Eu
tinha visto esse nome várias vezes na seleta, mas, como não sabia
pronunciá-lo, acostumei-me a tossir no fim das lições em que ele E
aparecia subscrevendo medonhas trapalhadas. Deviam ser regras
importantes, imaginei, regras úteis se me entrassem na cabeça; mas
naquele tempo não adivinhei o que Samuel Smiles exigia de mim.
Aborrecendo-o, respeitei-o demais, por não perceber o que ele dizia
e até por ignorar como se chamava.
Esse
caso rendeu-me decepções e algum proveito. Cantarolei bocejando os
nebulosos conselhos. A professora me corrigia. Quando, porém, eu
engrolava, tossindo, o nome do autor, faltava a emenda — e em
consequência presumi que, pelo menos nesse ponto, a rudeza da mulher
coincidia com a minha. Certifiquei-me disso deixando de tossir e
pronunciando Smiles de várias maneiras, sem que D. Agnelina me
repreendesse.
Afinal
percebi nela um procedimento esquisito: antes que eu largasse
barbaramente a extraordinária palavra, fechava o livro e
desconversava. Nasceu daí uma espécie de cumplicidade, que a tornou
razoável durante meses. Em aritmética eu era um selvagem, pouco
mais ou menos um selvagem, mas fui tolerado, e creio que devo isto a
Samuel Smiles.
Essa
professora atrasada possuía raro talento para narrar histórias de
Trancoso. Visitava-nos, prendia-nos até meia-noite com lendas e
romances, que estirava e coloria admiravelmente. Nada me ensinou, mas
transmitiu-me afeição às mentiras impressas.
Talvez
a prenda notável de D. Agnelina tenha induzido meu pai a afastar-me
do mau caminho, confiar-me ao Professor Rijo, aposentado, rábula
distinto.
Éramos
apenas dois alunos, eu e meu primo José, um pouco mais bruto que eu.
Na ausência do mestre, bocejávamos, olhávamos as andorinhas no
céu, as lagartixas brancas na parede e os lombos temerosos dos
livros nas estantes. O homem aparecia de salto, tomava as nossas
lições rapidamente, encoivarava algumas perguntas e dava logo as
respostas, sem esperar que acertássemos ou errássemos.
Aí
me caiu a leitura de uma das maçadas de Samuel Smailes. Tossi e
resmunguei a segunda palavra enchendo a boca de língua. O professor
interrompeu-me, separando as sílabas com bastante clareza: Samuel
Smailes.
Arregalei
o olho, o sujeito repetiu: Smailes. Balbuciei o nome encrencado sem
nenhuma segurança. Imaginei um engano: tinha por erro o que divergia
da minha maneira habitual de falar. Realmente pronunciara Smiles de
vários modos, mas supunha que alguns deles estivesse direito.
Julguei o professor uma besta — e meu primo José concordou.
Finda,
porém, essa manifestação de rebeldia, chegaram-me dúvidas, grande
espanto em seguida, por fim mistura vaga de resistência e admiração
àquele homem que alterava as letras. A firmeza séria me deu a
suspeita de que me achava na presença de uma autoridade. E como não
me seria possível discernir razões profundas, contentei-me com as
aparências — e a suspeita se transformou em convicção.
Eu
afirmava com facilidade. Lera um romance e conseguira entendê-lo.
Entendera pedaços, que o meu vocabulário era insignificante. Pois
julguei-o, seguro, o maior romance do mundo. Depois a certeza se
abalou, assaltaram-me vacilações dolorosas.
O
professor não podia comparar-se aos viventes comuns. Grave, o dedo
na página, articulara: Smailes. Nas lições seguintes percebi que
ele não se contradizia. Comecei então a admirá-lo. Procurei outras
palavras em que o i se pronunciasse daquele jeito. Inutilmente.
Apesar de tudo Smiles era Smailes, e ninguém me tirava daí.
