quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Vanguart - Todas as Cores

O animal que se tornou um deus

Há 70 mil anos, o Homo sapiens ainda era um animal insignificante cuidando da sua própria vida em algum canto da África. Nos milênios seguintes, ele se transformou no senhor de todo o planeta e no terror do ecossistema. Hoje, está prestes a se tornar um deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição.
Infelizmente, até agora o regime dos sapiens sobre a Terra produziu poucas coisas das quais podemos nos orgulhar. Nós dominamos o meio à nossa volta, aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades, fundamos impérios e criamos grandes redes de comércio. Mas diminuímos a quantidade de sofrimento no mundo? Repetidas vezes, os aumentos gigantescos na capacidade humana não necessariamente melhoraram o bem-estar dos sapiens como indivíduos e geralmente causaram enorme sofrimento a outros animais.
Nas últimas décadas, pelo menos fizemos algum progresso real no que concerne à condição humana, com a redução da fome, das pragas e das guerras. Mas a situação de outros animais está se deteriorando mais rapidamente do que nunca, e a melhoria no destino da humanidade ainda é muito frágil e recente para que possamos ter certeza dela.
Além disso, apesar das coisas impressionantes de que os humanos são capazes de fazer, nós continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre. Avançamos de canoas e galés a navios a vapor e naves espaciais – mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder. O que é ainda pior, os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses por mérito próprio, contando apenas com as leis da física para nos fazer companhia, não prestamos contas a ninguém. Em consequência, estamos destruindo os outros animais e o ecossistema à nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto e divertimento, mas jamais encontrando satisfação.
Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

Soneto 34

Por que me prometeste um dia tão belo
E me fizeste viajar sem meu manto,
Deixando que nuvens baixas cobrissem meu caminho,
Ocultando tua bravura em seu lacerado fumo?
Não basta que irrompas as nuvens
Para enxugar a chuva em meu rosto abatido,
Pois nenhum homem poderá dizer uma oração
Que cicatrize a ferida sem curar a desgraça.
Nem poderá tua vergonha revelar minha dor;
Embora te arrependas, ainda assim perderei;
A tristeza do ofensor pouco alivia
Aquele que carrega a pesada cruz da ofensa.
Ah, mas as lágrimas são pérolas que o teu amor verte;
Elas são valiosas, e resgatam todos os males.
William Shakespeare

O homem do boné cinzento

Eu, Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e florescente no meu palácio.
(Daniel, IV, 1)
 
O culpado foi o homem do boné cinzento.
Antes da sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade. Tinha um largo passeio, onde brincavam crianças. Travessas crianças. Enchiam de doce alarido as enevoadas noites de inverno, cantando de mãos dadas ou correndo de uma árvore a outra.
A nossa intranquilidade começou na madrugada em que fomos despertados por desusado movimento de caminhões, a despejarem pesados caixotes no prédio do antigo hotel. Disseram-nos, posteriormente, tratar-se da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir ali. Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia suposições menos inverossímeis. Possivelmente a casa havia sido alugada para depósito de algum estabelecimento comercial.
Meu irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade, contestava enérgico as minhas conclusões. Nervoso, afirmava que as casas começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco e o cinzento. (Pontos brancos, pontos cinzentos, quadradinhos perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos, saltitantes.)
Daquela vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro, pois antes de decorrida uma semana chegava o novo vizinho. Cobria-lhe a cabeça um boné xadrez (cinzento e branco) e entre os dentes escuros trazia um cachimbo curvo. Os olhos fundos, a roupa sobrando no corpo esquelético e pequeno, puxava pela mão um ridículo cão perdigueiro. Ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela figura grotesca, Artur ficou completamente transtornado:
Esse homem trouxe os quadradinhos, mas não tardará a desaparecer.

