quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
O animal que se tornou um deus
Há
70 mil anos, o Homo sapiens ainda era um animal insignificante
cuidando da sua própria vida em algum canto da África. Nos milênios
seguintes, ele se transformou no senhor de todo o planeta e no terror
do ecossistema. Hoje, está prestes a se tornar um deus, pronto para
adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades
divinas de criação e destruição.
Infelizmente,
até agora o regime dos sapiens sobre a Terra produziu poucas coisas
das quais podemos nos orgulhar. Nós dominamos o meio à nossa volta,
aumentamos a produção de alimentos, construímos cidades, fundamos
impérios e criamos grandes redes de comércio. Mas diminuímos a
quantidade de sofrimento no mundo? Repetidas vezes, os aumentos
gigantescos na capacidade humana não necessariamente melhoraram o
bem-estar dos sapiens como indivíduos e geralmente causaram enorme
sofrimento a outros animais.
Nas
últimas décadas, pelo menos fizemos algum progresso real no que
concerne à condição humana, com a redução da fome, das pragas e
das guerras. Mas a situação de outros animais está se deteriorando
mais rapidamente do que nunca, e a melhoria no destino da humanidade
ainda é muito frágil e recente para que possamos ter certeza dela.
Além
disso, apesar das coisas impressionantes de que os humanos são
capazes de fazer, nós continuamos sem saber ao certo quais são
nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre.
Avançamos de canoas e galés a navios a vapor e naves espaciais –
mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que
nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder. O que
é ainda pior, os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca.
Deuses por mérito próprio, contando apenas com as leis da física
para nos fazer companhia, não prestamos contas a ninguém. Em
consequência, estamos destruindo os outros animais e o ecossistema à
nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto
e divertimento, mas jamais encontrando satisfação.
Existe
algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que
não sabem o que querem?
Yuval
Noah Harari,
in Sapiens: uma breve
história da humanidade
Soneto 34
Por
que me prometeste um dia tão belo
E me fizeste viajar sem meu manto,
Deixando que nuvens baixas cobrissem meu caminho,
Ocultando tua bravura em seu lacerado fumo?
Não basta que irrompas as nuvens
Para enxugar a chuva em meu rosto abatido,
Pois nenhum homem poderá dizer uma oração
Que cicatrize a ferida sem curar a desgraça.
Nem poderá tua vergonha revelar minha dor;
Embora te arrependas, ainda assim perderei;
A tristeza do ofensor pouco alivia
Aquele que carrega a pesada cruz da ofensa.
Ah, mas as lágrimas são pérolas que o teu amor verte;
Elas são valiosas, e resgatam todos os males.
E me fizeste viajar sem meu manto,
Deixando que nuvens baixas cobrissem meu caminho,
Ocultando tua bravura em seu lacerado fumo?
Não basta que irrompas as nuvens
Para enxugar a chuva em meu rosto abatido,
Pois nenhum homem poderá dizer uma oração
Que cicatrize a ferida sem curar a desgraça.
Nem poderá tua vergonha revelar minha dor;
Embora te arrependas, ainda assim perderei;
A tristeza do ofensor pouco alivia
Aquele que carrega a pesada cruz da ofensa.
Ah, mas as lágrimas são pérolas que o teu amor verte;
Elas são valiosas, e resgatam todos os males.
William
Shakespeare
O homem do boné cinzento
Eu,
Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e florescente no meu
palácio.
(Daniel,
IV, 1)
O
culpado foi o homem do boné cinzento.
Antes
da sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade.
Tinha um largo passeio, onde brincavam crianças. Travessas crianças.
Enchiam de doce alarido as enevoadas noites de inverno, cantando de
mãos dadas ou correndo de uma árvore a outra.
A
nossa intranquilidade começou na madrugada em que fomos despertados
por desusado movimento de caminhões, a despejarem pesados caixotes
no prédio do antigo hotel. Disseram-nos, posteriormente, tratar-se
da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir ali.
Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma
só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de
volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia
suposições menos inverossímeis. Possivelmente a casa havia sido
alugada para depósito de algum estabelecimento comercial.
