Às
dez horas a noite, Leonardo, levantando-se do caixão de querosene,
aproximou-se das velas, viu as horas. Acordou Eduardo a dormir de
boca aberta, incômodo, na cadeira:
– Vou
embora. Às seis da manhã estarei de volta para você ter tempo de
ir em casa mudar a roupa.
Eduardo
estirou as pernas, pensou em sua cama. Doía-lhe o pescoço. No canto
do quarto, Curió, Pé-de-Vento e cabo Martim conversavam em voz
baixa, numa discussão apaixonante: qual deles substituiria Quincas
no coração e no leito de Quitéria do Olho Arregalado? Cabo Martim,
revelando um egoísmo revoltante, não aceitava ser riscado da lista
de herdeiros pelo fato de possuir o coração e o corpo esbelto da
negrinha Carmela. Eduardo, quando o eco dos passos de Leonardo
perdeu-se na rua, fitou o grupo. A discussão parou, cabo Martim
sorriu para o comerciante. Este olhava, invejoso, Negro Pastinha no
melhor dos sonos. Acomodou-se novamente na cadeira, pôs os pés
sobre o caixão de querosene. Doía-lhe o pescoço. Pé-de-Vento não
resistiu, retirou a jia do bolso, colocou-a no chão. Ela saltou, era
engraçada. Parecia uma assombração solta no quarto. Eduardo não
conseguia dormir. Olhou o morto no caixão, imóvel. Era o único a
estar comodamente deitado. Por que diabo estava ele ali, fazendo
sentinela? Não era suficiente vir ao enterro, não estava pagando
parte das despesas? Cumpria seu dever de irmão até bem demais em se
tratando de um irmão como Quincas, um incômodo em sua vida.
Levantou-se,
movimentou pernas e braços, abriu a boca num bocejo. Pé-de-Vento
escondia na mão a pequena jia verde. Curió pensava em Quitéria do
Olho Arregalado. Mulher e tanto... Eduardo parou ante eles:
– Me
digam uma coisa...
Cabo
Martim, psicólogo por vocação e necessidade, perfilou-se:
– Às
suas ordens, meu comandante.
Quem
sabe não iria o comerciante mandar comprar uma bebidinha para ajudar
a travessia da noite longa?
– Vocês
vão ficar a noite toda?
– Com
ele? Sim senhor. A gente era amigo.
– Então
vou em casa, descansar um pouco – meteu a mão no bolso, retirou
uma nota. Os olhos do Cabo, de Curió e Pé-de-Vento acompanhavam
seus gestos. – Tá aí para vocês comprarem uns sanduíches. Mas
não deixem ele sozinho. Nem um minuto, hein!
– Pode
ir descansado, a gente faz companhia a ele.
Negro
Pastinha acordou quando sentiu o cheiro de cachaça. Antes de começar
a beber, Curió e Pé-de-Vento acenderam cigarros; cabo Martim, um
daqueles charutos de cinquenta centavos, negros e fortes, que só os
verdadeiros fumantes sabem apreciar. Passara a fumaça poderosa sob o
nariz do negro, nem assim ele acordara. Mas apenas destamparam a
garrafa (a discutida primeira garrafa que, segundo a família, o Cabo
levara escondida sob a camisa) o negro abriu os olhos e reclamou um
trago.
Os
primeiros tragos despertaram nos quatro amigos um acentuado espírito
crítico. Aquela família de Quincas, tão metida a sebo, revelara-se
mesquinha e avarenta. Fizera tudo pela metade. Onde as cadeiras para
as visitas sentarem? Onde as bebidas e comidas habituais, mesmo em
velórios pobres? Cabo Martim comparecera a muita sentinela de
defunto, nunca vira uma tão vazia de animação. Mesmo nas mais
pobres serviam pelo menos um cafezinho e um gole de cachaça. Quincas
não merecia tal tratamento. De que adiantava arrotar importância e
deixar o morto naquela humilhação, sem nada para oferecer aos
amigos? Curió e Pé-deVento saíram em busca de assentos e
mantimentos. Cabo Martim achava necessário organizar o velório com
um mínimo de decência, pelo menos. Sentado na cadeira, dava ordens:
caixões e garrafas. Negro Pastinha ocupara o caixão de querosene,
aprovava com a cabeça. Devia-se confessar que, em relação ao
cadáver propriamente dito, a família comportara-se bem. Roupa nova,
sapatos novos, uma elegância. E velas bonitas, das de igreja. Ainda
assim haviam esquecido as flores, onde já se viu cadáver sem
flores?
– Está
um senhor – gabou Negro Pastinha. – Um defunto porreta!
Quincas
sorriu com o elogio, o negro retribuiu-lhe o sorriso:
– Paizinho...
