Natureza morta (copos e caixas) - 1951, de Giorgio Morandi
Fui
visitar o Giorgio Morandi, porque sempre gostei muito dele e porque
ele se mudou para o nosso bairro e achei que devia lhe dar as
boas-vindas, como um bom vizinho. O pintor italiano Giorgio Morandi
está morto desde 1964, claro, e o que chegou ao Museu de Arte
Moderna de Paris foi uma exposição das suas pinturas e desenhos,
mas tudo transcorreu como num encontro com um velho amigo: nenhuma
surpresa — Morandi pintou essencialmente a mesma coisa a vida
inteira, fui vê-lo porque sabia exatamente o que ia encontrar — e
muito prazer. Só não posso dizer que botamos os nossos assuntos em
dia porque não teríamos sobre o que conversar. Depois do 11 de
setembro, nenhum vivo tem assunto com qualquer morto antigo, fora as
banalidades de sempre. A destruição do World Trade Center acabou
com toda a possibilidade de diálogo entre as gerações. Nossas
referências não batem, quem viu as torres se esfarelarem e quem não
viu vivem em universos diferentes, sem comunicação possível. Quem
já estava morto na ocasião, então, nem conseguiria conceber de que
catzo falamos. Mas entre todos os mortos que não nos
entenderiam, Morandi talvez não nos entendesse de uma maneira
especial.
O
que ele pintou quase que exclusivamente a vida inteira foram
naturezas-mortas, conjuntos de garrafas, caixas, vasos, vasilhames
que ao mesmo tempo se integravam ao fundo e entre si abstratamente e
mantinham sua distinção concreta e sólida de coisas. Não foi só
porque durante alguns anos aquelas torres em chamas não nos sairão
da cabeça que pensei imediatamente nelas vendo as formas verticais
de Morandi, as caixas e garrafas longilíneas firmemente postas numa
superfície real, com volume, presença e peso, e magicamente postas
em outra dimensão, a salvo do tempo, da história, até da
interpretação. Tem-se a impressão que os próprios objetos que
Morandi reproduzia nos seus conjuntos repetidos eram sempre os
mesmos, que ele estava na verdade pintando a sua permanência
enquanto a vida e o pintor passavam por eles. Não são as garrafas e
as caixas, é a sua existência silenciosa que está nos quadros de
Morandi, as coisas que ele retratou são apenas o signo do que nelas
é irretratável. Quem acompanhava a sua obra ano a ano devia se
divertir com a reincidência dos objetos — aquela cumbuca de novo!
— que ele pintava obsessivamente, e era como se cada pintura fosse
apenas um novo registro daquele mistério, uma coisa existindo,
persistindo em ex istir. Morandi é o último morto com quem você
poderia falar de caixas de ferro eva nescentes, de formas que se
declaram triunfalmente eternas desaparecendo, e o seu significado
mudando, em minutos.
“Natureza-morta”
em inglês é still life, vida parada, vida em silêncio. O
inglês descreve melhor do que o italiano ou o francês o que Morandi
fazia. Não aparecem figuras humanas na sua obra. A vida que há nos
seus quadros é toda inferida: a mudança na perspectiva de um
conjunto, uma ou outra marca de uso na superfície de um dos seus
objetos domésticos, um sombreado denunciando a existência de uma
fonte de luz em algum lugar real fora do quadro. Nenhum movimento, e
tudo se repetindo. O humano só existe na obra de Morandi como
contraponto ao que se vê, às coisas reduzidas a elas mesmas e
também significando a sua irredutibilidade. Ou: o humano é tudo na
obra de Morandi que não se vê. O próprio pintor interfere o menos
possível com seu próprio trabalho e deixa que a obsessão o guie.
Ou: a única coisa humana na obra de Morandi é a obsessão.
Ele
levou uma vida parada. Raramente se afastou de Bolonha, sua cidade
natal. Nunca se casou e morava com três irmãs, também solteiras,
na casa em que se criaram. Tudo se repetindo. Era um homem comprido e
elegante — uma torre incongruente — de hábitos conservadores.
Depois de se envolver, na juventude, com o movimento artístico
fascista, imagino que mais por ingenuidade do que por convicção,
nunca mais se manifestou sobre política ou mesmo, que eu saiba,
sobre arte. Não sei se entendia a sua própria obsessão. Gostei de
pensar, ao visitá-lo no museu, que estava visitando talvez o último
homem tranqüilo do nosso tempo. Na vida parada captada nos seus
quadros estava o desprezo das coisas pelo drama humano, mas confesso
que eu estava ali justamente para me convencer da transitoriedade da
angústia, o sentimento mais humano do momento, e esquecer o drama.
Se pudesse passaria o dia com ele, tentando armazenar tranquilidade
para enfrentar o que vem aí. Mas manda a boa educação que as
visitas de cortesia sejam curtas e, mesmo, o museu fechava às cinco
e meia. De qualquer maneira, é bom pensar que as caixas do Morandi
continuavam lá depois do museu fechado, independente mente do nosso
olhar e da nossa passagem, sólidas, indestrutíveis, significando
apenas sua própria permanência — e silêncio.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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