Meu
irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade, contestava
enérgico as minhas conclusões. Nervoso, afirmava que as casas
começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco
e o cinzento. (Pontos brancos, pontos cinzentos, quadradinhos
perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos,
saltitantes.)
Daquela
vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro, pois
antes de decorrida uma semana chegava o novo vizinho. Cobria-lhe a
cabeça um boné xadrez (cinzento e branco) e entre os dentes escuros
trazia um cachimbo curvo. Os olhos fundos, a roupa sobrando no corpo
esquelético e pequeno, puxava pela mão um ridículo cão
perdigueiro. Ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela
figura grotesca, Artur ficou completamente transtornado:
— Esse
homem trouxe os quadradinhos, mas não tardará a desaparecer.
Não
foram poucos os que se impressionaram com o procedimento do
solteirão. Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os
moradores da rua. Nunca era visto saindo de casa e, diariamente, às
cinco horas da tarde, com absoluta pontualidade, aparecia no
alpendre, acompanhado pelo cachorro. Sem se separar do boné que,
possivelmente, escondia uma calvície adiantada, tirava baforadas do
cachimbo e se recolhia novamente. O tempo restante conservava-se
invisível.
Artur
passava o dia espreitando-o, animado por uma tola esperança de vê-lo
surgir antes da hora predeterminada. Não esmorecia, vendo burlados
os seus propósitos. A sua excitação crescia à medida que se
aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do
prédio vizinho. Quando os seus olhos o divisavam, abandonava-se a
uma alegria despropositada:
— Olha,
Roderico, ele está mais magro do que ontem!
Eu
me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse
tanto com a vida dos outros.
Fazia-se
de desentendido e, no dia seguinte, encontrava-o novamente no seu
posto, a repetir-me que o homenzinho continuava definhando.
—
Impossível — eu retrucava —, o diabo
do magrela não tem mais como emagrecer!
— Pois
está emagrecendo.
Ainda
encontrava-me na cama, quando Artur entrou no meu quarto sacudindo os
braços, gritando:
—
Chama-se Anatólio!
Respondi
irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor!
Repentinamente
emudeceu. Da janela, surpreso e quieto, fez um gesto para que eu me
aproximasse. Em frente ao antigo hotel acabara de parar um automóvel
e dele desceu uma bonita moça. Ela mesma retirou a bagagem do carro.
Com uma chave, que trazia na bolsa, abriu a porta da casa, sem que
ninguém aparecesse para recebê-la.
Impelido
pela curiosidade, meu irmão não me dava folga:
— Por
que ela não apareceu antes? Ele não é solteiro?
— Ora,
que importância tem uma jovem residir com um celibatário?
Por
mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obsessão, Artur
arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se
ocultava, não dava sinal da sua permanência na casa. Ele, porém,
se recusava a aceitar a hipótese de que ela tivesse ido embora e se
negava a discutir o problema comigo:
—
Curioso, o homem se definha e é a mulher
que desaparece!
Três
meses mais tarde, de novo abriu-se a porta do casarão para dar
passagem à moça. Sozinha, como viera, carregou as malas consigo.
— Por
que segue a pé? Será que o miserável lhe negou dinheiro para o
táxi?
Com
a partida da jovem, Artur retornou ao primitivo interesse pelo magro
Anatólio. E, rangendo os dentes, repetia:
—
Continua emagrecendo.
Por
outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos
decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto pelo
magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas
preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe
provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o
nosso enigmático vizinho.
Surgia
à hora marcada. O olhar vago, o boné enterrado na cabeça, às
vezes mostrava um sorriso escarninho.
*
* *
Eu
não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. Contudo, foi
Artur que me chamou a atenção para um detalhe:
— Ele
está ficando transparente.
Assustei-me.
Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no
interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos
e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta,
cerrada somente de um dos lados.
Também
Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio
tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam
rapidamente, enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo:
— Olha!
De tão magro, só tem perfil. Amanhã desaparecerá.
Às
cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na
varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para
emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça,
escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse
sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu
a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu recuava
atemorizado.
Por
instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar.
Menos que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado,
deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e
incendiou-se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se
apagava no chão.
— Não
falei! — gritava Artur, exultante.
A
sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde ele
se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara
reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível,
murmurava:
— Não
falei, não falei.
