Desde
esse primeiro dia, Diadorim guardou raiva de Otacília. E mesmo eu
podia ver que era açoite de ciúme. O senhor espere o meu contado.
Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é
que o escuro é claro. Que Diadorim tinha ciúme de mim com qualquer
mulher, eu já sabia, fazia tempo, até. Quase desde o princípio. E,
naqueles meses todos, a gente vivendo em par a par, por altos e
baixos, amarguras e perigos, o roer daquilo ele não conseguia
esconder, bem que se esforçava. Vai, e vem, me intimou a um trato:
que, enquanto a gente estivesse em ofício de bando, que nenhum de
nós dois não botasse mão em nenhuma mulher. Afiançado, falou: ―
Promete que temos de cumprir isso, Riobaldo, feito jurado nos
Santos-Evangelhos! Severgonhice e airado avêjo servem só para tirar
da gente o poder da coragem... Você cruza e jura?! Jurei. Se nem
toda a vez cumpri, ressalvo é as poesias do corpo, malandragem. Mas
Diadorim dava como exemplo a regra de ferro de Joãozinho Bem-Bem ―
o sempre sem mulher, mas valente em qualquer praça. Prometi. Por um
prazo, jejuei de nem não ver mulher nenhuma. Mesmo. Tive penitência.
O senhor sabe o que isso é? Desdeixei duma rôxa, a que me suplicou
os carinhos vantajosos. E outra, e tantas. E uma rapariga, das de
luxo, que passou de viagem, e serviu aos companheiros quase todos, e
era perfumada, proseava gentil sobre as sérias imoralidades, tinha
beleza. Não acreditei em juramento, nem naquilo de seo Joãozinho
Bem-Bem; mas Diadorim me vigiava. De meus sacrifícios, ele me pagava
com seu respeito, e com mais amizade. Um dia, no não poder, ele
soube, ele quase viu! eu tinha gozado hora de amores, com uma mocinha
formosa e dianteira, morena cor de dôce-de-burití. Diadorim soube o
que soube, me disse nada menos nada. Um modo, eu mesmo foi que uns
dias calado passei, na asperidão sem tristeza. De déu em demos,
falseando; sempre tive fogo bandoleiro. Diadorim não me acusava, mas
padecia. Ao que me acostumei, não me importava. Que direito um amigo
tinha, de querer de mim um resguardo de tamanha qualidade? As vezes,
Diadorim me olhasse com um desdém, fosse eu caso perdido de lei,
descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a ele
coisas pesadas. ― Não sou o nenhum, não sou frio, não… Tenho
minha força de homem! Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saíu para
longe de mim; desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para
eu ter pena? Homem não chora! ― eu pensei, para formas. Então, eu
ia deixar para a boca dos outros aquela menina que se agradou de mim,
e que tinha cor de dôce-de-burití e os seios tão grandes?! Ah,
essa agora não estava a meu dispor, tínhamos viajado muito para
longe de onde ela morava. Mas entramos num arraial maior, com
progresso de bordel, no hospedado daquilo usufruí muito, sou senhor.
Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro.
Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda,
perguntou se não tinham chá de mate seco, comercial; e um homem
tirou instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar: São João das
Altas. Mulher esperta, cinturinhazinha, que me fez bem. O senhor
releve e não reprove. Demasias de dizer sobem com as lembranças da
mocidade. Não estou contando? Pois minha vida em amizade com
Diadorim correu por muito tempo desse jeito. Foi melhorando, foi. Ele
gostava, destinado, de mim. E eu ― como é que posso explicar ao
senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era
aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim
tomou conta de mim.
E
ainda falhamos dois dias na Fazenda Santa Catarina. Naquele primeiro
dia, eu pude conversar outras vezes com Otacília, que, para mim,
hora em mais hora embelezava. Minha alma, que eu tive; e minha ideia
esbarrada. Conheci que Otacília era moça direta e opiniosa, sensata
mas de muita ação. Ela não tinha irmão nem irmã. Sôr Amadeu
chefiava largo: grandes gados em léguas de alqueires. Otacília não
estava nôiva de ninguém. E ia gostar de mim? De moça-de-família
eu pouco entendesse. A ser, a Rosauarda? Assim igual eu Otacília não
queria querer; salvante assente que da Rosauarda nunca me lembrei com
desprezo: não vê, não cuspo no prato em que o bom já comi. Sete
voltas, sete, dei; pensamentos eu pensava.
Revirei
meu fraseado. Quis falar em coração fiel e sentidas coisas.
