terça-feira, 28 de abril de 2020

As torres do Morandi

  Natureza morta (copos e caixas) - 1951, de Giorgio Morandi

Fui visitar o Giorgio Morandi, porque sempre gostei muito dele e porque ele se mudou para o nosso bairro e achei que devia lhe dar as boas-vindas, como um bom vizinho. O pintor italiano Giorgio Morandi está morto desde 1964, claro, e o que chegou ao Museu de Arte Moderna de Paris foi uma exposição das suas pinturas e desenhos, mas tudo transcorreu como num encontro com um velho amigo: nenhuma surpresa — Morandi pintou essencialmente a mesma coisa a vida inteira, fui vê-lo porque sabia exatamente o que ia encontrar — e muito prazer. Só não posso dizer que botamos os nossos assuntos em dia porque não teríamos sobre o que conversar. Depois do 11 de setembro, nenhum vivo tem assunto com qualquer morto antigo, fora as banalidades de sempre. A destruição do World Trade Center acabou com toda a possibilidade de diálogo entre as gerações. Nossas referências não batem, quem viu as torres se esfarelarem e quem não viu vivem em universos diferentes, sem comunicação possível. Quem já estava morto na ocasião, então, nem conseguiria conceber de que catzo falamos. Mas entre todos os mortos que não nos entenderiam, Morandi talvez não nos entendesse de uma maneira especial.
O que ele pintou quase que exclusivamente a vida inteira foram naturezas-mortas, conjuntos de garrafas, caixas, vasos, vasilhames que ao mesmo tempo se integravam ao fundo e entre si abstratamente e mantinham sua distinção concreta e sólida de coisas. Não foi só porque durante alguns anos aquelas torres em chamas não nos sairão da cabeça que pensei imediatamente nelas vendo as formas verticais de Morandi, as caixas e garrafas longilíneas firmemente postas numa superfície real, com volume, presença e peso, e magicamente postas em outra dimensão, a salvo do tempo, da história, até da interpretação. Tem-se a impressão que os próprios objetos que Morandi reproduzia nos seus conjuntos repetidos eram sempre os mesmos, que ele estava na verdade pintando a sua permanência enquanto a vida e o pintor passavam por eles. Não são as garrafas e as caixas, é a sua existência silenciosa que está nos quadros de Morandi, as coisas que ele retratou são apenas o signo do que nelas é irretratável. Quem acompanhava a sua obra ano a ano devia se divertir com a reincidência dos objetos — aquela cumbuca de novo! — que ele pintava obsessivamente, e era como se cada pintura fosse apenas um novo registro daquele mistério, uma coisa existindo, persistindo em ex istir. Morandi é o último morto com quem você poderia falar de caixas de ferro eva nescentes, de formas que se declaram triunfalmente eternas desaparecendo, e o seu significado mudando, em minutos.
Natureza-morta” em inglês é still life, vida parada, vida em silêncio. O inglês descreve melhor do que o italiano ou o francês o que Morandi fazia. Não aparecem figuras humanas na sua obra. A vida que há nos seus quadros é toda inferida: a mudança na perspectiva de um conjunto, uma ou outra marca de uso na superfície de um dos seus objetos domésticos, um sombreado denunciando a existência de uma fonte de luz em algum lugar real fora do quadro. Nenhum movimento, e tudo se repetindo. O humano só existe na obra de Morandi como contraponto ao que se vê, às coisas reduzidas a elas mesmas e também significando a sua irredutibilidade. Ou: o humano é tudo na obra de Morandi que não se vê. O próprio pintor interfere o menos possível com seu próprio trabalho e deixa que a obsessão o guie. Ou: a única coisa humana na obra de Morandi é a obsessão.
Ele levou uma vida parada. Raramente se afastou de Bolonha, sua cidade natal. Nunca se casou e morava com três irmãs, também solteiras, na casa em que se criaram. Tudo se repetindo. Era um homem comprido e elegante — uma torre incongruente — de hábitos conservadores. Depois de se envolver, na juventude, com o movimento artístico fascista, imagino que mais por ingenuidade do que por convicção, nunca mais se manifestou sobre política ou mesmo, que eu saiba, sobre arte. Não sei se entendia a sua própria obsessão. Gostei de pensar, ao visitá-lo no museu, que estava visitando talvez o último homem tranqüilo do nosso tempo. Na vida parada captada nos seus quadros estava o desprezo das coisas pelo drama humano, mas confesso que eu estava ali justamente para me convencer da transitoriedade da angústia, o sentimento mais humano do momento, e esquecer o drama. Se pudesse passaria o dia com ele, tentando armazenar tranquilidade para enfrentar o que vem aí. Mas manda a boa educação que as visitas de cortesia sejam curtas e, mesmo, o museu fechava às cinco e meia. De qualquer maneira, é bom pensar que as caixas do Morandi continuavam lá depois do museu fechado, independente mente do nosso olhar e da nossa passagem, sólidas, indestrutíveis, significando apenas sua própria permanência — e silêncio.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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