Peguei-o
com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completamente.
Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bolinha negra, a
rolar na minha mão.
Murilo
Rubião, in Obra completa
O sentimento do mistério
O
que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério. É
este o sentimento fundamental que se detém junto ao berço da
verdadeira arte e da ciência. Quem nunca o experimentou nem sabe já
admirar-se ou espantar-se. Pode considerar-se como morto, sem luz,
totalmente cego! A vivência do mistério — embora com laivos de
temor — criou também a religião. A consciência da existência de
tudo quanto para nós é impenetrável, de tudo quanto é
manifestação da mais profunda razão e da mais deslumbrante beleza
e, que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais
primitivas, essa consciência, esse sentimento, constituem a
verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e em mais nenhum, pertenço
à classe dos homens profundamente religiosos. Não posso conceber um
Deus que recompense e castigue os objetos da sua criação, ou que
tenha vontade própria, de puro arbítrio no gênero da que nós
sentimos dentro de nós. Nem tão-pouco consigo imaginar um indivíduo
que sobreviva à sua morte corporal; as almas fracas que alimentem
tais pensamentos fazem-no por medo ou por egoísmo ridículo. A mim
basta-me o mistério da eternidade da vida, a consciência e o
pressentimento da admirável elaboração do ser, assim como o
humilde esforço para compreender uma partícula, por mais pequena
que seja, da razão que se manifesta na natureza.
Albert
Einstein, in
Como vejo o mundo
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Uma sociedade emudecida
Se
a literatura nesta terra ainda serve para alguma coisa, isto é, se
for mais do que alguns estarem ainda a escrever para alguns estarem
ainda a ler, torna-se urgente recuperá-la já que a nossa sociedade
corre o risco, devido aos audiovisuais, de emudecer, ou seja, de
haver cada vez mais uma minoria com grande capacidade para falar e
uma maioria crescente limitada a ouvir, não entendendo sequer muito
bem o que escuta.
José
Saramago, in As palavras de Saramago
Derrotaram o Sucuri
— Está
sabendo, dom Pedro, que derrotaram o Sucuri?
— Sei
que teve algum tiroteio ontem à noite, porque deu para ficar ouvindo
o tumulto; mas daí em diante não sei mais nada. Quem foi que contou
isso, Gerardo?
—
Chegaram uns feridos a Comala. Minha
mulher ajudou nessa coisa dos curativos. Disseram que eram do pessoal
de Damasio e que tinham tido muitos mortos. Parece que se encontraram
com uns sujeitos que se dizem de Pancho Villa.
— Que
caralho, Gerardo! Estou vendo tempos ruins chegando. E o que você
está pensando em fazer?
— Eu
vou-me embora, dom Pedro. Para Sayula. E lá, vou me estabelecer de
novo.
— Vocês
advogados têm essa vantagem; podem levar seu patrimônio a tudo que
é lugar, pelo menos enquanto alguém não arrebentar suas fuças.
— Nem
pense nisso, dom Pedro; tem os nossos problemas. Além do mais dói
deixar pessoas como o senhor, e as deferências que o senhor teve
comigo a gente sempre sente falta. Nosso mundo muda o tempo todo, se
é válido dizer assim. Onde o senhor quer que eu deixe os seus
papéis?
— Não
deixe os papéis. Leve tudo. Ou será que você não vai poder
continuar cuidando de meus assuntos lá onde vai estar?
—
Agradeço a sua confiança, dom Pedro.
Agradeço sinceramente. Embora deva fazer a aclaração de que para
mim vai ser impossível. Certas irregularidades... Digamos...
Depoimentos que ninguém além do senhor deve conhecer. Podem
prestar-se a manipulações ruins no caso de cair em outras mãos. O
mais seguro é que fiquem aqui com o senhor.
— Você
disse bem, Gerardo. Deixa tudo aqui. Vou queimar os papéis. Com
papéis ou sem eles, quem pode discutir comigo a propriedade do que
tenho?
— Sem
sombra de dúvida, ninguém, dom Pedro. Ninguém. Com licença.
— Vá
com Deus, Gerardo.
— O
que foi que o senhor disse?
— Eu
disse que Deus o acompanhe.