Poetagem. Mas era o que eu sincero queria ― como em fala de livros,
o senhor sabe: de bel-ver, bel-fazer e bel-amar. O que uma mocinha
assim governa, sem precisão de armas e galopes, guardada macia e
fina em sua casa-grande, sorrindo santinha no alto da alpendrada... E
ela queria saber tudo de mim, mais ainda me perguntava. ― Donde é
mesmo que o senhor é, donde? Se sorria. E eu não medi meus
alforges! fui contando que era filho de Seô Selorico Mendes, dono de
três possosas fazendas, assistindo na São Gregório. E que não
tinha em minhas costas crime nenhum, nem estropelias, mas que somente
por cálculos de razoável política era que eu vinha conduzindo
aqueles jagunços, para Medeiro Vaz, o bom foro e patente fiel de
todos estes Gerais. Aqueles? Diadorim e os outros? Eu era diferente
deles.
Fiquei
esperando o que ela desse em resposta. Nem nada não acreditava? Mas
Otacília mudou para séria a feição do rosto, não queria mais de
minha vida só assim meiamente indagar. Os de todos lindos olhos dela
estavam me assinalando o céu com essas nuvens. Eu tinha renegado
Diadorim, travei o que tive vergonha. Já era para entardecendo.Vindo
na vertente, tinha o quintal, e o mato, com o garrulho de grandes
maracanãs pousadas numa embaúba, enorme, e nas mangueiras, que o
sol dourejava. Da banda do serro, se pegava no céu azul, com aquelas
peças nuvens sem movimento. Mas, da parte do poente, algum vento
suspendia e levava rabos-de-galo, como que com eles fossem fazer um
seu branco ninho, muito longe, ermo dos Gerais, nas beiras matas
escuras e águas todas do Urucúia, e nesse céu sertanejo
azul-verde, que mais daí a pouco principiava a tomar rajas feito de
ferro quente e sangues. Digo, porque até hoje tenho isso tudo do
momento riscado em mim, como a mente vigia atrás dos olhos. Por que,
meu, senhor? Lhe ensino! porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e
por isso mesmo logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A
espécie do que senti. O sol entrado.
Daí,
sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do
engenho, deitados em couros e esteiras ― nem se tinha o espaço de
lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria
conversa, as ideias que já estavam se acontecendo eram maiores.
Assim eu ouvindo o cicirí dos grilos. Na beira da rebaixa, a
fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo
em tição, pitou um cigarro. O Jesualdo, Fafafa e J oãoVaqueiro não
esbarravam de falar, mais o Alaripe também, repesavam as vantagens
da Santa Catarina. No que eu pensava? Em Otacília. Eu parava sempre
naquela meia-incerteza, sem saber se ela sim-se. Ao que nós todos
pensávamos as mesmas coisas; o que cada um sonhava, quem é que
sabia?
― Aquilo
é poço que promete peixe... ― o Jesualdo disse. Dela devia de
ser. ― Amigo, não toque no nome dessa moça, amigo!... ― eu
falei. Ninguém deu resposta, eles viam que era a sério fatal,
deviam de estar agora desqueixelados, no escuro. Por longe, a
mãe-da-lua suspirou o grito: ― Floriano, foi, foi, foi... ―
que gemia nas almas. Então, era que em alguma parte a lua estava se
saindo, a mãe-da-lua pousada num cupim fica mirando, apaixonada
abobada. Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio
pesaroso. Daí, escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva.
De repente.
― Riobaldo,
você está gostando dessa moça?
Aí
era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me
procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A
voz dele vinha pelos dentes.
― Não,
Diadorim. Estou gostando não... ― eu disse, neguei que reneguei,
minha alma obedecia.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo?
Não
respondi. Deu para eu ver o punhal na mão dele, meio ocultado. Não
tive medo de morrer. Só não queria que os outros percebessem a má
loucura de tudo aquilo. Tremi não.
― Você
sabe do seu destino, Riobaldo? ― ele reperguntou. Aí estava
ajoelhado na beira de mim.
― Se
nanja, sei não. O demônio sabe... ― eu respondi. ― Pergunta...
Me
diga o senhor! por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de
Deus? Ah, não sei. Não me lembrei do poder da cruz, não fiz
esconjuro. Cumpri como se deu. Como o diabo obedece ― vivo no
momento. Diadorim encolheu o braço, com o punhal, se defastou e
deitou de corpo, outra vez. Os olhos dele dansar produziam, de estar
brilhando. E ele devia de estar mordendo o correiame de couro.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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