Ora,
um dia, na loja, achava-me remoendo um jornal em voz alta, só para
me familiarizar com a literatura, sem notar que me escutavam. De
repente o meu conhecido avultou no papel. Temperei a goela e
exclamei: Samuel Smailes. Um dos caixeiros censurou-me a ignorância
e corrigiu: Samuel Símiles. Outro caixeiro hesitou entre Símiles e
Simíles. Repeti que era Smailes, e isto produziu hilaridade.
O
moço que dizia Simíles costumava zombar de mim com barulho.
Qualquer dito meu o excitava: mordia os beiços, avermelhava-se como
um peru, lacrimejava, enfim não se continha, caía num riso
convulso, rolava sobre o balcão, meio sufocado. Certamente eu era
ridículo: alguma tolice provocara a manifestação ruidosa. Que
tolice? Não a enxergava. Inteligência curta.
O
empregado que dizia Simíles, mulato vaidoso e seco, nunca me olhava
de frente. Quando eu lhe falava, virava-se para outro lado e rosnava
ofensas em linguagem escolhida. Entre os indivíduos que frequentavam
a loja, havia um particularmente desagradável: Fernando. Esse
monstro sentia prazer em martirizar-me. Grosseiro demais,
insultava-me sem precisão.
Eu
tinha o juízo fraco e em vão tentava emendar-me: provocava risos,
muxoxos, palavrões. Encolhia-me, esfriava, a vista escurecia.
Calava-me na presença desses entes ruins, escapulia-me como um rato,
mas não conseguia livrar-me. Sentava-me num canto, em silêncio,
folheando o dicionário para interpretar o romance de capa e espada,
e eles se chegavam, pouco a pouco tomavam conta de mim, quase sempre
referindo-se a vagos disparates meus.
Algumas
vezes busquei desembaraçar-me reproduzindo molemente, com as orelhas
pegando fogo, os insultos de Fernando. Sempre me dei mal: as risadas
cresciam, os muxoxos engrossavam, Fernando se tornava mais feroz.
Inútil reagir.
Naquele
dia, porém, quando o mulato me replicou duramente, jurei que ele
estava errado. O tipo branco foi-se avermelhando, acabou explodindo
na risada ordinária. Asseverei de novo que Samuel era Smailes,
perfeitamente Smailes, mas falei bambo, muito infeliz e com vontade
de chorar. O rapaz continuava a rir, o mulato resmungava e franzia as
ventas, Fernando me injuriava.
Diante
disso, invoquei a autoridade do professor, que devia conhecer bem
Samuel Smiles. O professor dizia Smailes. Mentira, gritou Fernando —
injustiça, pois eu não sabia mentir. Cobriram-me de motejos e
resolveram adotar a opinião do mulato: Samuel Símiles. Arriei,
vencido.
Mas
sosseguei. Aquela vaia não me alcançava: feria uma pessoa sabida.
Achei apoio, indaguei se as bobagens que a trinca maliciosa me
atribuía eram bobagens. Cresci um pouco, esteado no homem que só me
ensinou o nome de Samuel Smiles, e ensinou muito. Sentado num caixão,
o dicionário nas pernas, ri-me dos três. Idiotas. Eu era meio
parvo, todos se impacientavam com a minha falta de espírito. Rude,
sem dúvida. Vocabulário mesquinho, entendimento escasso.
Mas
Samuel Smiles impunha-se facilmente. Era Smailes porque a voz do
professor me chegava clara, porque a unha amarela do professor
riscava a página com energia. Samuel Smailes, pois não.
E
as pilhérias dos sujeitos resvalaram por mim sem fazer mossa. O
coração aliviou. Isolei-me, o rosto metido no dicionário. Imbecis.
Tinham decidido por maioria que Samuel era Símiles.
Pus-me
a ler baixo, inteiramente desanuviado. Imbecis. Samuel Smailes, com
certeza. E enrosquei-me, embrenhei-me no dicionário, eximi-me da
influência dos três malvados. Samuel Smiles, escritor cacete,
prestou-me serviço imenso.
Graciliano
Ramos, in Infância
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