quarta-feira, 29 de abril de 2020

A morte e a morte de Quincas Berro D’água - X



Às dez horas a noite, Leonardo, levantando-se do caixão de querosene, aproximou-se das velas, viu as horas. Acordou Eduardo a dormir de boca aberta, incômodo, na cadeira:
Vou embora. Às seis da manhã estarei de volta para você ter tempo de ir em casa mudar a roupa.
Eduardo estirou as pernas, pensou em sua cama. Doía-lhe o pescoço. No canto do quarto, Curió, Pé-de-Vento e cabo Martim conversavam em voz baixa, numa discussão apaixonante: qual deles substituiria Quincas no coração e no leito de Quitéria do Olho Arregalado? Cabo Martim, revelando um egoísmo revoltante, não aceitava ser riscado da lista de herdeiros pelo fato de possuir o coração e o corpo esbelto da negrinha Carmela. Eduardo, quando o eco dos passos de Leonardo perdeu-se na rua, fitou o grupo. A discussão parou, cabo Martim sorriu para o comerciante. Este olhava, invejoso, Negro Pastinha no melhor dos sonos. Acomodou-se novamente na cadeira, pôs os pés sobre o caixão de querosene. Doía-lhe o pescoço. Pé-de-Vento não resistiu, retirou a jia do bolso, colocou-a no chão. Ela saltou, era engraçada. Parecia uma assombração solta no quarto. Eduardo não conseguia dormir. Olhou o morto no caixão, imóvel. Era o único a estar comodamente deitado. Por que diabo estava ele ali, fazendo sentinela? Não era suficiente vir ao enterro, não estava pagando parte das despesas? Cumpria seu dever de irmão até bem demais em se tratando de um irmão como Quincas, um incômodo em sua vida.
Levantou-se, movimentou pernas e braços, abriu a boca num bocejo. Pé-de-Vento escondia na mão a pequena jia verde. Curió pensava em Quitéria do Olho Arregalado. Mulher e tanto... Eduardo parou ante eles:
Me digam uma coisa...
Cabo Martim, psicólogo por vocação e necessidade, perfilou-se:
Às suas ordens, meu comandante.
Quem sabe não iria o comerciante mandar comprar uma bebidinha para ajudar a travessia da noite longa?
Vocês vão ficar a noite toda?
Com ele? Sim senhor. A gente era amigo.
Então vou em casa, descansar um pouco – meteu a mão no bolso, retirou uma nota. Os olhos do Cabo, de Curió e Pé-de-Vento acompanhavam seus gestos. – Tá aí para vocês comprarem uns sanduíches. Mas não deixem ele sozinho. Nem um minuto, hein!
Pode ir descansado, a gente faz companhia a ele.
Negro Pastinha acordou quando sentiu o cheiro de cachaça. Antes de começar a beber, Curió e Pé-de-Vento acenderam cigarros; cabo Martim, um daqueles charutos de cinquenta centavos, negros e fortes, que só os verdadeiros fumantes sabem apreciar. Passara a fumaça poderosa sob o nariz do negro, nem assim ele acordara. Mas apenas destamparam a garrafa (a discutida primeira garrafa que, segundo a família, o Cabo levara escondida sob a camisa) o negro abriu os olhos e reclamou um trago.
Os primeiros tragos despertaram nos quatro amigos um acentuado espírito crítico. Aquela família de Quincas, tão metida a sebo, revelara-se mesquinha e avarenta. Fizera tudo pela metade. Onde as cadeiras para as visitas sentarem? Onde as bebidas e comidas habituais, mesmo em velórios pobres? Cabo Martim comparecera a muita sentinela de defunto, nunca vira uma tão vazia de animação. Mesmo nas mais pobres serviam pelo menos um cafezinho e um gole de cachaça. Quincas não merecia tal tratamento. De que adiantava arrotar importância e deixar o morto naquela humilhação, sem nada para oferecer aos amigos? Curió e Pé-deVento saíram em busca de assentos e mantimentos. Cabo Martim achava necessário organizar o velório com um mínimo de decência, pelo menos. Sentado na cadeira, dava ordens: caixões e garrafas. Negro Pastinha ocupara o caixão de querosene, aprovava com a cabeça. Devia-se confessar que, em relação ao cadáver propriamente dito, a família comportara-se bem. Roupa nova, sapatos novos, uma elegância. E velas bonitas, das de igreja. Ainda assim haviam esquecido as flores, onde já se viu cadáver sem flores?
