quinta-feira, 30 de abril de 2020

Falsificação de Deus

Agora que temos uma compreensão melhor do que é religião, podemos voltar a examinar o relacionamento entre religião e ciência. Há duas interpretações extremas para esse relacionamento. De acordo com uma delas, ciência e religião são inimigos jurados e a história moderna foi moldada pela luta de vida ou morte entre o conhecimento científico e a superstição religiosa. Ao longo do tempo, a luz da ciência desfez a escuridão da religião, e o mundo tornou-se cada vez mais secular, racional e próspero. Porém, ainda que algumas descobertas científicas solapem dogmas religiosos, isso não é inevitável. Por exemplo, um dogma muçulmano afirma que o Islã foi fundado pelo profeta Maomé na Arábia do século VII , e amplas evidências científicas sustentam isso.
Mais importante, a ciência sempre precisou da ajuda da religião para criar instituições humanas viáveis. Os cientistas estudam como o mundo funciona, mas não há um método científico para determinar como os humanos devem se comportar. A ciência nos diz que os humanos não podem sobreviver sem oxigênio. No entanto, será aceitável executar criminosos por asfixia? A ciência não sabe como responder a essa pergunta. Somente as religiões nos fornecem a orientação necessária.
Cada projeto prático que cientistas empreendem também se baseia em insights religiosos. Tome-se, por exemplo, a construção da represa das Três Gargantas no rio Yangtzé. Quando o governo chinês decidiu construí-la, em 1992, físicos calcularam as pressões que a represa teria de suportar; economistas previram quanto dinheiro ela custaria; e engenheiros eletricistas predisseram quanta eletricidade ela produziria. Contudo, o governo precisava levar em conta fatores adicionais. A construção da represa causaria a inundação de territórios extensos, que abrigavam muitas aldeias e cidades, milhares de sítios arqueológicos, além de paisagens e habitats únicos. Mais de 1 milhão de pessoas seriam deslocadas e centenas de espécies correriam perigo. Parece que a represa causou diretamente a extinção do golfinho-do-rio chinês. Independentemente do que se poderia pensar sobre a represa das Três Gargantas, sua construção era uma questão ética e não puramente científica. Nenhum experimento da física, nenhum modelo econômico e nenhuma equação matemática seriam capazes de determinar se a geração de milhares de megawatts e de bilhões de yuans era mais valiosa do que salvaguardar um pagode antigo ou o golfinho-do-rio chinês. Consequentemente, a China não pode funcionar com base apenas em teorias científicas. Ela precisa de alguma religião ou de alguma ideologia.
Alguns saltam para o extremo oposto e afirmam que ciência e religião são reinos totalmente separados. A ciência estuda os fatos, a religião versa sobre valores, e esse par nunca se encontra. A religião nada tem a dizer sobre fatos científicos, e a ciência deve manter a boca fechada no que concerne a convicções religiosas. Se o papa acredita que a vida humana é sagrada, e o aborto é pecado, os biólogos não podem validar ou refutar essa alegação. Como indivíduo privado, todo biólogo é bem-vindo para discutir com o papa. Mas, como cientista, o biólogo não pode entrar nessa briga.
Essa abordagem pode parecer sensata, porém ela interpreta equivocadamente o conceito de religião. Embora a ciência lide somente com fatos, a religião não se restringe a conceitos éticos. A religião não é capaz de fornecer nenhuma orientação prática, a menos que disponha de alegações factuais também, e nisso ela pode muito bem ir de encontro à ciência. As partes mais importantes de muitos dogmas religiosos não são seus princípios éticos, e sim declarações factuais do tipo “Deus existe”, “A alma é castigada por seus pecados no pós-vida”, “A Bíblia foi escrita por uma divindade e não por humanos”, “O papa é infalível”. Essas alegações são factuais. Muitos dos debates religiosos mais candentes, e muitos dos conflitos entre ciência e religião, envolvem tais alegações e não conceitos éticos.
Tome-se o aborto, por exemplo. Cristãos devotos opõem-se ao aborto, enquanto muitos liberais o apoiam. O cerne da questão é mais factual do que ético. Tanto cristãos como liberais acreditam que a vida humana é sagrada e que assassinato é crime hediondo. Mas discordam quanto a certos fatos biológicos: a vida humana começa no momento da concepção, no momento do nascimento ou em algum ponto intermediário? Na verdade, algumas culturas humanas sustentam que a vida não se inicia nem mesmo no nascimento. Segundo os Kung do deserto de Kalahari e vários grupos inuítes no Ártico, a vida humana só começa depois que o bebê recebe um nome. Quando nasce uma criança, os familiares esperam algum tempo antes de lhe darem um nome. Se decidem não ficar com o bebê (porque sofre de alguma deformidade ou por motivos econômicos), eles o matam. Contanto que o façam antes da cerimônia em que lhe é dado um nome, esse ato não é considerado assassinato. Pessoas de tais culturas podem muito bem concordar com liberais e cristãos em que a vida humana é sagrada e o assassinato é um crime terrível — e ainda assim sancionar o infanticídio.
Quando uma religião faz publicidade de si mesma, ela tende a enfatizar os valores belos. Mas não raro Deus se esconde nas letras miúdas de declarações factuais. A religião católica se apresenta em seu marketing como a religião do amor e da compaixão universais. Que maravilha! Quem poderia se opor a isso? Por que, então, nem todos os humanos são católicos? Porque, quando se leem as letras miúdas, descobre-se que o catolicismo exige também obediência cega ao papa “que nunca comete erros”, mesmo quando ordena a seus seguidores que saiam em cruzadas e queimem hereges na estaca. Essas instruções práticas não resultam somente de conceitos éticos, e sim da combinação de conceitos éticos com declarações factuais.
Quando saímos da esfera etérea da filosofia e observamos as realidades históricas, descobrimos que os relatos religiosos quase sempre incluem três partes:

1. Conceitos éticos, tais como “A vida humana é sagrada”.
2. Declarações factuais, como “A vida humana começa no momento da concepção”.
3. Uma combinação de conceitos éticos com declarações factuais, que resulta em orientações práticas, tais como “O aborto jamais deve ser permitido, mesmo um único dia após a concepção”.