O
doutor Gerardo Trujillo saiu devagar. Já estava velho; mas não para
dar passos tão curtos, tão desanimados. A verdade é que ele
esperava uma recompensa. Havia servido a dom Lucas, que em paz
descanse, o pai de dom Pedro; depois, e ainda, a dom Pedro; e depois
a Miguel, o filho de dom Pedro. A verdade é que ele esperava uma
compensação. Uma retribuição grande e valiosa. Dissera à mulher:
— Vou
me despedir de dom Pedro. Sei que ele vai me gratificar. Estou quase
dizendo que com o dinheiro que ele vai me dar nos estabeleceremos bem
em Sayula e vamos viver com folga o resto dos nossos dias.
Mas
por que as mulheres sempre têm alguma dúvida? Recebem avisos do
céu, ou o quê? Ela não pareceu estar segura nem mesmo de que ele
receberia alguma coisa:
— Lá,
você vai ter de trabalhar duro e muito para levantar a cabeça.
Daqui você não arranca nada.
— Por
que está dizendo isso?
— Eu
sei.
Continuou
andando até a porta, atento a qualquer chamado: “Ei, Gerardo!
Estou tão preocupado que não me permiti pensar em você. Mas eu lhe
devo favores que o dinheiro não paga. Receba isto: um presente
insignificante.”
Mas
o chamado não veio. Cruzou a porta e desamarrou o cabresto com que
seu cavalo estava amarrado à forquilha. Subiu na sela e, em marcha
curta, tratando de não se afastar muito para ouvir se o chamasse,
caminhou até Comala sem se desviar do caminho. Quando viu que a
Media Luna se perdia atrás, pensou: “Seria me rebaixar demais
pedir a ele um empréstimo.”
Juan
Rulfo, in Pedro Páramo
Perguntas
Antes
eu não entendia por que não recebia nenhuma resposta à minha
pergunta, hoje não entendo como podia acreditar que era capaz de
perguntar. Mas realmente não acreditava, só perguntava.
Franz
Kafka, in Aforismos reunidos
Um solitário à espreita
Às
duas da manhã do primeiro dia do ano escutei num bar a conversa de
um casal. Não fui indiscreto: o par falava alto, era um papo para
ser ouvido. E olha que chovia uma chuva de canivete, com relâmpagos
e trovoadas. Pesquei a conversa no meio.
“Não
consulto oráculo nem sou cartomante”, ela riu. “Aliás, quem
pode ser adivinha…”
“Adivinha
o quê?”, ele perguntou.
“Não
te pedi para adivinhar nada. Eu disse que não era uma adivinha.”
“Ah!”
“Só
espero que os prefeitos eleitos enterrem a praga nacional”, ela
disse.
“Qual
praga?”
“O
superfaturamento.”
“Das
obras?”
“De
tudo, até da merenda escolar. São capazes de superfaturar até a
sopa para mendigos e desabrigados.”
“Mas
alguns políticos fazem isso”, ele disse.
“A
sopa? Superfaturamento da sopa? Como?”
“O
macarrão e a carne da sopa podem ser superfaturados. O óleo do
tempero e até o tempero…”
“Que
coisa horrorosa”, ela disse.
“O
problema não é a corrupção, que existe em todos os continentes.
Nosso problema é a…”
Relâmpagos
com trovoadas.
“Não
ouvi o que você disse”, ela disse.
Uma
trovoada mais forte interrompeu a conversa. Os dois ficaram em
silêncio, e eu, que já estava calado, fiquei curioso para ouvir
mais. Nós três esperamos o fim dos trovões. Um homem tropeçou,
derrubou uma cadeira e deu uma risada.
“Nosso
problema é a impunidade”, ele prosseguiu.
“O
judiciário… Uma parte do judiciário é cúmplice de tudo isso. Os
procuradores, a Polícia Federal e alguns juízes são confiáveis,
mas eles não podem tudo.”
“E
nós?”, ela perguntou.
“Nós?
Nós pagamos impostos. Somos cordeiros resignados no meio de milhões
de cordeiros sacrificados.”
“Mas
você acha que é possível diminuir a bandalheira? Por exemplo, uma
redução de trinta por cento… Seriam bilhões de reais investidos
em habitação popular, hospitais.”
