência e religião são
reinos totalmente separados. A ciência estuda os fatos, a religião
versa sobre valores, e esse par nunca se encontra. A religião nada
tem a dizer sobre fatos científicos, e a ciência deve manter a boca
fechada no que concerne a convicções religiosas. Se o papa acredita
que a vida humana é sagrada, e o aborto é pecado, os biólogos não
podem validar ou refutar essa alegação. Como indivíduo privado,
todo biólogo é bem-vindo para discutir com o papa. Mas, como
cientista, o biólogo não pode entrar nessa briga.
Essa
abordagem pode parecer sensata, porém ela interpreta equivocadamente
o conceito de religião. Embora a ciência lide somente com fatos, a
religião não se restringe a conceitos éticos. A religião não é
capaz de fornecer nenhuma orientação prática, a menos que disponha
de alegações factuais também, e nisso ela pode muito bem ir de
encontro à ciência. As partes mais importantes de muitos dogmas
religiosos não são seus princípios éticos, e sim declarações
factuais do tipo “Deus existe”, “A alma é castigada por seus
pecados no pós-vida”, “A Bíblia foi escrita por uma divindade e
não por humanos”, “O papa é infalível”. Essas alegações
são factuais. Muitos dos debates religiosos mais candentes, e muitos
dos conflitos entre ciência e religião, envolvem tais alegações e
não conceitos éticos.
Tome-se
o aborto, por exemplo. Cristãos devotos opõem-se ao aborto,
enquanto muitos liberais o apoiam. O cerne da questão é mais
factual do que ético. Tanto cristãos como liberais acreditam que a
vida humana é sagrada e que assassinato é crime hediondo. Mas
discordam quanto a certos fatos biológicos: a vida humana começa no
momento da concepção, no momento do nascimento ou em algum ponto
intermediário? Na verdade, algumas culturas humanas sustentam que a
vida não se inicia nem mesmo no nascimento. Segundo os Kung do
deserto de Kalahari e vários grupos inuítes no Ártico, a vida
humana só começa depois que o bebê recebe um nome. Quando nasce
uma criança, os familiares esperam algum tempo antes de lhe darem um
nome. Se decidem não ficar com o bebê (porque sofre de alguma
deformidade ou por motivos econômicos), eles o matam. Contanto que o
façam antes da cerimônia em que lhe é dado um nome, esse ato não
é considerado assassinato. Pessoas de tais culturas podem muito bem
concordar com liberais e cristãos em que a vida humana é sagrada e
o assassinato é um crime terrível — e ainda assim sancionar o
infanticídio.
Quando
uma religião faz publicidade de si mesma, ela tende a enfatizar os
valores belos. Mas não raro Deus se esconde nas letras miúdas de
declarações factuais. A religião católica se apresenta em seu
marketing como a religião do amor e da compaixão universais. Que
maravilha! Quem poderia se opor a isso? Por que, então, nem todos os
humanos são católicos? Porque, quando se leem as letras miúdas,
descobre-se que o catolicismo exige também obediência cega ao papa
“que nunca comete erros”, mesmo quando ordena a seus seguidores
que saiam em cruzadas e queimem hereges na estaca. Essas instruções
práticas não resultam somente de conceitos éticos, e sim da
combinação de conceitos éticos com declarações factuais.
Quando
saímos da esfera etérea da filosofia e observamos as realidades
históricas, descobrimos que os relatos religiosos quase sempre
incluem três partes:
1.
Conceitos éticos, tais como “A vida humana é sagrada”.
2.
Declarações factuais, como “A vida humana começa no momento da
concepção”.
3.
Uma combinação de conceitos éticos com declarações factuais, que
resulta em orientações práticas, tais como “O aborto jamais deve
ser permitido, mesmo um único dia após a concepção”.
A
ciência não tem autoridade nem capacidade para refutar ou
corroborar os conceitos éticos elaborados pelas religiões.
Entretanto, os cientistas têm muito a dizer sobre declarações
factuais religiosas. Por exemplo, os biólogos são mais qualificados
que os sacerdotes para responder a questões factuais do tipo “Os
fetos humanos têm sistema nervoso uma semana após a concepção?
Eles podem sentir dor?”.
