Ele
falou que sempre que via um pôr do sol bonito como aquele sentia que
não era para ele. Não sabia explicar. Era como se o pôr do sol
fosse para outros e ele estivesse vendo clandestinamente, sem
autorização, espiando o que não lhe dizia respeito. Sentia-se,
assim, um penetra no espetáculo dos outros. Ela não entendeu. Você
acha que não merece, é isso? Que é bonito demais para você? Que
você não tem direito a um pôr do sol dessa magnitude? Que o sol
deveria se pôr com mais discrição para pessoas como você, que
cada pôr do sol deveria ter uma versão condensada, menos
espetacular, para os imerecedores da Terra, é isso? Não, não,
disse ele. Eu mereço. Não é uma questão de humildade. É uma
questão de... E deu outro exemplo. Sorvete de doce de leite. Sempre
que comia sorvete de doce de leite tinha a mesma sensação de
clandestinidade. Aquela doçura, aquele prazer, não podia estar
assim disponível para todos como, como... Como um pôr do sol! Era
preciso haver uma hierarquia no direito às coisas magníficas, senão
nenhuma escala de valores na vida tinha sentido. Se qualquer um podia
comer um sorvete de doce de leite quando quisesse, que sensação
sobraria para as grandes epifanias, para o êxtase das grandes
revelações? Comer um sorvete de doce de leite nivelava toda a
experiência humana, diante de um Michelangelo ou de uma chuva de
estrelas a sensação seria a mesma. Lera em algum lugar que os
fabricantes de sorvete de doce de leite tinham hesitado muito antes
de lançar o produto no mercado. A preocupação deles era outra:
temiam a corrupção irrecuperável da humanidade. Depois de provar
sorvete de doce de leite, as pessoas poderiam se ver fragilizadas,
indefesas diante da autoindulgência e da lubricidade, ou perdidas
pela culpa. Tinham até pensado em vender o sorvete com um aviso,
como os cigarros. “Atenção: pode causar dependência e ruína
moral.” Ele não defendia uma aristocracia com acesso exclusivo ao
bom e ao bonito. Só achava que ver um pôr do sol fantástico
comendo sorvete de doce de leite deveria ser, assim, como se você
fosse um dos escolhidos do mundo, com o crachá correspondente.
Licença para se extasiar. E então ele deu outro exemplo: você aqui
na minha frente, com as cores do pôr do sol refletidas no seu rosto.
Uma exclusividade minha, um privilégio dos meus olhos, uma injustiça
para todos os homens do planeta que estão olhando outra coisa. E ela
falou “Não exagera, vai”.
Luís
Fernando Veríssimo, in Amor Veríssimo
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