“Trinta
por cento? Se a corrupção diminuir tanto, o Brasil cresce oito por
cento ao ano. Mas não sou otimista: trinta por cento é a comissão
das negociatas. Já foi dez, passou para vinte, agora dizem que é
trinta. Quando chegar a cinquenta, será uma catástrofe…”
“Por
isso meu avô apoiava os militares.”
“Teu
avô acreditava que o governo militar era duro, mas honesto. E olha
no que deu.”
“Acho
que aquele sujeito bebeu muito”, ela disse.
“Vai
mexer conosco. Vamos mudar de mesa? Aquela ali no canto, perto do
balcão…”
“Além
disso, teu avô idolatrava a censura. Ele dizia: ‘Mais vale um
soneto de Camões ou uma receita de bacalhau do que notícias
subversivas’.”
“Coitado
do vovô!”
“Coitado
do país, isso sim.”
“Ele
gostava de você”, ela disse.
“Nem
tanto”, ele protestou. “Uma vez me ameaçou porque eu usava
barba. Me chamou de terrorista. Você não lembra?”
“Claro
que lembro. E você disse na cara dele: ‘O senhor apoia a
tortura’.”
“O
velho era um tremendo reaça…”
“Não
vamos brigar por causa dele. Era um homem bom, cheio de princípios.”
“Casei
com uma ingênua”, ele disse.
“E
eu com um comunista”, ela riu.
“Agora
não há mais avô nem comunismo”, ele disse.
“Há
burocracia, roubo e ganância. Impostos e juros altos para sustentar
políticos e burocratas. Mais uma cerveja? Você quer mesmo ir para
aquela mesa?”
“A
chuva está passando. Quero ir pra casa. O bar está vazio, só ficou
esse bêbado”, ela disse.
“E
aquele cara ali, que está ouvindo a nossa conversa.”
“Um
solitário”, ela disse.
“Um
solitário… Mas por que você está olhando para ele?”
“Não
posso olhar para um homem sozinho nas primeiras horas do Ano-Novo?
Você está com ciúme?”
“Não.
Não sei. Mas se você olhar muito…”
“Queria
saber o que ele pensa sobre a corrupção.”
Os
dois me olharam e eu olhei os pés do bêbado. Na verdade, era um
mendigo que se protegia da chuva. Batia palmas e pedia uns trocados.
“Quem
esse bêbado está aplaudindo?”, ela perguntou.
“Nós”,
ele disse. “Nossa conversa sobre corrupção e impunidade. O
impasse do Brasil.”
Ela
se levantou: queria ir embora.
“Porque
a gente fala, protesta e fica indignado, mas só os bêbados
escutam”, ele prosseguiu, deixando uma cédula na mesa.
“Aquele
cara escutou nossa conversa”, disse a mulher
“Mas
o que ele pode fazer? Nada. Vai ver que é mais um bêbado
solitário.”
“Será?”,
ela perguntou, olhando para mim e depois para as mãos do mendigo.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018
Lápide 1 - epitáfio para o corpo
Aqui
jaz um grande poeta.
Nada
deixou escrito.
Este
silêncio, acredito,
são
suas obras completas.
Paulo
Leminski
Sua Alteza, o gato
Quem
mata um gato tem sete anos de atraso. Solteiro que pisar rabo de gato
não casa dos primeiros doze meses. Gato transmite asma. Engasgado,
anuncia fome. Gato preto é agouro ou felicidade. Sendo de casa, para
ele convergem os malefícios e deixa a família em paz. Sendo
estranho, está trazendo as desgraças alheias.
Assim
pensam na Europa. Carlos I de Inglaterra tinha um gato preto como
amuleto. Morreu o gato e o Rei exclamou: “My luck is gone!”.
E era verdade. “lt had. Next day he was arrested”, informa
Mr. Radford. O Barão do Rio Branco não os podia ver.
Não
há animal que tenha maior número de suspeitas que o gato,
companheiro amável ou hóspede intruso e detestado, também
merecedor dos maiores elogios em prosa e verso de que existe notícia
na espécie.