Para
esclarecer melhor essa ideia, examinemos em profundidade um exemplo
histórico real sobre o qual raramente se ouve em comerciais
religiosos, mas que teve imenso impacto social e político em sua
época. Na Europa medieval, os papas desfrutavam de uma autoridade
política de longo alcance. Quando um conflito irrompia em algum
lugar da Europa, eles invocavam autoridade para decidir a questão. A
fim de estabelecer sua reivindicação de autoridade, eles
repetidamente lembravam aos europeus a Doação de Constantino. De
acordo com esse relato, em 30 de março de 315 o imperador romano
Constantino assinou um decreto oficial assegurando ao papa Silvestre
I e a seus herdeiros o controle perpétuo da parte ocidental do
Império Romano. Os papas guardaram esse documento precioso em seu
arquivo e o usavam como poderoso instrumento de propaganda sempre que
enfrentavam a oposição de príncipes ambiciosos, cidades
contenciosas ou camponeses rebeldes.
Na
Europa medieval, as pessoas tinham grande respeito por decretos
imperiais antigos e acreditavam que, quanto mais antigo o documento,
mais autoridade ele encerrava. Também acreditavam ferrenhamente que
reis e imperadores eram representantes de Deus. Constantino era
especialmente reverenciado porque transformou o Império Romano de
reino pagão em império cristão. Num conflito entre as vontades de
algum conselho municipal atual e um decreto emitido pelo próprio
grande Constantino, para os europeus medievais obviamente era ao
documento antigo que teriam de obedecer. Por isso, sempre que o papa
enfrentava oposição política, ele acenava com a Doação de
Constantino, exigindo obediência. Não que funcionasse o tempo todo.
Mas a Doação de Constantino era uma pedra fundamental da propaganda
papal e da ordem política medieval.
Quando
se examina atentamente a Doação de Constantino, descobrimos que seu
relato se divide em três partes distintas:
1.
Juízo ético: As pessoas devem respeitar os decretos imperiais
antigos mais do que opiniões populares atuais.
2.
Declaração factual: Em 30 de março de 315, o imperador Constantino
assegurou aos papas o domínio sobre a Europa.
3.
Orientação prática: Em 315, os europeus devem obedecer às ordens
do papa.
A
autoridade ética dos decretos imperiais antigos está longe de ser
óbvia. A maioria dos europeus do século XXI pensa que a vontade dos
cidadãos atuais prevalece sobre os ditames de monarcas mortos há
muito tempo. Contudo, a ciência não pode juntar-se a esse debate
ético porque nenhum experimento nem equação podem resolver a
questão. Se uma cientista do presente retrocedesse setecentos anos
no tempo até a Europa medieval, ela não seria capaz de demonstrar
aos europeus medievais que os decretos de imperadores antigos são
irrelevantes nas disputas políticas contemporâneas.
Mas
a história da Doação de Constantino baseia-se não apenas em
conceitos éticos. Envolve também algumas declarações factuais
muito concretas, as quais a ciência é altamente qualificada tanto
para confirmar quanto para refutar. Em 1441, Lorenzo Valla — um
sacerdote católico e pioneiro da linguística — publicou um estudo
científico demonstrando que a Doação de Constantino era uma
falsificação. Valla analisou o estilo gramatical do documento,
assim como as várias palavras e termos que continha. Ele demonstrou
que o documento incluía palavras que eram desconhecidas no latim do
século IV e que muito provavelmente fora forjado cerca de
quatrocentos anos após a morte de Constantino. Além disso, a data
que consta no documento é “30 de março, no ano em que Constantino
era cônsul pela quarta vez, e Galicano foi cônsul pela primeira
vez”. No Império Romano, eram eleitos dois cônsules a cada ano, e
era costume datar os documentos com os respectivos anos de consulado.
Infelizmente o quarto consulado de Constantino foi em 315, enquanto
Galicano fora eleito cônsul pela primeira vez apenas em 317. Se esse
documento tão importante realmente tivesse sido escrito no tempo de
Constantino, nunca iria conter um erro tão evidente. É como se
Thomas Jefferson e seus colegas tivessem datado a Declaração de
Independência Americana em “34 de julho de 1776”.
Hoje
todos os historiadores aceitam que a Doação de Constantino foi
forjada na corte papal em algum momento do século VIII. Mesmo que
Valla nunca tenha contestado a autoridade moral de antigos decretos
imperiais, sua análise científica comprometeu a orientação
prática de que os europeus teriam de obedecer ao papa.
Yuval
Noah Harari, in
Homo
Deus: Uma breve história do amanhã