Às
duas da manhã do primeiro dia do ano escutei num bar a conversa de
um casal. Não fui indiscreto: o par falava alto, era um papo para
ser ouvido. E olha que chovia uma chuva de canivete, com relâmpagos
e trovoadas. Pesquei a conversa no meio.
“Não
consulto oráculo nem sou cartomante”, ela riu. “Aliás, quem
pode ser adivinha…”
“Adivinha
o quê?”, ele perguntou.
“Não
te pedi para adivinhar nada. Eu disse que não era uma adivinha.”
“Ah!”
“Só
espero que os prefeitos eleitos enterrem a praga nacional”, ela
disse.
“Qual
praga?”
“O
superfaturamento.”
“Das
obras?”
“De
tudo, até da merenda escolar. São capazes de superfaturar até a
sopa para mendigos e desabrigados.”
“Mas
alguns políticos fazem isso”, ele disse.
“A
sopa? Superfaturamento da sopa? Como?”
“O
macarrão e a carne da sopa podem ser superfaturados. O óleo do
tempero e até o tempero…”
“Que
coisa horrorosa”, ela disse.
“O
problema não é a corrupção, que existe em todos os continentes.
Nosso problema é a…”
Relâmpagos
com trovoadas.
“Não
ouvi o que você disse”, ela disse.
Uma
trovoada mais forte interrompeu a conversa. Os dois ficaram em
silêncio, e eu, que já estava calado, fiquei curioso para ouvir
mais. Nós três esperamos o fim dos trovões. Um homem tropeçou,
derrubou uma cadeira e deu uma risada.
“Nosso
problema é a impunidade”, ele prosseguiu.
“O
judiciário… Uma parte do judiciário é cúmplice de tudo isso. Os
procuradores, a Polícia Federal e alguns juízes são confiáveis,
mas eles não podem tudo.”
“E
nós?”, ela perguntou.
“Nós?
Nós pagamos impostos. Somos cordeiros resignados no meio de milhões
de cordeiros sacrificados.”
“Mas
você acha que é possível diminuir a bandalheira? Por exemplo, uma
redução de trinta por cento… Seriam bilhões de reais investidos
em habitação popular, hospitais.”
“Trinta
por cento? Se a corrupção diminuir tanto, o Brasil cresce oito por
cento ao ano. Mas não sou otimista: trinta por cento é a comissão
das negociatas. Já foi dez, passou para vinte, agora dizem que é
trinta. Quando chegar a cinquenta, será uma catástrofe…”
“Por
isso meu avô apoiava os militares.”
“Teu
avô acreditava que o governo militar era duro, mas honesto. E olha
no que deu.”
“Acho
que aquele sujeito bebeu muito”, ela disse.
“Vai
mexer conosco. Vamos mudar de mesa? Aquela ali no canto, perto do
balcão…”
“Além
disso, teu avô idolatrava a censura. Ele dizia: ‘Mais vale um
soneto de Camões ou uma receita de bacalhau do que notícias
subversivas’.”
“Coitado
do vovô!”
“Coitado
do país, isso sim.”
“Ele
gostava de você”, ela disse.
“Nem
tanto”, ele protestou. “Uma vez me ameaçou porque eu usava
barba. Me chamou de terrorista. Você não lembra?”
“Claro
que lembro. E você disse na cara dele: ‘O senhor apoia a
tortura’.”
“O
velho era um tremendo reaça…”
“Não
vamos brigar por causa dele. Era um homem bom, cheio de princípios.”
“Casei
com uma ingênua”, ele disse.
“E
eu com um comunista”, ela riu.
“Agora
não há mais avô nem comunismo”, ele disse.
“Há
burocracia, roubo e ganância. Impostos e juros altos para sustentar
políticos e burocratas. Mais uma cerveja? Você quer mesmo ir para
aquela mesa?”
“A
chuva está passando. Quero ir pra casa. O bar está vazio, só ficou
esse bêbado”, ela disse.
“E
aquele cara ali, que está ouvindo a nossa conversa.”
“Um
solitário”, ela disse.
“Um
solitário… Mas por que você está olhando para ele?”
“Não
posso olhar para um homem sozinho nas primeiras horas do Ano-Novo?
Você está com ciúme?”
“Não.
Não sei. Mas se você olhar muito…”
“Queria
saber o que ele pensa sobre a corrupção.”
Os
dois me olharam e eu olhei os pés do bêbado. Na verdade, era um
mendigo que se protegia da chuva. Batia palmas e pedia uns trocados.
“Quem
esse bêbado está aplaudindo?”, ela perguntou.
“Nós”,
ele disse. “Nossa conversa sobre corrupção e impunidade. O
impasse do Brasil.”
Ela
se levantou: queria ir embora.
“Porque
a gente fala, protesta e fica indignado, mas só os bêbados
escutam”, ele prosseguiu, deixando uma cédula na mesa.
“Aquele
cara escutou nossa conversa”, disse a mulher
“Mas
o que ele pode fazer? Nada. Vai ver que é mais um bêbado
solitário.”
“Será?”,
ela perguntou, olhando para mim e depois para as mãos do mendigo.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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