Não foram poucos os que se impressionaram com o procedimento do solteirão. Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores da rua. Nunca era visto saindo de casa e, diariamente, às cinco horas da tarde, com absoluta pontualidade, aparecia no alpendre, acompanhado pelo cachorro. Sem se separar do boné que, possivelmente, escondia uma calvície adiantada, tirava baforadas do cachimbo e se recolhia novamente. O tempo restante conservava-se invisível.
Artur passava o dia espreitando-o, animado por uma tola esperança de vê-lo surgir antes da hora predeterminada. Não esmorecia, vendo burlados os seus propósitos. A sua excitação crescia à medida que se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do prédio vizinho. Quando os seus olhos o divisavam, abandonava-se a uma alegria despropositada:
Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!
Eu me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse tanto com a vida dos outros.
Fazia-se de desentendido e, no dia seguinte, encontrava-o novamente no seu posto, a repetir-me que o homenzinho continuava definhando.
Impossível — eu retrucava —, o diabo do magrela não tem mais como emagrecer!
Pois está emagrecendo.

Ainda encontrava-me na cama, quando Artur entrou no meu quarto sacudindo os braços, gritando:
Chama-se Anatólio!
Respondi irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor!
Repentinamente emudeceu. Da janela, surpreso e quieto, fez um gesto para que eu me aproximasse. Em frente ao antigo hotel acabara de parar um automóvel e dele desceu uma bonita moça. Ela mesma retirou a bagagem do carro. Com uma chave, que trazia na bolsa, abriu a porta da casa, sem que ninguém aparecesse para recebê-la.
Impelido pela curiosidade, meu irmão não me dava folga:
Por que ela não apareceu antes? Ele não é solteiro?
Ora, que importância tem uma jovem residir com um celibatário?

Por mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obsessão, Artur arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se ocultava, não dava sinal da sua permanência na casa. Ele, porém, se recusava a aceitar a hipótese de que ela tivesse ido embora e se negava a discutir o problema comigo:
Curioso, o homem se definha e é a mulher que desaparece!
Três meses mais tarde, de novo abriu-se a porta do casarão para dar passagem à moça. Sozinha, como viera, carregou as malas consigo.
Por que segue a pé? Será que o miserável lhe negou dinheiro para o táxi?
Com a partida da jovem, Artur retornou ao primitivo interesse pelo magro Anatólio. E, rangendo os dentes, repetia:
Continua emagrecendo.
Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nosso enigmático vizinho.
Surgia à hora marcada. O olhar vago, o boné enterrado na cabeça, às vezes mostrava um sorriso escarninho.

* * *
Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe:
Ele está ficando transparente.
Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados.
Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam rapidamente, enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo:
Olha! De tão magro, só tem perfil. Amanhã desaparecerá.

Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu recuava atemorizado.
Por instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar. Menos que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado, deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e incendiou-se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se apagava no chão.
Não falei! — gritava Artur, exultante.
A sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde ele se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível, murmurava:
Não falei, não falei.
Peguei-o com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completamente. Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bolinha negra, a rolar na minha mão.
Murilo Rubião, in Obra completa

O sentimento do mistério

O que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério. É este o sentimento fundamental que se detém junto ao berço da verdadeira arte e da ciência. Quem nunca o experimentou nem sabe já admirar-se ou espantar-se. Pode considerar-se como morto, sem luz, totalmente cego! A vivência do mistério — embora com laivos de temor — criou também a religião. A consciência da existência de tudo quanto para nós é impenetrável, de tudo quanto é manifestação da mais profunda razão e da mais deslumbrante beleza e, que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais primitivas, essa consciência, esse sentimento, constituem a verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e em mais nenhum, pertenço à classe dos homens profundamente religiosos. Não posso conceber um Deus que recompense e castigue os objetos da sua criação, ou que tenha vontade própria, de puro arbítrio no gênero da que nós sentimos dentro de nós. Nem tão-pouco consigo imaginar um indivíduo que sobreviva à sua morte corporal; as almas fracas que alimentem tais pensamentos fazem-no por medo ou por egoísmo ridículo. A mim basta-me o mistério da eternidade da vida, a consciência e o pressentimento da admirável elaboração do ser, assim como o humilde esforço para compreender uma partícula, por mais pequena que seja, da razão que se manifesta na natureza.
Albert Einstein, in Como vejo o mundo