– disse comovido e cutucou-lhe as costelas com o dedo, como
costumava fazer ao ouvir uma boa piada de Quincas.
Curió
e Pé-de-Vento voltaram com caixões, um pedaço de salame e algumas
garrafas cheias. Fizeram um semicírculo em torno ao morto e então
Curió propôs rezarem em conjunto o Padre-Nosso. Conseguira, num
surpreendente esforço de memória, recordar-se da oração quase
completa. Os demais concordaram, sem convicção. Não lhes parecia
fácil. Negro Pastinha conhecia variados toques de Oxum e Oxalá,
mais longe não ia sua cultura religiosa. Pé-de-Vento não rezava há
uns trinta anos. Cabo Martim considerava preces e igrejas como
fraquezas pouco condizentes com a vida militar. Ainda assim tentaram,
Curió puxando a reza, os outros respondendo como melhor podiam.
Finalmente Curió (que se havia posto de joelhos e baixara a cabeça
contrita) irritou-se:
– Cambada
de burros...
– Falta
de treino... – disse o Cabo. – Mas já foi alguma coisa. O resto
o padre faz amanhã.
Quincas
parecia indiferente à reza, devia estar com calor, metido naquelas
roupas quentes. Negro Pastinha examinou o amigo, precisavam fazer
alguma coisa por ele já que a oração não dera certo. Talvez
cantar um ponto de candomblé? Alguma coisa deviam fazer. Disse a
Pé-de-Vento:
– Cadê
o sapo? Dá pra ele...
– Sapo,
não. Jia. Agora, pra que lhe serve?
– Talvez
ele goste.
Pé-de-Vento
tomou delicadamente a jia, colocou-a nas mãos cruzadas de Quincas. O
animal saltou, escondeu-se no fundo do caixão. Quando a luz
oscilante das velas batia no seu corpo, fulgurações verdes
percorriam o cadáver.
Entre
cabo Martim e Curió recomeçou a discussão sobre Quitéria do Olho
Arregalado. Com a bebida, Curió ficava mais combativo, elevava a voz
em defesa dos seus interesses. Negro Pastinha reclamou:
– Vocês
não têm vergonha de disputar a mulher dele na vista dele? Ele ainda
quente e vocês que nem urubu em carniça?
– Ele
é que pode decidir... – disse Pé-de-Vento. Tinha esperanças de
ser escolhido por Quincas para herdar Quitéria, seu único bem. Não
lhe trouxera uma jia verde, a mais bela de quantas já caçara?
– Hum!
– fez o defunto.
– Tá
vendo? Ele não está gostando dessa conversa – zangou-se o negro.
– Vamos
dar um gole a ele também... – propôs o Cabo, desejoso das boas
graças do morto.
Abriram-lhe
a boca, derramaram a cachaça. Espalhou-se um pouco pela gola do
paletó e o peito da camisa.
– Também
nunca vi ninguém beber deitado...
– É
melhor sentar ele. Assim pode ver a gente direito.
Sentaram
Quincas no caixão, a cabeça movia-se para um e outro lado. Com o
gole de cachaça ampliara-se seu sorriso.
– Bom
paletó... – cabo Martim examinou a fazenda. – Besteira botar
roupa nova em defunto. Morreu, acabou, vai pra baixo da terra. Roupa
nova pra verme comer, e tanta gente por aí precisando...
Palavras
cheias de verdade, pensaram. Deram mais um gole a Quincas, o morto
balançou a cabeça, era homem capaz de dar razão a quem a possuía,
estava evidentemente de acordo com as considerações de Martim.
– Ele
está é estragando a roupa.
– É
melhor tirar o paletó pra não esculhambar.
Quincas
pareceu aliviado quando lhe retiraram o paletó negro e pesado,
quentíssimo. Mas, como continuava a cuspir a cachaça, tiraram-lhe
também a camisa. Curió namorava os sapatos lustrosos, os seus
estavam em pandarecos. Pra que morto quer sapato novo, não é,
Quincas?
– Dão
direitinho nos meus pés.
Negro
Pastinha recolheu no canto do quarto as velhas roupas do amigo,
vestiram-no e reconheceram-no então:
– Agora,
sim, é o velho Quincas.
Sentiam-se
alegres. Quincas parecia também mais contente, desembaraçado
daquelas vestimentas incômodas. Particularmente grato a Curió, pois
os sapatos apertavam-lhe os pés. O camelô aproveitou para aproximar
sua boca do ouvido de Quincas e sussurrar-lhe algo sobre Quitéria.
Pra que o fez? Bem dizia Negro Pastinha que aquela conversa sobre a
rapariga irritava Quincas. Ficou violento, cuspiu uma golfada de
cachaça no olho de Curió. Os outros estremeceram, amedrontados.