Pintado
pelos mestres, esculpido pelos grandes, imóvel em porcelana, marfim,
ouro, prata, tornado amuleto, passeando nas pulseiras, colares,
brincos, broches femininos, é modelo de uma Histoire des chats
(Paris, 1727), de Paradis de Moncrif, da Academia Francesa. A senhora
Christabel Aberconway publicou (Londres, 1949) A dictionary of a
cat lovers, com mais de duzentas biografias de amigos do felino,
célebres em letras, artes, política, armas, economia. Cita apenas
os mortos. Entre os vivos estavam Colette, La Gata, e o poeta T. S.
Eliot, autor do Old possun book of practical cat. Félix
Pacheco, Boudelaire e os gatos (Rio de Janeiro, 1934), compendiara
muita notícia literária sobre o assunto. Tivemos mesmo uma famosa
polêmica entre o brasileiro Tobias Monteiro, pelo gato, e o
português Visconde de Santo Thirso, pelo cão.
Sou
pelo cachorro. Teluricamente.
O
povo não é realmente muito amigo do gato e sim de sua utilidade
venatória, dedicada aos ratos. Senhorial, egoísta, esquivo,
traiçoeiro, o gato é desdenhoso, fiel à casa e não ao
proprietário. Ao conforto dos hábitos e nunca à pessoa que os
proporciona. Mas é elegante, nervoso, magnético, incomparável nos
gestos lentos, no espreguiçamento de odalisca entediada, nas graças
sucessivas das atitudes originais e aristocráticas. Parece sempre
superior ao dono da casa.
O
brasileiro recebeu o gato do colonizador português e com ele as
superstições. O português ama e teme o gato, numa ambivalência
que o faz tratá-lo como a uma criança mimada ou divertir-se pondo-o
dentro de um pote para partir às cacetadas ou pendurá-lo, vivo e
miante, num alto do poste, numa vasilha, sobre a crepitante fogueira
nas tardes festivas do fim das colheitas. Nós temos o gato no
pote, inseparável nas alegrias festeiras, fiéis ao tempo velho.
Do
Oriente, teve o português o respeito vagamente tenebroso ao gato.
Viera com os orientais que se fixaram na Península Ibérica tantos
séculos. Sua domesticação foi na África, entre os núbios. A
presença no Egito não parece imediata, pois as primeiras dinastias
não o tiveram. Mariette não encontrou desenhos de gatos nos túmulos
de Sakara, 4500 anos antes de Cristo. Figuravam bois, asnos, cães,
macacos, antílopes, gazelas, gansos, patos, cegonhas domésticas,
pombas, galinhas da Numídia, as nossas guinés mas não camelos,
girafas, elefantes, carneiros, galinhas e gatos. Espalhou-se em tipos
inumeráveis pelo Oriente e fez da China um centro de irradiação.
Gregos
e romanos não conheceram o gato e sua introdução mais viva na
Europa é na Era Cristã. Essa é a lição dos mestres etnógrafos
que não leram Aristófanes, na Festas de Ceres, 412 anos
antes de Cristo, onde o gato era popular e já ladrão do jantar
alheio, nas residências de Atenas.
Dizem-no
raro na Inglaterra do século X e sua popularidade na França é de
meados do século XVI. A dispersão europeia ter-se-ia verificado nos
finais da Idade Média e multiplicado quando do ciclo das navegações,
especialmente italianas. O português tê-lo-ia pelo árabe durante o
domínio e também como carregamento de bicho raro em datas finais do
século XV. Não há vestígio pré-histórico europeu. Ausente das
palafitas.
Na
Inglaterra deu, no século XVII, origem a lenda popular e querida do
Whittington’s cat. O herói tivera apenas um gato por
herança e levara-o para terras infestadas pelos ratos e que
desconheciam o gato. Fez fortuna. Voltou rico e foi Lorde Mayor de
Londres. A lenda foi dispersa por quase toda a Europa, inclusive
Escandinávia e Rússia. Popularíssimo se tornou o gato na França
com o Maistre chat ou Chat botté, publicado por Charles
Perrault em 1697 e que nascera de um conto do Pentamerone, de
Giambattista Basile, Nápoles, 1634, mas anteriormente aproveitado o
tema por Straparola, 1560, Piacevoli notti. O conto é popular
em Portugal, de onde o tivemos, mas não tem grande repercussão na
literatura oral brasileira. É uma estória lida e não ouvida.