Calvin e Haroldo


terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Uma sociedade emudecida

Se a literatura nesta terra ainda serve para alguma coisa, isto é, se for mais do que alguns estarem ainda a escrever para alguns estarem ainda a ler, torna-se urgente recuperá-la já que a nossa sociedade corre o risco, devido aos audiovisuais, de emudecer, ou seja, de haver cada vez mais uma minoria com grande capacidade para falar e uma maioria crescente limitada a ouvir, não entendendo sequer muito bem o que escuta.
José Saramago, in As palavras de Saramago

Derrotaram o Sucuri

— Está sabendo, dom Pedro, que derrotaram o Sucuri?
— Sei que teve algum tiroteio ontem à noite, porque deu para ficar ouvindo o tumulto; mas daí em diante não sei mais nada. Quem foi que contou isso, Gerardo?
— Chegaram uns feridos a Comala. Minha mulher ajudou nessa coisa dos curativos. Disseram que eram do pessoal de Damasio e que tinham tido muitos mortos. Parece que se encontraram com uns sujeitos que se dizem de Pancho Villa.
— Que caralho, Gerardo! Estou vendo tempos ruins chegando. E o que você está pensando em fazer?
— Eu vou-me embora, dom Pedro. Para Sayula. E lá, vou me estabelecer de novo.
— Vocês advogados têm essa vantagem; podem levar seu patrimônio a tudo que é lugar, pelo menos enquanto alguém não arrebentar suas fuças.
— Nem pense nisso, dom Pedro; tem os nossos problemas. Além do mais dói deixar pessoas como o senhor, e as deferências que o senhor teve comigo a gente sempre sente falta. Nosso mundo muda o tempo todo, se é válido dizer assim. Onde o senhor quer que eu deixe os seus papéis?
— Não deixe os papéis. Leve tudo. Ou será que você não vai poder continuar cuidando de meus assuntos lá onde vai estar?
— Agradeço a sua confiança, dom Pedro. Agradeço sinceramente. Embora deva fazer a aclaração de que para mim vai ser impossível. Certas irregularidades... Digamos... Depoimentos que ninguém além do senhor deve conhecer. Podem prestar-se a manipulações ruins no caso de cair em outras mãos. O mais seguro é que fiquem aqui com o senhor.
— Você disse bem, Gerardo. Deixa tudo aqui. Vou queimar os papéis. Com papéis ou sem eles, quem pode discutir comigo a propriedade do que tenho?
— Sem sombra de dúvida, ninguém, dom Pedro. Ninguém. Com licença.
— Vá com Deus, Gerardo.
— O que foi que o senhor disse?
— Eu disse que Deus o acompanhe.
O doutor Gerardo Trujillo saiu devagar. Já estava velho; mas não para dar passos tão curtos, tão desanimados. A verdade é que ele esperava uma recompensa. Havia servido a dom Lucas, que em paz descanse, o pai de dom Pedro; depois, e ainda, a dom Pedro; e depois a Miguel, o filho de dom Pedro. A verdade é que ele esperava uma compensação. Uma retribuição grande e valiosa. Dissera à mulher:
— Vou me despedir de dom Pedro. Sei que ele vai me gratificar. Estou quase dizendo que com o dinheiro que ele vai me dar nos estabeleceremos bem em Sayula e vamos viver com folga o resto dos nossos dias.
Mas por que as mulheres sempre têm alguma dúvida? Recebem avisos do céu, ou o quê? Ela não pareceu estar segura nem mesmo de que ele receberia alguma coisa:
— Lá, você vai ter de trabalhar duro e muito para levantar a cabeça. Daqui você não arranca nada.
— Por que está dizendo isso?
— Eu sei.
Continuou andando até a porta, atento a qualquer chamado: “Ei, Gerardo! Estou tão preocupado que não me permiti pensar em você. Mas eu lhe devo favores que o dinheiro não paga. Receba isto: um presente insignificante.”
Mas o chamado não veio. Cruzou a porta e desamarrou o cabresto com que seu cavalo estava amarrado à forquilha. Subiu na sela e, em marcha curta, tratando de não se afastar muito para ouvir se o chamasse, caminhou até Comala sem se desviar do caminho. Quando viu que a Media Luna se perdia atrás, pensou: “Seria me rebaixar demais pedir a ele um empréstimo.”
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