A ciência não tem autoridade nem capacidade para refutar ou corroborar os conceitos éticos elaborados pelas religiões. Entretanto, os cientistas têm muito a dizer sobre declarações factuais religiosas. Por exemplo, os biólogos são mais qualificados que os sacerdotes para responder a questões factuais do tipo “Os fetos humanos têm sistema nervoso uma semana após a concepção? Eles podem sentir dor?”.
Para esclarecer melhor essa ideia, examinemos em profundidade um exemplo histórico real sobre o qual raramente se ouve em comerciais religiosos, mas que teve imenso impacto social e político em sua época. Na Europa medieval, os papas desfrutavam de uma autoridade política de longo alcance. Quando um conflito irrompia em algum lugar da Europa, eles invocavam autoridade para decidir a questão. A fim de estabelecer sua reivindicação de autoridade, eles repetidamente lembravam aos europeus a Doação de Constantino. De acordo com esse relato, em 30 de março de 315 o imperador romano Constantino assinou um decreto oficial assegurando ao papa Silvestre I e a seus herdeiros o controle perpétuo da parte ocidental do Império Romano. Os papas guardaram esse documento precioso em seu arquivo e o usavam como poderoso instrumento de propaganda sempre que enfrentavam a oposição de príncipes ambiciosos, cidades contenciosas ou camponeses rebeldes.
Na Europa medieval, as pessoas tinham grande respeito por decretos imperiais antigos e acreditavam que, quanto mais antigo o documento, mais autoridade ele encerrava. Também acreditavam ferrenhamente que reis e imperadores eram representantes de Deus. Constantino era especialmente reverenciado porque transformou o Império Romano de reino pagão em império cristão. Num conflito entre as vontades de algum conselho municipal atual e um decreto emitido pelo próprio grande Constantino, para os europeus medievais obviamente era ao documento antigo que teriam de obedecer. Por isso, sempre que o papa enfrentava oposição política, ele acenava com a Doação de Constantino, exigindo obediência. Não que funcionasse o tempo todo. Mas a Doação de Constantino era uma pedra fundamental da propaganda papal e da ordem política medieval.
Quando se examina atentamente a Doação de Constantino, descobrimos que seu relato se divide em três partes distintas:

1. Juízo ético: As pessoas devem respeitar os decretos imperiais antigos mais do que opiniões populares atuais.
2. Declaração factual: Em 30 de março de 315, o imperador Constantino assegurou aos papas o domínio sobre a Europa.
3. Orientação prática: Em 315, os europeus devem obedecer às ordens do papa.

A autoridade ética dos decretos imperiais antigos está longe de ser óbvia. A maioria dos europeus do século XXI pensa que a vontade dos cidadãos atuais prevalece sobre os ditames de monarcas mortos há muito tempo. Contudo, a ciência não pode juntar-se a esse debate ético porque nenhum experimento nem equação podem resolver a questão. Se uma cientista do presente retrocedesse setecentos anos no tempo até a Europa medieval, ela não seria capaz de demonstrar aos europeus medievais que os decretos de imperadores antigos são irrelevantes nas disputas políticas contemporâneas.
Mas a história da Doação de Constantino baseia-se não apenas em conceitos éticos. Envolve também algumas declarações factuais muito concretas, as quais a ciência é altamente qualificada tanto para confirmar quanto para refutar. Em 1441, Lorenzo Valla — um sacerdote católico e pioneiro da linguística — publicou um estudo científico demonstrando que a Doação de Constantino era uma falsificação. Valla analisou o estilo gramatical do documento, assim como as várias palavras e termos que continha. Ele demonstrou que o documento incluía palavras que eram desconhecidas no latim do século IV e que muito provavelmente fora forjado cerca de quatrocentos anos após a morte de Constantino. Além disso, a data que consta no documento é “30 de março, no ano em que Constantino era cônsul pela quarta vez, e Galicano foi cônsul pela primeira vez”. No Império Romano, eram eleitos dois cônsules a cada ano, e era costume datar os documentos com os respectivos anos de consulado. Infelizmente o quarto consulado de Constantino foi em 315, enquanto Galicano fora eleito cônsul pela primeira vez apenas em 317. Se esse documento tão importante realmente tivesse sido escrito no tempo de Constantino, nunca iria conter um erro tão evidente. É como se Thomas Jefferson e seus colegas tivessem datado a Declaração de Independência Americana em “34 de julho de 1776”.
Hoje todos os historiadores aceitam que a Doação de Constantino foi forjada na corte papal em algum momento do século VIII. Mesmo que Valla nunca tenha contestado a autoridade moral de antigos decretos imperiais, sua análise científica comprometeu a orientação prática de que os europeus teriam de obedecer ao papa.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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