Ausente das nossas velhas coleções. Sagrado no Egito e com presença
veneranda, custando a vida de quem o matava mesmo acidentalmente.
Incontáveis múmias que Gaillard et Daressy recensearam (Faune
momifée de l’ancienne Egypte, Le Cairo, 1905).
Para
curar a coqueluche que ele provoca, come-se o gato assado. Quando de
mudança, o gato vai dentro de um saco, com azeite bezuntado ao
focinho para perder o rumo da casa antiga. Gato preto é sinônimo do
Diabo. Nenhum santo o escolheu para companheiro. O indígena que
adorou o cão, muito pouca simpatia teve pelo gato. O malandro
carioca descobriu que o couro do gato era matéria-prima para cuíca
e tamborim. “Mas veio o samba. E com o samba veio a cuíca. E para
a cuíca, o malandro descobriu que o couro mais forte e mais
harmônico é o do gato” (Orestes Barbosa, Samba, Rio de
Janeiro, 1933). Noel Rosa aconselhava-o para o tamborim.
Luís
da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz
domingo, 25 de fevereiro de 2018
Meu trecho predileto
O
que mais me comove, em música, são essas notas soltas - pobres
notas únicas - que do teclado arranca o afinador de pianos…
Mário
Quintana, in Sapato florido
Coração meu foi forte
Isto,
sabe o senhor por que eu tinha ido lá daqueles lados? De mim, conto.
Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão
de desilusão. Vida muito esponjosa. Eu passava fácil, mas tinha
sonhos, que me afadigavam. Dos de que a gente acorda devagar. O amor?
Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas
minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa ―
não dava de transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia.
Acho que eu também era assim. Dele eu queria saber? Só se queria e
não queria. Nem para se definir calado, em si, um assunto contrário
absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da razão.
Agora, destino da gente, o senhor veja: eu trouxe a pedra de topázio
para dar a Diadorim; ficou sendo para Otacília, por mimo; e hoje ela
se possui é em mão de minha mulher!
Ou
conto mal? Reconto.
Ao
que nós acampados em pé duns brejos, brejal, cabo de várzea. Até,
lá era favorável de defender que os cavalos se espairassem ― por
ter manga natural, onde se encostar, e currais falsos, de pegar gado
brabeza. Natureza bonita, o capim macio. Me revejo, de tudo,
daquele dia a dia. Diadorim restava um tempo com uma cabaça nas duas
mãos, eu olhava para ela. Seja por ser, Riobaldo, que em breve
rompemos adiante. Desta vez, a gente tange guerra... ― pronunciou,
a prazer, como sempre quando assim, em véspera. Mas balançou a
cabaça: tinha um trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco
de ferro, sem serventia, só para produzir gastura na gente. ― Bota
isso fora, Diadorim! ― eu disse. Ele não contestou, e me olhou de
um hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em
tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida
com a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada
de capricho, mas que agora sendo para nôjo. E, como me deu sede, eu
peguei meu copo de corno lavrado, que não quebra nunca, e fomos
apanhar água num poço, que ele me disse. Era por esconso por uma
palmeira ― duma de nome que não sei, de curta altura, mas
regrossa, e com cheias palmas, reviradas para cima e depois para
baixo, até pousar no chão com as pontas. Todas as palmas tão
lisas, tão juntas, fechavam um coberto, remedando choupã de índio.
Assino que foi de avistarem umas assim que os bugres acharam ideia de
formar suas tocas. Aí a gente se curvar, suspendia uma folhagem, lá
entrava. O poço abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do
mato, ali intrim, toda luz verdeja. Mas a água, mesma, azul, dum
azul que haja ― que roxo logo mudava. A vai, coração meu foi
forte. Sofismei! se Diadorim segurasse em mim com os olhos, me
declarasse as todas as palavras? Reajo que repelia. Eu? Asco!
Diadorim parava normal, estacado, observando tudo sem importância.
Nem provia segredo. E eu tive decepção de logro, por conta desse
sensato silêncio? Debrucei, ia catar água. Mas, qual, se viu um
bicho ― rã brusca, feiosa! botando bolhas, que à lisa cacheavam.