Está um senhor – gabou Negro Pastinha. – Um defunto porreta!
Quincas sorriu com o elogio, o negro retribuiu-lhe o sorriso:
Paizinho... – disse comovido e cutucou-lhe as costelas com o dedo, como costumava fazer ao ouvir uma boa piada de Quincas.
Curió e Pé-de-Vento voltaram com caixões, um pedaço de salame e algumas garrafas cheias. Fizeram um semicírculo em torno ao morto e então Curió propôs rezarem em conjunto o Padre-Nosso. Conseguira, num surpreendente esforço de memória, recordar-se da oração quase completa. Os demais concordaram, sem convicção. Não lhes parecia fácil. Negro Pastinha conhecia variados toques de Oxum e Oxalá, mais longe não ia sua cultura religiosa. Pé-de-Vento não rezava há uns trinta anos. Cabo Martim considerava preces e igrejas como fraquezas pouco condizentes com a vida militar. Ainda assim tentaram, Curió puxando a reza, os outros respondendo como melhor podiam. Finalmente Curió (que se havia posto de joelhos e baixara a cabeça contrita) irritou-se:
Cambada de burros...
Falta de treino... – disse o Cabo. – Mas já foi alguma coisa. O resto o padre faz amanhã.
Quincas parecia indiferente à reza, devia estar com calor, metido naquelas roupas quentes. Negro Pastinha examinou o amigo, precisavam fazer alguma coisa por ele já que a oração não dera certo. Talvez cantar um ponto de candomblé? Alguma coisa deviam fazer. Disse a Pé-de-Vento:
Cadê o sapo? Dá pra ele...
Sapo, não. Jia. Agora, pra que lhe serve?
Talvez ele goste.
Pé-de-Vento tomou delicadamente a jia, colocou-a nas mãos cruzadas de Quincas. O animal saltou, escondeu-se no fundo do caixão. Quando a luz oscilante das velas batia no seu corpo, fulgurações verdes percorriam o cadáver.
Entre cabo Martim e Curió recomeçou a discussão sobre Quitéria do Olho Arregalado. Com a bebida, Curió ficava mais combativo, elevava a voz em defesa dos seus interesses. Negro Pastinha reclamou:
Vocês não têm vergonha de disputar a mulher dele na vista dele? Ele ainda quente e vocês que nem urubu em carniça?
Ele é que pode decidir... – disse Pé-de-Vento. Tinha esperanças de ser escolhido por Quincas para herdar Quitéria, seu único bem. Não lhe trouxera uma jia verde, a mais bela de quantas já caçara?
Hum! – fez o defunto.
Tá vendo? Ele não está gostando dessa conversa – zangou-se o negro.
Vamos dar um gole a ele também... – propôs o Cabo, desejoso das boas graças do morto.
Abriram-lhe a boca, derramaram a cachaça. Espalhou-se um pouco pela gola do paletó e o peito da camisa.
Também nunca vi ninguém beber deitado...
É melhor sentar ele. Assim pode ver a gente direito.
Sentaram Quincas no caixão, a cabeça movia-se para um e outro lado. Com o gole de cachaça ampliara-se seu sorriso.
Bom paletó... – cabo Martim examinou a fazenda. – Besteira botar roupa nova em defunto. Morreu, acabou, vai pra baixo da terra. Roupa nova pra verme comer, e tanta gente por aí precisando...
Palavras cheias de verdade, pensaram. Deram mais um gole a Quincas, o morto balançou a cabeça, era homem capaz de dar razão a quem a possuía, estava evidentemente de acordo com as considerações de Martim.
Ele está é estragando a roupa.
É melhor tirar o paletó pra não esculhambar.
Quincas pareceu aliviado quando lhe retiraram o paletó negro e pesado, quentíssimo. Mas, como continuava a cuspir a cachaça, tiraram-lhe também a camisa. Curió namorava os sapatos lustrosos, os seus estavam em pandarecos. Pra que morto quer sapato novo, não é, Quincas?
Dão direitinho nos meus pés.
Negro Pastinha recolheu no canto do quarto as velhas roupas do amigo, vestiram-no e reconheceram-no então:
Agora, sim, é o velho Quincas.
Sentiam-se alegres. Quincas parecia também mais contente, desembaraçado daquelas vestimentas incômodas. Particularmente grato a Curió, pois os sapatos apertavam-lhe os pés. O camelô aproveitou para aproximar sua boca do ouvido de Quincas e sussurrar-lhe algo sobre Quitéria. Pra que o fez? Bem dizia Negro Pastinha que aquela conversa sobre a rapariga irritava Quincas. Ficou violento, cuspiu uma golfada de cachaça no olho de Curió. Os outros estremeceram, amedrontados.