Perguntas

Antes eu não entendia por que não recebia nenhuma resposta à minha pergunta, hoje não entendo como podia acreditar que era capaz de perguntar. Mas realmente não acreditava, só perguntava.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos

Um solitário à espreita

Às duas da manhã do primeiro dia do ano escutei num bar a conversa de um casal. Não fui indiscreto: o par falava alto, era um papo para ser ouvido. E olha que chovia uma chuva de canivete, com relâmpagos e trovoadas. Pesquei a conversa no meio.
Não consulto oráculo nem sou cartomante”, ela riu. “Aliás, quem pode ser adivinha…”
Adivinha o quê?”, ele perguntou.
Não te pedi para adivinhar nada. Eu disse que não era uma adivinha.”
Ah!”
Só espero que os prefeitos eleitos enterrem a praga nacional”, ela disse.
Qual praga?”
O superfaturamento.”
Das obras?”
De tudo, até da merenda escolar. São capazes de superfaturar até a sopa para mendigos e desabrigados.”
Mas alguns políticos fazem isso”, ele disse.
A sopa? Superfaturamento da sopa? Como?”
O macarrão e a carne da sopa podem ser superfaturados. O óleo do tempero e até o tempero…”
Que coisa horrorosa”, ela disse.
O problema não é a corrupção, que existe em todos os continentes. Nosso problema é a…”
Relâmpagos com trovoadas.
Não ouvi o que você disse”, ela disse.
Uma trovoada mais forte interrompeu a conversa. Os dois ficaram em silêncio, e eu, que já estava calado, fiquei curioso para ouvir mais. Nós três esperamos o fim dos trovões. Um homem tropeçou, derrubou uma cadeira e deu uma risada.
Nosso problema é a impunidade”, ele prosseguiu.
O judiciário… Uma parte do judiciário é cúmplice de tudo isso. Os procuradores, a Polícia Federal e alguns juízes são confiáveis, mas eles não podem tudo.”
E nós?”, ela perguntou.
Nós? Nós pagamos impostos. Somos cordeiros resignados no meio de milhões de cordeiros sacrificados.”
Mas você acha que é possível diminuir a bandalheira? Por exemplo, uma redução de trinta por cento… Seriam bilhões de reais investidos em habitação popular, hospitais.”
Trinta por cento? Se a corrupção diminuir tanto, o Brasil cresce oito por cento ao ano. Mas não sou otimista: trinta por cento é a comissão das negociatas. Já foi dez, passou para vinte, agora dizem que é trinta. Quando chegar a cinquenta, será uma catástrofe…”
Por isso meu avô apoiava os militares.”
Teu avô acreditava que o governo militar era duro, mas honesto. E olha no que deu.”
Acho que aquele sujeito bebeu muito”, ela disse.
Vai mexer conosco. Vamos mudar de mesa? Aquela ali no canto, perto do balcão…”
Além disso, teu avô idolatrava a censura. Ele dizia: ‘Mais vale um soneto de Camões ou uma receita de bacalhau do que notícias subversivas’.”
Coitado do vovô!”
Coitado do país, isso sim.”
Ele gostava de você”, ela disse.
Nem tanto”, ele protestou. “Uma vez me ameaçou porque eu usava barba. Me chamou de terrorista. Você não lembra?”
Claro que lembro. E você disse na cara dele: ‘O senhor apoia a tortura’.”
O velho era um tremendo reaça…”
Não vamos brigar por causa dele. Era um homem bom, cheio de princípios.”
Casei com uma ingênua”, ele disse.
E eu com um comunista”, ela riu.
Agora não há mais avô nem comunismo”, ele disse.
Há burocracia, roubo e ganância. Impostos e juros altos para sustentar políticos e burocratas. Mais uma cerveja? Você quer mesmo ir para aquela mesa?”
A chuva está passando. Quero ir pra casa. O bar está vazio, só ficou esse bêbado”, ela disse.
E aquele cara ali, que está ouvindo a nossa conversa.”
Um solitário”, ela disse.
Um solitário… Mas por que você está olhando para ele?”
Não posso olhar para um homem sozinho nas primeiras horas do Ano-Novo? Você está com ciúme?”
Não. Não sei. Mas se você olhar muito…”
Queria saber o que ele pensa sobre a corrupção.”
Os dois me olharam e eu olhei os pés do bêbado. Na verdade, era um mendigo que se protegia da chuva. Batia palmas e pedia uns trocados.
Quem esse bêbado está aplaudindo?”, ela perguntou.
Nós”, ele disse. “Nossa conversa sobre corrupção e impunidade. O impasse do Brasil.”
Ela se levantou: queria ir embora.
Porque a gente fala, protesta e fica indignado, mas só os bêbados escutam”, ele prosseguiu, deixando uma cédula na mesa.
Aquele cara escutou nossa conversa”, disse a mulher
Mas o que ele pode fazer? Nada. Vai ver que é mais um bêbado solitário.”
Será?”, ela perguntou, olhando para mim e depois para as mãos do mendigo.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Um Café Lá em Casa com Marco Pereira e Nelson Faria

