segunda-feira, 27 de abril de 2020

Ainda Otacília

Desde esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme. O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro. Que Diadorim tinha ciúme de mim com qualquer mulher, eu já sabia, fazia tempo, até. Quase desde o princípio. E, naqueles meses todos, a gente vivendo em par a par, por altos e baixos, amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguia esconder, bem que se esforçava. Vai, e vem, me intimou a um trato: que, enquanto a gente estivesse em ofício de bando, que nenhum de nós dois não botasse mão em nenhuma mulher. Afiançado, falou: ― Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado avêjo servem só para tirar da gente o poder da coragem... Você cruza e jura?! Jurei. Se nem toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do corpo, malandragem. Mas Diadorim dava como exemplo a regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem ― o sempre sem mulher, mas valente em qualquer praça. Prometi. Por um prazo, jejuei de nem não ver mulher nenhuma. Mesmo. Tive penitência. O senhor sabe o que isso é? Desdeixei duma rôxa, a que me suplicou os carinhos vantajosos. E outra, e tantas. E uma rapariga, das de luxo, que passou de viagem, e serviu aos companheiros quase todos, e era perfumada, proseava gentil sobre as sérias imoralidades, tinha beleza. Não acreditei em juramento, nem naquilo de seo Joãozinho Bem-Bem; mas Diadorim me vigiava. De meus sacrifícios, ele me pagava com seu respeito, e com mais amizade. Um dia, no não poder, ele soube, ele quase viu! eu tinha gozado hora de amores, com uma mocinha formosa e dianteira, morena cor de dôce-de-burití. Diadorim soube o que soube, me disse nada menos nada. Um modo, eu mesmo foi que uns dias calado passei, na asperidão sem tristeza. De déu em demos, falseando; sempre tive fogo bandoleiro. Diadorim não me acusava, mas padecia. Ao que me acostumei, não me importava. Que direito um amigo tinha, de querer de mim um resguardo de tamanha qualidade? As vezes, Diadorim me olhasse com um desdém, fosse eu caso perdido de lei, descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas pesadas. ― Não sou o nenhum, não sou frio, não… Tenho minha força de homem! Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saíu para longe de mim; desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para eu ter pena? Homem não chora! ― eu pensei, para formas. Então, eu ia deixar para a boca dos outros aquela menina que se agradou de mim, e que tinha cor de dôce-de-burití e os seios tão grandes?! Ah, essa agora não estava a meu dispor, tínhamos viajado muito para longe de onde ela morava. Mas entramos num arraial maior, com progresso de bordel, no hospedado daquilo usufruí muito, sou senhor. Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro. Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não tinham chá de mate seco, comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar: São João das Altas. Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem. O senhor releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as lembranças da mocidade. Não estou contando? Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado, de mim. E eu ― como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.
E ainda falhamos dois dias na Fazenda Santa Catarina. Naquele primeiro dia, eu pude conversar outras vezes com Otacília, que, para mim, hora em mais hora embelezava. Minha alma, que eu tive; e minha ideia esbarrada. Conheci que Otacília era moça direta e opiniosa, sensata mas de muita ação. Ela não tinha irmão nem irmã. Sôr Amadeu chefiava largo: grandes gados em léguas de alqueires. Otacília não estava nôiva de ninguém. E ia gostar de mim? De moça-de-família eu pouco entendesse. A ser, a Rosauarda? Assim igual eu Otacília não queria querer; salvante assente que da Rosauarda nunca me lembrei com desprezo: não vê, não cuspo no prato em que o bom já comi. Sete voltas, sete, dei; pensamentos eu pensava.
Revirei meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas. Poetagem. Mas era o que eu sincero queria ― como em fala de livros, o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O que uma mocinha assim governa, sem precisão de armas e galopes, guardada macia e fina em sua casa-grande, sorrindo santinha no alto da alpendrada... E ela queria saber tudo de mim, mais ainda me perguntava. ― Donde é mesmo que o senhor é, donde? Se sorria. E eu não medi meus alforges! fui contando que era filho de Seô Selorico Mendes, dono de três possosas fazendas, assistindo na São Gregório. E que não tinha em minhas costas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente por cálculos de razoável política era que eu vinha conduzindo aqueles jagunços, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel de todos estes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu era diferente deles.
Fiquei esperando o que ela desse em resposta. Nem nada não acreditava? Mas Otacília mudou para séria a feição do rosto, não queria mais de minha vida só assim meiamente indagar. Os de todos lindos olhos dela estavam me assinalando o céu com essas nuvens. Eu tinha renegado Diadorim, travei o que tive vergonha. Já era para entardecendo.Vindo na vertente, tinha o quintal, e o mato, com o garrulho de grandes maracanãs pousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o sol dourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas peças nuvens sem movimento. Mas, da parte do poente, algum vento suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem fazer um seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas escuras e águas todas do Urucúia, e nesse céu sertanejo azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar rajas feito de ferro quente e sangues. Digo, porque até hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu, senhor? Lhe ensino! porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado.
Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores. Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e J oãoVaqueiro não esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que sabia?
Aquilo é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal, deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano, foi, foi, foi... ― que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva. De repente.
Riobaldo, você está gostando dessa moça?
Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A voz dele vinha pelos dentes.
Não, Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei, minha alma obedecia.
Você sabe do seu destino, Riobaldo?
Não respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má loucura de tudo aquilo. Tremi não.
Você sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava ajoelhado na beira de mim.
Se nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Nenhum comentário:

Postar um comentário