Eu,
Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e florescente no meu
palácio.
(Daniel,
IV, 1)
O
culpado foi o homem do boné cinzento.
Antes
da sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade.
Tinha um largo passeio, onde brincavam crianças. Travessas crianças.
Enchiam de doce alarido as enevoadas noites de inverno, cantando de
mãos dadas ou correndo de uma árvore a outra.
A
nossa intranquilidade começou na madrugada em que fomos despertados
por desusado movimento de caminhões, a despejarem pesados caixotes
no prédio do antigo hotel. Disseram-nos, posteriormente, tratar-se
da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir ali.
Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma
só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de
volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia
suposições menos inverossímeis. Possivelmente a casa havia sido
alugada para depósito de algum estabelecimento comercial.
Meu
irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade, contestava
enérgico as minhas conclusões. Nervoso, afirmava que as casas
começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco
e o cinzento. (Pontos brancos, pontos cinzentos, quadradinhos
perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos,
saltitantes.)
Daquela
vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro, pois
antes de decorrida uma semana chegava o novo vizinho. Cobria-lhe a
cabeça um boné xadrez (cinzento e branco) e entre os dentes escuros
trazia um cachimbo curvo. Os olhos fundos, a roupa sobrando no corpo
esquelético e pequeno, puxava pela mão um ridículo cão
perdigueiro. Ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela
figura grotesca, Artur ficou completamente transtornado:
— Esse
homem trouxe os quadradinhos, mas não tardará a desaparecer.
Não
foram poucos os que se impressionaram com o procedimento do
solteirão. Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os
moradores da rua. Nunca era visto saindo de casa e, diariamente, às
cinco horas da tarde, com absoluta pontualidade, aparecia no
alpendre, acompanhado pelo cachorro. Sem se separar do boné que,
possivelmente, escondia uma calvície adiantada, tirava baforadas do
cachimbo e se recolhia novamente. O tempo restante conservava-se
invisível.
Artur
passava o dia espreitando-o, animado por uma tola esperança de vê-lo
surgir antes da hora predeterminada. Não esmorecia, vendo burlados
os seus propósitos. A sua excitação crescia à medida que se
aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do
prédio vizinho. Quando os seus olhos o divisavam, abandonava-se a
uma alegria despropositada:
— Olha,
Roderico, ele está mais magro do que ontem!
Eu
me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse
tanto com a vida dos outros.
Fazia-se
de desentendido e, no dia seguinte, encontrava-o novamente no seu
posto, a repetir-me que o homenzinho continuava definhando.
—
Impossível — eu retrucava —, o diabo
do magrela não tem mais como emagrecer!
— Pois
está emagrecendo.
Ainda
encontrava-me na cama, quando Artur entrou no meu quarto sacudindo os
braços, gritando:
—
Chama-se Anatólio!
Respondi
irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor!
Repentinamente
emudeceu. Da janela, surpreso e quieto, fez um gesto para que eu me
aproximasse. Em frente ao antigo hotel acabara de parar um automóvel
e dele desceu uma bonita moça. Ela mesma retirou a bagagem do carro.
Com uma chave, que trazia na bolsa, abriu a porta da casa, sem que
ninguém aparecesse para recebê-la.
Impelido
pela curiosidade, meu irmão não me dava folga:
— Por
que ela não apareceu antes? Ele não é solteiro?
— Ora,
que importância tem uma jovem residir com um celibatário?
Por
mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obsessão, Artur
arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se
ocultava, não dava sinal da sua permanência na casa. Ele, porém,
se recusava a aceitar a hipótese de que ela tivesse ido embora e se
negava a discutir o problema comigo:
—
Curioso, o homem se definha e é a mulher
que desaparece!
Três
meses mais tarde, de novo abriu-se a porta do casarão para dar
passagem à moça. Sozinha, como viera, carregou as malas consigo.
— Por
que segue a pé? Será que o miserável lhe negou dinheiro para o
táxi?
Com
a partida da jovem, Artur retornou ao primitivo interesse pelo magro
Anatólio. E, rangendo os dentes, repetia:
—
Continua emagrecendo.
Por
outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos
decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto pelo
magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas
preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe
provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o
nosso enigmático vizinho.
Surgia
à hora marcada. O olhar vago, o boné enterrado na cabeça, às
vezes mostrava um sorriso escarninho.
*
* *
Eu
não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. Contudo, foi
Artur que me chamou a atenção para um detalhe:
— Ele
está ficando transparente.
Assustei-me.
Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no
interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos
e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta,
cerrada somente de um dos lados.
Também
Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio
tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam
rapidamente, enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo:
— Olha!
De tão magro, só tem perfil. Amanhã desaparecerá.
Às
cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na
varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para
emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça,
escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse
sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu
a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu recuava
atemorizado.
Por
instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar.
Menos que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado,
deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e
incendiou-se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se
apagava no chão.
— Não
falei! — gritava Artur, exultante.
A
sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde ele
se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara
reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível,
murmurava:
— Não
falei, não falei.
Peguei-o
com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completamente.
Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bolinha negra, a
rolar na minha mão.
Murilo
Rubião, in Obra completa
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