– Ele
se danou.
– Eu
não disse?
Pé-de-Vento
terminava de vestir as calças novas, cabo Martim ficara com o
paletó. A camisa Negro Pastinha trocaria, num botequim conhecido,
por uma garrafa de cachaça. Lastimavam a falta de cuecas. Com muito
jeito, cabo Martim disse a Quincas:
– Não
é para falar mal, mas essa sua família é um tanto quanto
econômica. Acho que o genro abafou as cuecas...
– Unhas-de-fome...
– precisou Quincas.
– Já
que você mesmo diz, é verdade. A gente não queria ofender eles,
afinal são seus parentes. Mas que pão-durismo, que sumiticaria...
Bebida por conta da gente, onde já se viu sentinela desse jeito?
– Nem
uma flor... – concordou Pastinha. – Parentes dessa espécie eu
prefiro não ter.
– Os
homens, uns bestalhões. As mulheres, umas jararacas – definiu
Quincas, preciso.
– Olha,
paizinho, a gorducha até que vale uns trancos... Tem uma padaria que
dá gosto.
– Um
saco de peidos.
– Não
diga isso, paizinho. Ela tá um pouco amassada mas não é pra tanto
desprezo. Já vi coisa pior.
– Negro
burro. Nem sabe o que é mulher bonita.
Pé-de-Vento,
sem nenhum senso de oportunidade, falou:
– Bonita
é Quitéria, hein, velhinho? O que é que ela vai fazer agora? Eu
até...
– Cala
a boca, desgraçado! Não vê que ele se zanga?
Quincas,
porém, nem ouvia. Atirava a cabeça para o lado do cabo Martim, que
pretendera subtrair-lhe, naquela horinha mesmo, um trago na
distribuição da bebida. Quase derruba a garrafa com a cabeçada.
– Dá
a cachaça do paizinho... – exigia Negro Pastinha.
– Ele
estava esperdiçando – explicava o Cabo.
– Ele
bebe como quiser. É um direito dele.
Cabo
Martim enfiava a garrafa pela boca aberta de Quincas:
– Calma,
companheiro. Não tava querendo lhe lesar. Tá aí, beba a sua
vontade. A festa é mesmo sua...
Tinham
abandonado a discussão sobre Quitéria. Pelo jeito, Quincas não
admitia nem que se tocasse no assunto.
– Boa
pinga! – elogiou Curió.
– Vagabunda!
– retificou Quincas, conhecedor.
– Também
pelo preço...
A
jia saltara para o peito de Quincas. Ele a admirava, não tardou a
guardá-la no bolso do velho paletó sebento.
A
lua cresceu sobre a cidade e as águas, a lua da Bahia em seu
desparrame de prata entrou pela janela. Veio com ela o vento do mar,
apagou as velas, já não se via o caixão. Melodia de violões
andava pela ladeira, voz de mulher cantando penas de amor. Cabo
Martim começou também a cantar.
– Ele
adora ouvir uma cantiga...
Cantavam
os quatro, a voz de baixo do Negro Pastinha ia perder-se mais além
da ladeira, no rumo dos saveiros. Bebiam e cantavam. Quincas não
perdia nem um gole, nem um som, gostava de cantigas.
Quando
já estavam fartos de tanto cantar, Curió perguntou:
– Não
era hoje de noite a moqueca de Mestre Manuel?
– Hoje
mesmo. Moqueca de arraia – acentuou Pé-de-Vento.
– Ninguém
faz moqueca igual a Maria Clara – afirmou o Cabo.
Quincas
estalou a língua. Negro Pastinha riu:
– Tá
doidinho pela moqueca.
– E
por que a gente não vai? Mestre Manuel é até capaz de ficar
ofendido. Entreolharam-se. Já estavam um pouco atrasados pois ainda
tinham de ir buscar as mulheres. Curió expôs sua dúvidas:
– A
gente prometeu não deixar ele sozinho.
– Sozinho?
Por quê? Ele vai com a gente.
– Tou
com fome – disse Negro Pastinha.
Consultaram
Quincas:
– Tu
quer ir?
– Tou
por acaso aleijado, pra ficar aqui?
Um
trago para esvaziar a garrafa. Puseram Quincas de pé. Negro Pastinha
comentou:
– Tá
tão bêbedo que não se aguenta. Com a idade tá perdendo a força
pra cachaça. Vambora, paizinho.
Curió
e Pé-de-Vento saíram na frente. Quincas, satisfeito da vida, num
passo de dança ia entre Negro Pastinha e cabo Martim de braço dado.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D’água
Nenhum comentário:
Postar um comentário