quarta-feira, 29 de abril de 2020

O levantar

Já eram cinco e meia quando eu disse pra ela “eu vou pular da cama” mas ela então se enroscou em mim feito uma trepadeira, suas garras se fechando onde podiam, e ela tinha as garras das mãos e as garras dos pés, e um visgo grosso e de cheiro forte por todo o corpo, e como a gente já estava quase se engalfinhando eu disse “me deixe, trepadeirinha”, sabendo que ela gostava que eu falasse desse jeito, pois ela em troca me disse fingindo alguma solenidade “eu não vou te deixar, meu mui grave cypressus erectus”, gabando-se com os olhos de tirar efeito tão alto no repique (se bem que ela não fosse lá versada em coisas de botânica, menos ainda na geometria das coníferas, e o pouco que atrevia sobre plantas só tivesse aprendido comigo e mais ninguém), e como eu sabia que não há rama nem tronco, por mais vigor que tenha a árvore, que resista às avançadas duma reptante, eu só sei que me arranquei dela enquanto era tempo e fui esquivo e rápido pra janela, subindo imediatamente a persiana, e recebendo de corpo ainda quente o arzinho frio e úmido que começou a entrar no quarto, mas mesmo assim me debrucei no parapeito, e, pensativo, vi que o dia lá fora mal se espreguiçava sob o peso de uma cerração fechada, e, só esboçadas, também notei que as zínias do jardim embaixo brotavam com dificuldade dos borrões de fumaça, e estava assim na janela, de olhos agora voltados pro alto da colina em frente, no lugar onde o Seminário estava todo confuso no meio de tanta neblina, quando ela veio por trás e se enroscou de novo em mim, passando desenvolta a corda dos braços pelo meu pescoço, mas eu com jeito, usando de leve os cotovelos, amassando um pouco seus firmes seios, acabei dividindo com ela a prisão a que estava sujeito, e, lado a lado, entrelaçados, os dois passamos, aos poucos, a trançar os passos, e foi assim que fomos diretamente pro chuveiro.
Raduan Nassar, in Um copo de cólera

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