Lápide 1 - epitáfio para o corpo

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.
Paulo Leminski

Sua Alteza, o gato


Quem mata um gato tem sete anos de atraso. Solteiro que pisar rabo de gato não casa dos primeiros doze meses. Gato transmite asma. Engasgado, anuncia fome. Gato preto é agouro ou felicidade. Sendo de casa, para ele convergem os malefícios e deixa a família em paz. Sendo estranho, está trazendo as desgraças alheias.
Assim pensam na Europa. Carlos I de Inglaterra tinha um gato preto como amuleto. Morreu o gato e o Rei exclamou: “My luck is gone!”. E era verdade. “lt had. Next day he was arrested”, informa Mr. Radford. O Barão do Rio Branco não os podia ver.
Não há animal que tenha maior número de suspeitas que o gato, companheiro amável ou hóspede intruso e detestado, também merecedor dos maiores elogios em prosa e verso de que existe notícia na espécie.
Pintado pelos mestres, esculpido pelos grandes, imóvel em porcelana, marfim, ouro, prata, tornado amuleto, passeando nas pulseiras, colares, brincos, broches femininos, é modelo de uma Histoire des chats (Paris, 1727), de Paradis de Moncrif, da Academia Francesa. A senhora Christabel Aberconway publicou (Londres, 1949) A dictionary of a cat lovers, com mais de duzentas biografias de amigos do felino, célebres em letras, artes, política, armas, economia. Cita apenas os mortos. Entre os vivos estavam Colette, La Gata, e o poeta T. S. Eliot, autor do Old possun book of practical cat. Félix Pacheco, Boudelaire e os gatos (Rio de Janeiro, 1934), compendiara muita notícia literária sobre o assunto. Tivemos mesmo uma famosa polêmica entre o brasileiro Tobias Monteiro, pelo gato, e o português Visconde de Santo Thirso, pelo cão.
Sou pelo cachorro. Teluricamente.
O povo não é realmente muito amigo do gato e sim de sua utilidade venatória, dedicada aos ratos. Senhorial, egoísta, esquivo, traiçoeiro, o gato é desdenhoso, fiel à casa e não ao proprietário. Ao conforto dos hábitos e nunca à pessoa que os proporciona. Mas é elegante, nervoso, magnético, incomparável nos gestos lentos, no espreguiçamento de odalisca entediada, nas graças sucessivas das atitudes originais e aristocráticas. Parece sempre superior ao dono da casa.
O brasileiro recebeu o gato do colonizador português e com ele as superstições. O português ama e teme o gato, numa ambivalência que o faz tratá-lo como a uma criança mimada ou divertir-se pondo-o dentro de um pote para partir às cacetadas ou pendurá-lo, vivo e miante, num alto do poste, numa vasilha, sobre a crepitante fogueira nas tardes festivas do fim das colheitas. Nós temos o gato no pote, inseparável nas alegrias festeiras, fiéis ao tempo velho.