Ele se danou.
Eu não disse?
Pé-de-Vento terminava de vestir as calças novas, cabo Martim ficara com o paletó. A camisa Negro Pastinha trocaria, num botequim conhecido, por uma garrafa de cachaça. Lastimavam a falta de cuecas. Com muito jeito, cabo Martim disse a Quincas:
Não é para falar mal, mas essa sua família é um tanto quanto econômica. Acho que o genro abafou as cuecas...
Unhas-de-fome... – precisou Quincas.
Já que você mesmo diz, é verdade. A gente não queria ofender eles, afinal são seus parentes. Mas que pão-durismo, que sumiticaria... Bebida por conta da gente, onde já se viu sentinela desse jeito?
Nem uma flor... – concordou Pastinha. – Parentes dessa espécie eu prefiro não ter.
Os homens, uns bestalhões. As mulheres, umas jararacas – definiu Quincas, preciso.
Olha, paizinho, a gorducha até que vale uns trancos... Tem uma padaria que dá gosto.
Um saco de peidos.
Não diga isso, paizinho. Ela tá um pouco amassada mas não é pra tanto desprezo. Já vi coisa pior.
Negro burro. Nem sabe o que é mulher bonita.
Pé-de-Vento, sem nenhum senso de oportunidade, falou:
Bonita é Quitéria, hein, velhinho? O que é que ela vai fazer agora? Eu até...
Cala a boca, desgraçado! Não vê que ele se zanga?
Quincas, porém, nem ouvia. Atirava a cabeça para o lado do cabo Martim, que pretendera subtrair-lhe, naquela horinha mesmo, um trago na distribuição da bebida. Quase derruba a garrafa com a cabeçada.
Dá a cachaça do paizinho... – exigia Negro Pastinha.
Ele estava esperdiçando – explicava o Cabo.
Ele bebe como quiser. É um direito dele.
Cabo Martim enfiava a garrafa pela boca aberta de Quincas:
Calma, companheiro. Não tava querendo lhe lesar. Tá aí, beba a sua vontade. A festa é mesmo sua...
Tinham abandonado a discussão sobre Quitéria. Pelo jeito, Quincas não admitia nem que se tocasse no assunto.
Boa pinga! – elogiou Curió.
Vagabunda! – retificou Quincas, conhecedor.
Também pelo preço...
A jia saltara para o peito de Quincas. Ele a admirava, não tardou a guardá-la no bolso do velho paletó sebento.
A lua cresceu sobre a cidade e as águas, a lua da Bahia em seu desparrame de prata entrou pela janela. Veio com ela o vento do mar, apagou as velas, já não se via o caixão. Melodia de violões andava pela ladeira, voz de mulher cantando penas de amor. Cabo Martim começou também a cantar.
Ele adora ouvir uma cantiga...
Cantavam os quatro, a voz de baixo do Negro Pastinha ia perder-se mais além da ladeira, no rumo dos saveiros. Bebiam e cantavam. Quincas não perdia nem um gole, nem um som, gostava de cantigas.
Quando já estavam fartos de tanto cantar, Curió perguntou:
Não era hoje de noite a moqueca de Mestre Manuel?
Hoje mesmo. Moqueca de arraia – acentuou Pé-de-Vento.
Ninguém faz moqueca igual a Maria Clara – afirmou o Cabo.
Quincas estalou a língua. Negro Pastinha riu:
Tá doidinho pela moqueca.
E por que a gente não vai? Mestre Manuel é até capaz de ficar ofendido. Entreolharam-se. Já estavam um pouco atrasados pois ainda tinham de ir buscar as mulheres. Curió expôs sua dúvidas:
A gente prometeu não deixar ele sozinho.
Sozinho? Por quê? Ele vai com a gente.
Tou com fome – disse Negro Pastinha.
Consultaram Quincas:
Tu quer ir?
Tou por acaso aleijado, pra ficar aqui?
Um trago para esvaziar a garrafa. Puseram Quincas de pé. Negro Pastinha comentou:
Tá tão bêbedo que não se aguenta. Com a idade tá perdendo a força pra cachaça. Vambora, paizinho.
Curió e Pé-de-Vento saíram na frente. Quincas, satisfeito da vida, num passo de dança ia entre Negro Pastinha e cabo Martim de braço dado.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D’água

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