Resumo que nós dois, sob num tempo, demos para trás, discordes.
Diadorim desconversou, e se sumiu, por lá, por aí, consoante a
esquisitice dele, de sempre às vezes desaparecer e tornar a
aparecer, sem menos. Ah, quem faz isso não é por ser e se saber
pessoa culpada?
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
Êxtase
Ele
falou que sempre que via um pôr do sol bonito como aquele sentia que
não era para ele. Não sabia explicar. Era como se o pôr do sol
fosse para outros e ele estivesse vendo clandestinamente, sem
autorização, espiando o que não lhe dizia respeito. Sentia-se,
assim, um penetra no espetáculo dos outros. Ela não entendeu. Você
acha que não merece, é isso? Que é bonito demais para você? Que
você não tem direito a um pôr do sol dessa magnitude? Que o sol
deveria se pôr com mais discrição para pessoas como você, que
cada pôr do sol deveria ter uma versão condensada, menos
espetacular, para os imerecedores da Terra, é isso? Não, não,
disse ele. Eu mereço. Não é uma questão de humildade. É uma
questão de... E deu outro exemplo. Sorvete de doce de leite. Sempre
que comia sorvete de doce de leite tinha a mesma sensação de
clandestinidade. Aquela doçura, aquele prazer, não podia estar
assim disponível para todos como, como... Como um pôr do sol! Era
preciso haver uma hierarquia no direito às coisas magníficas, senão
nenhuma escala de valores na vida tinha sentido. Se qualquer um podia
comer um sorvete de doce de leite quando quisesse, que sensação
sobraria para as grandes epifanias, para o êxtase das grandes
revelações? Comer um sorvete de doce de leite nivelava toda a
experiência humana, diante de um Michelangelo ou de uma chuva de
estrelas a sensação seria a mesma. Lera em algum lugar que os
fabricantes de sorvete de doce de leite tinham hesitado muito antes
de lançar o produto no mercado. A preocupação deles era outra:
temiam a corrupção irrecuperável da humanidade. Depois de provar
sorvete de doce de leite, as pessoas poderiam se ver fragilizadas,
indefesas diante da autoindulgência e da lubricidade, ou perdidas
pela culpa. Tinham até pensado em vender o sorvete com um aviso,
como os cigarros. “Atenção: pode causar dependência e ruína
moral.” Ele não defendia uma aristocracia com acesso exclusivo ao
bom e ao bonito. Só achava que ver um pôr do sol fantástico
comendo sorvete de doce de leite deveria ser, assim, como se você
fosse um dos escolhidos do mundo, com o crachá correspondente.
Licença para se extasiar. E então ele deu outro exemplo: você aqui
na minha frente, com as cores do pôr do sol refletidas no seu rosto.
Uma exclusividade minha, um privilégio dos meus olhos, uma injustiça
para todos os homens do planeta que estão olhando outra coisa. E ela
falou “Não exagera, vai”.
Luís
Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo
Capítulo 8 - Razão Contra Sandice
Já
o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e
convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras
de Tartufo:
La
maison est à moi, c'est à vous d'' sortir.
Mas
é sestro antigo da Sandice criar amor às casas alheias, de modo
que, apenas senhora de uma, dificilmente lha farão despejar. É
sestro; não se tira daí; há muito que lhe calejou a vergonha.
Agora, se advertirmos no imenso número de casas que ocupa, umas de
vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que
esta amável peregrina é o terror dos proprietários. No nosso caso,
houve quase um distúrbio à porta do meu cérebro, porque a
adventícia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da
intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se
contentava com um cantinho no sótão.
-
Não, senhora, replicou a Razão, estou cansada de lhe ceder sótãos,
cansada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do
sótão à sala de jantar, daí à de visitas e ao resto.
-
Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um
mistério...
-
Que mistério?
-
De dois, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns
dez minutos.
A
Razão pôs-se a rir.
-
“Hás de ser sempre a mesma coisa... sempre a mesma coisa... sempre
a mesma coisa”.
E,
dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fora; depois
entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas súplicas, ainda
grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a língua
de fora, em ar de surriada, e foi andando... foi andando...
Provavelmente andará até a consumação dos séculos.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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