segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Sua Alteza, o gato


Quem mata um gato tem sete anos de atraso. Solteiro que pisar rabo de gato não casa dos primeiros doze meses. Gato transmite asma. Engasgado, anuncia fome. Gato preto é agouro ou felicidade. Sendo de casa, para ele convergem os malefícios e deixa a família em paz. Sendo estranho, está trazendo as desgraças alheias.
Assim pensam na Europa. Carlos I de Inglaterra tinha um gato preto como amuleto. Morreu o gato e o Rei exclamou: “My luck is gone!”. E era verdade. “lt had. Next day he was arrested”, informa Mr. Radford. O Barão do Rio Branco não os podia ver.
Não há animal que tenha maior número de suspeitas que o gato, companheiro amável ou hóspede intruso e detestado, também merecedor dos maiores elogios em prosa e verso de que existe notícia na espécie.
Pintado pelos mestres, esculpido pelos grandes, imóvel em porcelana, marfim, ouro, prata, tornado amuleto, passeando nas pulseiras, colares, brincos, broches femininos, é modelo de uma Histoire des chats (Paris, 1727), de Paradis de Moncrif, da Academia Francesa. A senhora Christabel Aberconway publicou (Londres, 1949) A dictionary of a cat lovers, com mais de duzentas biografias de amigos do felino, célebres em letras, artes, política, armas, economia. Cita apenas os mortos. Entre os vivos estavam Colette, La Gata, e o poeta T. S. Eliot, autor do Old possun book of practical cat. Félix Pacheco, Boudelaire e os gatos (Rio de Janeiro, 1934), compendiara muita notícia literária sobre o assunto. Tivemos mesmo uma famosa polêmica entre o brasileiro Tobias Monteiro, pelo gato, e o português Visconde de Santo Thirso, pelo cão.
Sou pelo cachorro. Teluricamente.
O povo não é realmente muito amigo do gato e sim de sua utilidade venatória, dedicada aos ratos. Senhorial, egoísta, esquivo, traiçoeiro, o gato é desdenhoso, fiel à casa e não ao proprietário. Ao conforto dos hábitos e nunca à pessoa que os proporciona. Mas é elegante, nervoso, magnético, incomparável nos gestos lentos, no espreguiçamento de odalisca entediada, nas graças sucessivas das atitudes originais e aristocráticas. Parece sempre superior ao dono da casa.
O brasileiro recebeu o gato do colonizador português e com ele as superstições. O português ama e teme o gato, numa ambivalência que o faz tratá-lo como a uma criança mimada ou divertir-se pondo-o dentro de um pote para partir às cacetadas ou pendurá-lo, vivo e miante, num alto do poste, numa vasilha, sobre a crepitante fogueira nas tardes festivas do fim das colheitas. Nós temos o gato no pote, inseparável nas alegrias festeiras, fiéis ao tempo velho.
Do Oriente, teve o português o respeito vagamente tenebroso ao gato. Viera com os orientais que se fixaram na Península Ibérica tantos séculos. Sua domesticação foi na África, entre os núbios. A presença no Egito não parece imediata, pois as primeiras dinastias não o tiveram. Mariette não encontrou desenhos de gatos nos túmulos de Sakara, 4500 anos antes de Cristo. Figuravam bois, asnos, cães, macacos, antílopes, gazelas, gansos, patos, cegonhas domésticas, pombas, galinhas da Numídia, as nossas guinés mas não camelos, girafas, elefantes, carneiros, galinhas e gatos. Espalhou-se em tipos inumeráveis pelo Oriente e fez da China um centro de irradiação.
Gregos e romanos não conheceram o gato e sua introdução mais viva na Europa é na Era Cristã. Essa é a lição dos mestres etnógrafos que não leram Aristófanes, na Festas de Ceres, 412 anos antes de Cristo, onde o gato era popular e já ladrão do jantar alheio, nas residências de Atenas.
Dizem-no raro na Inglaterra do século X e sua popularidade na França é de meados do século XVI. A dispersão europeia ter-se-ia verificado nos finais da Idade Média e multiplicado quando do ciclo das navegações, especialmente italianas. O português tê-lo-ia pelo árabe durante o domínio e também como carregamento de bicho raro em datas finais do século XV. Não há vestígio pré-histórico europeu. Ausente das palafitas.
Na Inglaterra deu, no século XVII, origem a lenda popular e querida do Whittington’s cat. O herói tivera apenas um gato por herança e levara-o para terras infestadas pelos ratos e que desconheciam o gato. Fez fortuna. Voltou rico e foi Lorde Mayor de Londres. A lenda foi dispersa por quase toda a Europa, inclusive Escandinávia e Rússia. Popularíssimo se tornou o gato na França com o Maistre chat ou Chat botté, publicado por Charles Perrault em 1697 e que nascera de um conto do Pentamerone, de Giambattista Basile, Nápoles, 1634, mas anteriormente aproveitado o tema por Straparola, 1560, Piacevoli notti. O conto é popular em Portugal, de onde o tivemos, mas não tem grande repercussão na literatura oral brasileira. É uma estória lida e não ouvida. Ausente das nossas velhas coleções. Sagrado no Egito e com presença veneranda, custando a vida de quem o matava mesmo acidentalmente. Incontáveis múmias que Gaillard et Daressy recensearam (Faune momifée de l’ancienne Egypte, Le Cairo, 1905).
Para curar a coqueluche que ele provoca, come-se o gato assado. Quando de mudança, o gato vai dentro de um saco, com azeite bezuntado ao focinho para perder o rumo da casa antiga. Gato preto é sinônimo do Diabo. Nenhum santo o escolheu para companheiro. O indígena que adorou o cão, muito pouca simpatia teve pelo gato. O malandro carioca descobriu que o couro do gato era matéria-prima para cuíca e tamborim. “Mas veio o samba. E com o samba veio a cuíca. E para a cuíca, o malandro descobriu que o couro mais forte e mais harmônico é o do gato” (Orestes Barbosa, Samba, Rio de Janeiro, 1933). Noel Rosa aconselhava-o para o tamborim.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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