Do Oriente, teve o português o respeito vagamente tenebroso ao gato. Viera com os orientais que se fixaram na Península Ibérica tantos séculos. Sua domesticação foi na África, entre os núbios. A presença no Egito não parece imediata, pois as primeiras dinastias não o tiveram. Mariette não encontrou desenhos de gatos nos túmulos de Sakara, 4500 anos antes de Cristo. Figuravam bois, asnos, cães, macacos, antílopes, gazelas, gansos, patos, cegonhas domésticas, pombas, galinhas da Numídia, as nossas guinés mas não camelos, girafas, elefantes, carneiros, galinhas e gatos. Espalhou-se em tipos inumeráveis pelo Oriente e fez da China um centro de irradiação.
Gregos e romanos não conheceram o gato e sua introdução mais viva na Europa é na Era Cristã. Essa é a lição dos mestres etnógrafos que não leram Aristófanes, na Festas de Ceres, 412 anos antes de Cristo, onde o gato era popular e já ladrão do jantar alheio, nas residências de Atenas.
Dizem-no raro na Inglaterra do século X e sua popularidade na França é de meados do século XVI. A dispersão europeia ter-se-ia verificado nos finais da Idade Média e multiplicado quando do ciclo das navegações, especialmente italianas. O português tê-lo-ia pelo árabe durante o domínio e também como carregamento de bicho raro em datas finais do século XV. Não há vestígio pré-histórico europeu. Ausente das palafitas.
Na Inglaterra deu, no século XVII, origem a lenda popular e querida do Whittington’s cat. O herói tivera apenas um gato por herança e levara-o para terras infestadas pelos ratos e que desconheciam o gato. Fez fortuna. Voltou rico e foi Lorde Mayor de Londres. A lenda foi dispersa por quase toda a Europa, inclusive Escandinávia e Rússia. Popularíssimo se tornou o gato na França com o Maistre chat ou Chat botté, publicado por Charles Perrault em 1697 e que nascera de um conto do Pentamerone, de Giambattista Basile, Nápoles, 1634, mas anteriormente aproveitado o tema por Straparola, 1560, Piacevoli notti. O conto é popular em Portugal, de onde o tivemos, mas não tem grande repercussão na literatura oral brasileira. É uma estória lida e não ouvida. Ausente das nossas velhas coleções. Sagrado no Egito e com presença veneranda, custando a vida de quem o matava mesmo acidentalmente. Incontáveis múmias que Gaillard et Daressy recensearam (Faune momifée de l’ancienne Egypte, Le Cairo, 1905).
Para curar a coqueluche que ele provoca, come-se o gato assado. Quando de mudança, o gato vai dentro de um saco, com azeite bezuntado ao focinho para perder o rumo da casa antiga. Gato preto é sinônimo do Diabo. Nenhum santo o escolheu para companheiro. O indígena que adorou o cão, muito pouca simpatia teve pelo gato. O malandro carioca descobriu que o couro do gato era matéria-prima para cuíca e tamborim. “Mas veio o samba. E com o samba veio a cuíca. E para a cuíca, o malandro descobriu que o couro mais forte e mais harmônico é o do gato” (Orestes Barbosa, Samba, Rio de Janeiro, 1933). Noel Rosa aconselhava-o para o tamborim.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Meu trecho predileto

O que mais me comove, em música, são essas notas soltas - pobres notas únicas - que do teclado arranca o afinador de pianos…
Mário Quintana, in Sapato florido

Coração meu foi forte

Isto, sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? De mim, conto. Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de desilusão. Vida muito esponjosa. Eu passava fácil, mas tinha sonhos, que me afadigavam. Dos de que a gente acorda devagar. O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa ― não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da razão. Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela se possui é em mão de minha mulher!
Ou conto mal? Reconto.
Ao que nós acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de várzea. Até, lá era favorável de defender que os cavalos se espairassem ― por ter manga natural, onde se encostar, e currais falsos, de pegar gado brabeza. Natureza bonita, o capim macio. Me revejo, de tudo, daquele dia a dia. Diadorim restava um tempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava para ela. Seja por ser, Riobaldo, que em breve rompemos adiante. Desta vez, a gente tange guerra... ― pronunciou, a prazer, como sempre quando assim, em véspera. Mas balançou a cabaça: tinha um trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro, sem serventia, só para produzir gastura na gente. ― Bota isso fora, Diadorim! ― eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada de capricho, mas que agora sendo para nôjo. E, como me deu sede, eu peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra nunca, e fomos apanhar água num poço, que ele me disse. Era por esconso por uma palmeira ― duma de nome que não sei, de curta altura, mas regrossa, e com cheias palmas, reviradas para cima e depois para baixo, até pousar no chão com as pontas. Todas as palmas tão lisas, tão juntas, fechavam um coberto, remedando choupã de índio. Assino que foi de avistarem umas assim que os bugres acharam ideia de formar suas tocas. Aí a gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá entrava. O poço abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato, ali intrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum azul que haja ― que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi forte. Sofismei! se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco! Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem importância. Nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, por conta desse sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas, qual, se viu um bicho ― rã brusca, feiosa! botando bolhas, que à lisa cacheavam. Resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás, discordes. Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, por aí, consoante a esquisitice dele, de sempre às vezes desaparecer e tornar a aparecer, sem menos. Ah, quem faz isso não é por ser e se saber pessoa culpada?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Êxtase


Ele falou que sempre que via um pôr do sol bonito como aquele sentia que não era para ele. Não sabia explicar. Era como se o pôr do sol fosse para outros e ele estivesse vendo clandestinamente, sem autorização, espiando o que não lhe dizia respeito. Sentia-se, assim, um penetra no espetáculo dos outros. Ela não entendeu. Você acha que não merece, é isso? Que é bonito demais para você? Que você não tem direito a um pôr do sol dessa magnitude? Que o sol deveria se pôr com mais discrição para pessoas como você, que cada pôr do sol deveria ter uma versão condensada, menos espetacular, para os imerecedores da Terra, é isso? Não, não, disse ele. Eu mereço. Não é uma questão de humildade. É uma questão de... E deu outro exemplo. Sorvete de doce de leite. Sempre que comia sorvete de doce de leite tinha a mesma sensação de clandestinidade. Aquela doçura, aquele prazer, não podia estar assim disponível para todos como, como... Como um pôr do sol! Era preciso haver uma hierarquia no direito às coisas magníficas, senão nenhuma escala de valores na vida tinha sentido. Se qualquer um podia comer um sorvete de doce de leite quando quisesse, que sensação sobraria para as grandes epifanias, para o êxtase das grandes revelações? Comer um sorvete de doce de leite nivelava toda a experiência humana, diante de um Michelangelo ou de uma chuva de estrelas a sensação seria a mesma. Lera em algum lugar que os fabricantes de sorvete de doce de leite tinham hesitado muito antes de lançar o produto no mercado. A preocupação deles era outra: temiam a corrupção irrecuperável da humanidade. Depois de provar sorvete de doce de leite, as pessoas poderiam se ver fragilizadas, indefesas diante da autoindulgência e da lubricidade, ou perdidas pela culpa. Tinham até pensado em vender o sorvete com um aviso, como os cigarros. “Atenção: pode causar dependência e ruína moral.” Ele não defendia uma aristocracia com acesso exclusivo ao bom e ao bonito. Só achava que ver um pôr do sol fantástico comendo sorvete de doce de leite deveria ser, assim, como se você fosse um dos escolhidos do mundo, com o crachá correspondente. Licença para se extasiar. E então ele deu outro exemplo: você aqui na minha frente, com as cores do pôr do sol refletidas no seu rosto. Uma exclusividade minha, um privilégio dos meus olhos, uma injustiça para todos os homens do planeta que estão olhando outra coisa. E ela falou “Não exagera, vai”.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo

A brasilidade no traço de Portinari

  
Vendedor de Passarinhos (1959)

Capítulo 8 - Razão Contra Sandice

Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:
La maison est à moi, c'est à vous d'' sortir.
Mas é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha. Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso, houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sótão.
- Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos, cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
- Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mistério...
- Que mistério?
- De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.
A Razão pôs-se a rir.
- “Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa”.
E, dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, ainda grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua de fora, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente andará até a consumação dos séculos.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas