“Nunca
somos tão infelizes como supomos, nem tão felizes como havíamos
esperado.”
quinta-feira, 30 de novembro de 2017
A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias...
A
infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas
magias
A regra pode-se enunciar assim: espera-se que a avó entre para descansar, depois vai-se pé ante pé ver se o avô está mesmo cochilando, na cadeira de balanço...
- ou estará MORTO?
… não, não está porque a cabeça des-ca-ca-c ... aiu num cochilo e se levantou de novo sozinho, assustado, dormindo e saiu uma língua da boca que lambeu o bigode branco e a cabeça foi, foi e des-ca-ca-ca-ca-caiu...
O corredor é a corrida geométrica natural para a fuga de uma gargalhada que não se contém. O avô é o mais engraçado dos homens, o avô é tão, tão, tão, tão, tão...
O medo se abate sobre o Descobridor. É a doçura do nome de Margarida, cujo retrato à meia-luz não entreviu.
A regra pode-se enunciar assim: espera-se que a avó entre para descansar, depois vai-se pé ante pé ver se o avô está mesmo cochilando, na cadeira de balanço...
- ou estará MORTO?
… não, não está porque a cabeça des-ca-ca-c ... aiu num cochilo e se levantou de novo sozinho, assustado, dormindo e saiu uma língua da boca que lambeu o bigode branco e a cabeça foi, foi e des-ca-ca-ca-ca-caiu...
O corredor é a corrida geométrica natural para a fuga de uma gargalhada que não se contém. O avô é o mais engraçado dos homens, o avô é tão, tão, tão, tão, tão...
O medo se abate sobre o Descobridor. É a doçura do nome de Margarida, cujo retrato à meia-luz não entreviu.
Vinicius
de Moraes
Obstáculo
“Perante
um obstáculo, a linha mais curta entre dois pontos pode ser a
curva.”
Bertolt
Brecht
A verdadeira religiosidade
O
que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério. É
este o sentimento fundamental que se detém junto ao berço da
verdadeira arte e da ciência. Quem nunca o experimentou nem sabe já
admirar-se ou espantar-se. Pode considerar-se como morto, sem luz,
totalmente cego! A vivência do mistério — embora com laivos de
temor — criou também a religião. A consciência da existência de
tudo quanto para nós é impenetrável, de tudo quanto é
manifestação da mais profunda razão e da mais deslumbrante beleza
e, que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais
primitivas, essa consciência, esse sentimento, constituem a
verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e em mais nenhum, pertenço
à classe dos homens profundamente religiosos. Não posso conceber um
Deus que recompense e castigue os objetos da sua criação, ou que
tenha vontade própria, de puro arbítrio no gênero da que nós
sentimos dentro de nós. Nem tão-pouco consigo imaginar um indivíduo
que sobreviva à sua morte corporal; as almas fracas que alimentem
tais pensamentos fazem-no por medo ou por egoísmo ridículo. A mim
basta-me o mistério da eternidade da vida, a consciência e o
pressentimento da admirável elaboração do ser, assim como o
humilde esforço para compreender uma partícula, por mais pequena
que seja, da razão que se manifesta na natureza.
Albert
Einstein, in Como vejo o mundo
Premonitório
Do
fundo de Pernambuco, o pai mandou-lhe um telegrama:
Não
saia casa 3 outubro abraços.
O
rapaz releu, sob emoção grave. Ainda bem que o velho avisara: em
cima da hora, mas avisara. Olhou a data: 28 de setembro. Puxa vida,
telegrama com a nota de urgente, levar cinco dias de Garanhuns a Belo
Horizonte! Só mesmo com uma revolução esse telégrafo endireita. E
passado às sete da manhã, veja só; o pai nem tomara o mingau com
broa, precipitara-se na agência para expedir a mensagem.
Não
havia tempo a perder. Marcara encontros para o dia seguinte, e
precisava cancelar tudo, sem alarde, como se deve agir em tais
ocasiões. Pegou o telefone, pediu linha, mas a voz de d. Anita não
respondeu. Havia tempo que morava naquele hotel e jamais deixara de
ouvir o “pois não” melodioso de d. Anita, durante o dia. A voz
grossa, que resmungara qualquer coisa, não era de empregado da casa;
insistira: “como é?”, e a ligação foi dificultosa, havia
besouros na linha. Falou rapidamente a diversas pessoas, aludiu a uma
ponte que talvez resistisse ainda uns dias, teve oportunidade de
escandir as sílabas de arma virumque cano,
disse que achava pouco cem mil unidades, em tal emergência, e
arrematou: “Dia 4 nós conversamos”. Vestiu-se, desceu. Na
portaria, um sujeito de panamá bege, chapéu de aba larga e sapato
de duas cores levantou-se e seguiu-o. Tomou um carro, o outro fez o
mesmo. Desceu na praça da Liberdade e pôs-se a contemplar um ponto
qualquer. Tirou do bolso um caderninho e anotou qualquer coisa. Aí,
já havia dois sujeitos de panamá, aba larga e sapato bicolor,
confabulando a pequena distância. Foi saindo de mansinho, mas os
dois lhe seguiram na cola. Estava calmo, com o telegrama do pai
dobrado na carteira, placidez satisfeita na alma. O pai avisara a
tempo, tudo correria bem. Ia tomar a calçada quando a baioneta em
riste advertiu: “Passe de largo”; a Delegacia Fiscal estava
cercada de praças, havia armas cruzadas nos cantos. Nos Correios, a
mesma coisa, também na Telefônica. Bondes passavam escoltados.
Caminhões conduziam tropa, jipes chispavam. As manchetes dos jornais
eram sombrias; pouca gente na rua. Céu escuro, abafado, chuva
próxima.
Pensando
bem, o melhor era recolher-se ao hotel; não havia nada a fazer.
Trancou-se no quarto, procurou ler, de vez em quando o telefone
chamava: “Desculpe, é engano”, ou ficava mudo, sem desligar.
Dizendo-se incomodado, jantou no quarto, e estranhou a camareira, que
olhava para os móveis como se fossem bichos. Deliberou deitar-se,
embora a noite apenas começasse. Releu o telegrama, apagou a luz.
Acordou
assustado, com golpes na porta. Cinco da manhã. Alguém o convidava
a ir à Delegacia de Ordem Política e Social. “Deve ser engano.”
“Não é não, o chefe está à espera.” “Tão cedinho? Precisa
ser hoje mesmo? Amanhã eu vou.” “É hoje e é já.”
“Impossível.” Pegaram-lhe dos braços e levaram-no sem polêmica.
A cidade era uma praça de guerra, toda a polícia a postos. “O
senhor vai dizer a verdade bonitinho e logo” — disse-lhe o chefe.
— “Que sabe a respeito do troço?” “Não se faça de bobo, o
troço que vai estourar hoje.” “Vai estourar?” “Não sabia? E
aquela ponte que o senhor ia dinamitar mas era difícil?” “Doutor,
eu falei a meu dentista, é um trabalho de prótese que anda abalado.
Quer ver? Eu tiro.” “Não, mas e aquela frase em código muito
vagabundo, com palavras que todo mundo manja logo, como arma e cano?”
“Sou professor de latim, e corrigi a epígrafe de um trabalho.”
“Latim, hem? E a conversa sobre os cem mil homens que davam para
vencer?” “São unidades de penicilina que um colega tomou para
uma infecção no ouvido.” “E os cálculos que o senhor fazia
diante do palácio?” Emudeceu. “Diga, vamos!” “Desculpe, eram
uns versinhos, estão aqui no bolso.” “O senhor é esperto, mas
saia desta. Vê este telegrama? É cópia do que o senhor recebeu de
Pernambuco. Ainda tem coragem de negar que está alheio ao golpe?”
“Ah, então é por isso que o telegrama custou tanto a chegar?”
“Mais custou ao país, gritou o chefe. Sabe que por causa dele as
Forças Armadas ficaram de prontidão, e que isso custa cinco mil
contos? Diga depressa.” “Mas, doutor…” Foi levado para outra
sala, onde ficou horas. O que aconteceu, Deus sabe. Afinal, exausto,
confessou: “O senhor entende conversa de pai pra filho? Papai
costuma ter sonhos premonitórios, e toda a família acredita neles.
Sonhou que me aconteceria uma coisa no dia 3, se eu saísse de casa,
e telegrafou prevenindo. Juro!”.
Dia
4, sem golpe nenhum, foi mandado em paz. O sonho se confirmara:
realmente, não devia ter saído de casa.
Carlos
Drummond de Andrade, in
70 historinhas
Euclides da Cunha: um iluminado
Para
Renan de Freitas Pinto
Um
dos mitos que alguns escritores inventam para si mesmos é o do
leitor precoce. Antes mesmo de bater uma pelada ou de brincar de
cabra-cega, certas crianças — meninos e meninas letrados — já
leram trechos de Proust ou de uma tragédia grega. Quanta
precocidade! Melhor viver intensamente a infância e a juventude, e
ler os clássicos no momento adequado.
Não
fui um leitor precoce. Mas, por obrigação, tive de ler capítulos
d’ Os sertões antes dos quinze anos de idade. Foi literalmente um
castigo, um ato de punição disciplinar de um professor de
literatura, admirador do Divino Marquês. Ainda bem que no sorteio
dos capítulos que seriam lidos e fichados tirei a última parte do
livro, cuja leitura me fascinou. Nessas páginas d’ Os sertões há
grandes personagens de uma batalha extremamente desigual. O que
aconteceu em Canudos foi uma guerra de extermínio. Hoje, seria
considerado um verdadeiro “genocídio”, como assinalou Walnice
Nogueira Galvão num artigo publicado no Estado de S. Paulo
(Cultura, 26/07/2009).
Euclides,
republicano convicto, percebeu uma das faces mais bárbaras e atrozes
da República, que, no entanto, usava a máscara da civilização.
Positivista, crente no progresso, na justiça e nos avanços da
ciência, o escritor viu nos seringais do Purus “a mais criminosa
organização do trabalho que engenhou o mais desaçamado egoísmo”.
Nesse mesmo artigo (“Terra sem história”), ressaltou a “urgência
de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do
trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que
lhe cerceie os desmandos…”
Um
século depois, tempo suficiente para que a República salvasse a
sociedade obscura e abandonada, não sei o que Euclides diria sobre a
prostituição infantil, milhões de trabalhadores sem carteira
assinada, trabalho escravo, o massacre do Carandiru, o assassinato de
Chico Mendes e outros líderes de seringueiros, e a impunidade de
tantos políticos indecorosos.
Sem
dúvida Euclides foi um gênio verbal. Para o crítico Antonio
Candido, a força expressiva da linguagem, aliada a uma intuição
poderosa, fazem do escritor um iluminado, muito mais que um
sociólogo. Augusto Meyer notou que Euclides “dramatiza tudo, a
tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”.
E Gilberto Freyre apontou no estilo euclidiano a “obsessão quase
bizantina do escultural […] e da tendência ao monumentalismo que
quase nunca o abandona”. De fato, algumas das passagens mais
notáveis d’Os sertões evocam combatentes e animais
imobilizados em pose patética depois da morte, como se fossem
estátuas sinistras no palco macabro da batalha.
Não
menos comovente é o texto “Judas-Asvero”, do livro À margem
da História, que reúne seus ensaios amazônicos. Nesse belo
relato, a desforra dos seringueiros do Alto Purus — uma vingança
contra Deus e o mundo — é materializada numa escultura moldada com
gestos inventivos por mãos de artistas anônimos. “Judas-Asvero”
é um ponto alto da prosa euclidiana, pois nele estão ausentes o
determinismo climático e as teorias raciais, dois anacronismos
compreensíveis na obra de um escritor brasileiro do século XIX.
Euclides
relutou em publicar “Judas-Asvero” por considerá-lo pitoresco
demais. Coelho Neto, que convenceu o amigo a mudar de ideia, teria
dito: “Isto é uma das melhores coisas que você escreveu”.
Infelizmente
a linha reta da engenharia e do positivismo, e a crença cega no
progresso e na “civilização” turvaram um pouco a visão e a
análise histórico-social de Euclides sobre o Brasil. Uma dose de
descrença e desconfiança faz bem quando se luta por uma “justiça
austera” e por uma sociedade mais justa e civilizada. As tenebrosas
transações (como diz uma canção de Chico Buarque) seguem seu
curso impunemente, escudadas pela imunidade de tantos representantes
dos poderes da República.
Joseph
Conrad, contemporâneo de Euclides, foi mais reticente quanto às
grandes conquistas da ciência; foi também menos eufórico com a
ideia de civilização, e pouco entusiasmado com a perspectiva de uma
sociedade mais justa. Ele, que escreveu uma das obras mais críticas
aos horrores do colonialismo europeu na África, sabia que a nobreza
da alma humana era uma quimera, que os interesses econômicos e
políticos enterram as boas intenções, e que o coração é, muitas
vezes, envolto por trevas.
Numa
de suas Notas sobre vida e literatura, Conrad escreveu: “A
vida e a arte seguem trilhas obscuras e não vão enveredar pela
região luminosa da ciência”.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Nova Iorque
Karl
desconhece a eletricidade e, neste momento, com o corpo ainda
ofendido, sabe apenas que não a quer voltar a ter dentro de si. Que
o prodígio se detenha por luzes e máquinas, longe das entranhas e
dos músculos que tão bem passam sem confusões adicionais.
Ao
longo da tarde vai sentido ainda espasmos: nas pernas, nos braços,
no pescoço. Lentamente estes vão-se tornando mais raros e, a meio
da tarde, já quase não se fazem sentir, apenas o braço direito
continua a fugir-lhe ao controlo quando menos espera; parece-lhe até
que começou a tremer mais, como se os espasmos tivessem diminuído
de intensidade e aumentado de frequência, tornando-se contínuos. As
últimas janelas são limpas com a mão esquerda, que a outra não
lhe merece confiança.
Pensa
em queixar-se ao homem do fato e pedir-lhe mais dinheiro por danos
aos nervos, mas não o faz, de resto é pouco provável que o
encontre, neste momento será já outra a plateia e outro o vendedor.
Sente-se
levemente ingênuo por arriscar tanto por um dólar, depois
apercebe-se de que trabalha a oitenta metros do solo e há quem
pesque em alto mar, quem coma do pugilato e quem escolha a vida
militar. As cidades estão cheias de gente que arrisca muito por
pouco e Nova Iorque parece um congresso.
Quando
acaba de limpar a última janela, detém-se por alguns momentos a
olhar a cidade lá em baixo. Dali sente-se capaz de pensar coisas
novas, de ver longe e de descobrir significados até aí ocultos. Na
verdade nada disso acontece, talvez por não estar habituado a pensar
coisas novas, talvez porque Nova Iorque não permita que se pense
muito.
Entra
então no edifício e arruma as suas coisas. É sábado e tem algum
dinheiro no bolso, apetece-lhe divertir-se, foi uma semana em que se
manteve vivo e a trabalhar, irá procurar algum prazer que possa
trocar por moedas. Comer, beber, uma mulher, talvez, que mais há?
Entra
no elevador e vê-o encher-se a cada piso. São lugares democráticos
os elevadores, no mesmo espaço juntam-se fatos-macaco e casacos de
bom corte e, apesar da diferença, são só pano que separa a pele do
trabalho. O cheiro é também diferente e a colônia dos senhores,
misturada com o tabaco de cachimbo, lembram-lhe o pai e a vida que
deixou.
Fora,
as ruas vão cheias de gente livre, há diversas correntes que se
entrecruzam e vão desaguar em pontos distintos da cidade. Há quem
se deixe levar para casa, para os bairros residenciais e os
quarteirões de imigrantes, e quem vá atrás das luzes como insetos
que se querem queimar. Enchem-se os restaurantes, os cabarés, os
bares, as tascas clandestinas, os casinos ilegais e os bordéis.
Também Karl andará atrás das luzes, ainda inseguro de quanto está
disposto a queimar-se. O braço incomoda-o, será preciso adormecê-lo
a qualquer custo.
Nuno
Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros
Bilo-bilo
O
idiota estilo bilo-bilo com que os adultos se dirigem às crianças,
isso deve chateá-las enormemente, como a um poeta quando abordado
com assuntos “poéticos”.
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
Qunado descobri sobre "aquilo"
Eu
estava na quarta série quando descobri sobre aquilo. Eu era
provavelmente o último a saber, porque continuava não falando com
os outros. Um garoto se aproximou de mim enquanto eu vagava durante o
recreio.
– Você
não sabe como aquilo acontece? – perguntou.
–
Aquilo o quê?
–
Foder.
– O
que é isso?
– Sua
mãe tem um buraco... – ele juntou o polegar e o indicador da mão
direita e fez um círculo – e seu pai tem um pinto... – pegou o
indicador esquerdo e começou a enfiá-lo para frente e para trás
dentro do buraco. – Então o pinto do seu pai espirra um suco e às
vezes sua mãe tem um bebê e às vezes não.
– Deus
faz os bebês – eu disse.
– Assim
como a merda – disse o garoto e se afastou.
Era
difícil para mim acreditar. Quando o recreio ter minou, me sentei na
sala de aula e fiquei pensando no assunto. Minha mãe tinha um buraco
e meu pai tinha um pinto que espirrava suco. Como eles podiam ter
coisas como essas e continuar caminhando como se tudo fosse normal,
conversando sobre banalidades, e então fazer aquilo e não contar
nada para ninguém? Sentia realmente vontade de vomitar quando
encarava a ideia de ter começado a partir do suco do meu pai.
Naquela
noite, após as luzes se apagarem, fiquei acordado na cama,
escutando. Com certeza, comecei a ouvir sons. A cama deles começou a
ranger. Podia ouvir o barulho das molas. Levantei-me e fui, na ponta
dos pés, até junto à porta do quarto deles e fiquei escutando. A
cama seguia produzindo ruídos. Então parou. Corri de volta pelo
corredor para dentro do meu quarto. Ouvi minha mãe entrar no
banheiro. Escutei a descarga e depois seus passos se afastando.
Que
coisa terrível! Não importava que fizessem aquilo em segredo! E
pensar que todo mundo fazia isso! Os professores, o diretor, todo
mundo! Era algo realmente estúpido. Então pensei em fazê-lo com
Lila Jane, e a estupidez que era evidente já não me pareceu tão
evidente assim.
No
dia seguinte, durante a aula, passei o tempo todo com isso na cabeça.
Olhava para as garotinhas e me imaginava fazendo com elas. Faria com
todas elas e teríamos bebês, eu encheria o mundo de caras como eu,
grandes jogadores de beisebol, marcadores de home runs.
Naquele dia, logo antes da aula terminar, a professora, sra.
Westphal, disse:
–
Henry, você poderia ficar mais um pouco?
A
sineta tocou, e as outras crianças foram embora. Fiquei sentado e
esperei. A sra. Westphal corrigia uns papéis. Pensei: talvez ela
queira fazer comigo. Me imaginei erguendo o vestido dela e olhando
para o seu buraco.
– Tudo
bem, sra. Westphal, estou pronto.
Ela
ergueu os olhos das folhas.
– Está
certo, Henry. Em primeiro lugar, apague todos os quadros-negros.
Depois leve os apagadores até a rua e tire o pó deles.
Fiz
o que me mandou, então voltei a sentar na minha classe. A sra.
Westphal continuava lá, corrigindo os papéis. Ela estava com um
vestido azul apertado, grandes argolas douradas nas orelhas, tinha um
nariz pequeno e usava óculos sem armação. Esperei e esperei.
Então, eu disse:
– Sra.
Westphal, por que a senhora me manteve aqui depois da aula?
Ergueu
o rosto e me encarou. Seus olhos eram verdes e profundos.
–
Mantive-o até mais tarde porque às
vezes você é mau.
– Ah,
é? – sorri.
A
sra. Westphal me olhou. Tirou seus óculos e continuou me encarando.
Suas pernas estavam ocultas pela mesa. Eu não podia ver seu vestido.
– Você
estava muito desatento hoje, Henry.
– É?
– E
não fale comigo desse jeito. Você está se dirigindo a uma dama!
– Oh,
claro...
– Não
seja insolente comigo!
– Como
a senhora quiser.
Ela
se levantou e saiu detrás de sua mesa. Caminhou por entre as classes
e sentou-se sobre a mesa à minha frente. Tinha pernas maravilhosas,
longas, cobertas por meias de seda. Sorriu para mim, esticou uma das
mãos e tocou num dos meus pulsos.
– Seus
pais não lhe dão muito amor, não é verdade?
– Não
preciso desse tipo de coisa – respondi.
–
Henry, todos precisam ser amados.
– Não
preciso de nada.
– Pobre
garoto.
Ficou
de pé, veio até minha classe e tomou devagar minha cabeça entre
suas mãos. Curvou-se e me estreitou contra os seios. Estiquei-me e
enlacei suas pernas.
–
Henry, você precisa parar de brigar com
todo mundo! Queremos ajudá-lo.
Agarrei
as pernas da sra. Westphal com mais força.
– Tudo
bem – eu disse –, vamos trepar!
– O
que você disse?
– Eu
disse vamos trepar!
Olhou-me
por um longo tempo.
–
Henry, nunca vou dizer para
ninguém o que você me disse, nem para o diretor, nem para seus
pais, para ninguém. Mas eu nunca mais, nunca mais quero que
você me diga isso outra vez, entende?
–
Entendo.
– Tudo
bem. Você pode ir para casa agora.
Levantei
e caminhei em direção à porta. Quando a abri, a sra. Westphal
disse:
– Boa
tarde, Henry.
– Boa
tarde, sra. Westphal.
Segui
pela rua pensando no acontecido. Senti que ela estava a fim de
trepar, mas tinha medo por eu ser jovem demais para ela, medo de que
meus pais e o diretor pudessem descobrir. Tinha sido excitante ficar
sozinho com ela na sala vazia. Essa coisa de trepar era bacana. Dava
às pessoas mais coisas em que pensar.
Eu
precisava cruzar uma grande avenida para chegar em casa. Peguei a
faixa de pedestres. Subitamente, um carro veio para cima de mim. Não
diminuiu a velocidade. Vinha selvagemente desgovernado. Tentei sair
do caminho, mas o carro parecia me seguir. Vi os faróis, as rodas, o
pára-choque. O carro me acertou e depois foi tudo escuridão…
Charles
Bukowski, in Misto-quente
terça-feira, 28 de novembro de 2017
Retrato do artista quando coisa
Borboletas já
trocam as árvores por mim.
Insetos
me desempenham.
Já
posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os
silêncios me praticam.
De
tarde um dom de latas velhas se atraca
em
meu olho
Mas
eu tenho predomínio por lírios.
Plantas
desejam a minha boca para crescer
por
de cima.
Sou
livre para o desfrute das aves.
Dou
meiguice aos urubus.
Sapos
desejam ser-me.
Quero
cristianizar as águas.
Já
enxergo o cheiro do sol.
Manoel
de Barros
Não lemos o mundo, os outros
Falamos
em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso
comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se
a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais
climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida.
Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do
nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o
déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não
lemos os outros.
Vale
a pena ler livros ou ler a Vida quando o ato de ler nos converte num
sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens.
Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar
histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos
parece reinar apenas silêncio?
Mia
Couto, in E se Obama fosse
africano?
RSVP - Ideia para uma peça
No
palco uma mesa posta para 13 pessoas. Copos, pratos e talheres
rústicos, grossas velas toscas e na frente de cada lugar um
cartãozinho com o nome de quem deve sentar ali. Ninguém no palco.
Da
esquerda aparece um mordomo seguido de um casal elegantemente
vestido. O casal entra em cena visivelmente inseguro, olhando para
todos os lados. O mordomo anuncia que os outros não demorarão a
chegar e diz para o casal ficar à vontade. Se quiserem, podem beber
água da moringa. O mordomo sai de cena. O casal se entreolha.
Ela
diz, num cochicho:
— Onde
nós estamos?
Ele,
cochichando também:
— E
eu sei?
— Olhe
o convite de novo.
O
homem tira o convite do bolso do smoking e o examina pela décima
vez. O convite ainda diz a mesma coisa.
— Só
a data, a hora, o endereço e, embaixo, “RSVP”.
— Esse
“RSVP” é que é a chave de tudo. Deve ser as iniciais de alguma
coisa.
— Mas
do quê?
—
“Reunião dos...” Sei lá.
—
Podemos estar no jantar errado.
— Mas
o mordomo viu o convite e nos deixou entrar.
— Olhe
os cartõezinhos para ver se os nossos nomes estão aí.
Ela
(lendo):
—
“João”, “Tiago”, “Pedro”...
Ele
(lendo):
—
“Mateus”, “Simão”, “Judas”...
— Viu?
Nossos nomes não estão aqui. Estamos no lugar errado.
—
“Jesus”!
— Que
foi?
— Neste
cartãozinho. Está escrito “Jesus”!
Lentamente,
eles se dão conta do que isto significa. Fazem a volta na mesa, um
para cada lado, lendo os cartõezinhos outra vez. Se reencontram no
meio da mesa.
— Aí
está — diz ele. — Jesus ao lado de Pedro.
Os
dois se encaram, de olhos arregalados e boca aberta. Finalmente ele
consegue falar.
— As
letras...
— Que
letras?
— Na
cruz. Em cima da cabeça de Jesus Cristo. Não eram...
— RSVP!
Ele
toma uma decisão:
— Vamos
embora.
—
Espera. E se a gente ficasse para...
— Está
maluca? Isto aqui acaba mal. Não vamos nos meter nesta confusão.
—
Mas...
— Olhe,
o jantar vai ser horrível, acredite. Só pão ázimo, vinho barato e
conversa de homem. Você seria a única mulher. Iria se sentir
deslocada.
— Sim,
mas...
— E
eles obviamente não estão nos esperando. Pense no vexame.
A
mulher se convence. Tudo, menos uma gafe social. Os dois saem
furtivamente do palco.
Luís
Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis
Os galos da tardinha
Assanhamento
de cigarras, próprio à minha janela, no dia 17 de janeiro, de um
ano que mais não sei. À tarde, às 6 e 30, de repente, todas
comparecem a se assar. As cigarras se descascam, novinhas. E como que
cantam, em hirta mentira, estridem. Longo tempo azucrinam,
maquinazinhas; penteiam algo. Eu tinha de ouvi-las, no consciencio.
Em
crescendo. Em vários níveis. Tantos ésses, no febril! Cada uma é
um ponto de laminação carretel, vapor, fervor, orifício. Muitas se
acertam, se acirram, insistidíssimas. Umas são mais secas. Calam-se
a um tempo, repentinas. Cada uma despejou seu chio, parou, pôs-se a
rolha. Outras, longas, retomam-se. Aquele concerto se aproxima. Elas
são os galos da tardinha. São ondas. (As de longe: remoinho;
teimosia. As perto: é mesmo zizio.) Não cantam, nem gritam
entre-dentes, nervosinhas. Sabe-se só os machos é que fretinem —
o zinir, o frinir, o confricar dos abdomes membranosos: o cio, cio,
cio.
Depois,
não sei porque, ficou uma, apenas, cega-rega, a bolha de seu canto
rebentava. Ela, atrás de mim, dispara: é uma cigarra suíça, e
nova. Para zoar seu sobre si, precisa de se dar muito motor.
Desmancha a barriga, de barulhar. É uma cigarra trissílaba. É uma
cigarra frigideira. Mas paroxística. Uma cigarra que até cacareja.
Quando ela para, dói na gente. Vai-se até ao coraçãozinho dela,
dentro de um susto.
Deve
ser uma conhecida, que há dias salvei das patas da gata. Antes
dizer: Xizinha já a dentara, abocanhada. E como ela grinchava, de
horror, doida fortemente, estridulantérrima. Era um alarme terrível.
Nenhum bicho se defende mais braviamente a brados, nem pede tão
endiabrado socorro, quando nessas inóspitas e urgentes condições.
Vem de sua notória longevidade esse medo frenético de morrer?
Livrando-a
dos leves dentes de Xizinha, tive-a um instante, fremente, na mão.
Essa era como as outras: a grossa cigarra de asas escritas, asas
nervosas, as de cima mais compridas, manchas pretas nas costas, a
cabeça larga, curta, vertical — feia, bela, horrenda. Cigarra de
ferro, renha cigarra: como a beleza de teus sons te envolve!
Nem
me agradeceu. Perguntei, repreendendo-a:
— Por
que você grita tão exagerada?
E:
— O
Senhor não Acha que a Vida Mesma é que é um Exagero? — foi
sua terminante resposta.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
segunda-feira, 27 de novembro de 2017
Parecia uma coisa impossível
John
Bante foi submetido a mais uma operação, outra operação. Haviam
começado o processo todo ao lhe cortarem um pé, depois o outro.
Depois foram seguindo pernas acima. Creio que ele teria morrido caso
não se submetesse a esses procedimentos, mas esta escolha não me
parecia muito melhor do que a primeira.
Mary
me ligou dizendo que ele estava de volta em casa e que gostariam que
fôssemos jantar com eles.
– Vamos
beber um pouco de vinho – ela me disse. Marcamos uma data.
Quando
chegamos, Bante já estava sentado à mesa. Estava na cadeira de
rodas. Aquilo foi muito mais agradável do que vê-lo estendido sob
um lençol. Seu filho, Harry, e a mulher dele, Nana, também tinham
comparecido. Mary nos apresentou. Sentamos e Mary nos serviu de
vinho.
– Vou
tomar um cálice com você, Chinaski – disse John.
– É
uma honra...
Erguemos
as taças.
– Que
tal o gosto, Chinaski?
– Está
ótimo, Bante.
– Harry
e Nana têm lido seus livros. Agora estão viciados.
–
Recebi meus ensinamentos de um mestre, um
tal John Bante.
– Você
teria conseguido, de um jeito ou de outro.
– Tomei
emprestado parte do seu estilo. Mas, diabos, nossos conteúdos são
diferentes, John. Você escreve como uma boa alma; eu tenho um lado
mais cretino.
– Você
está certo. Tome um pouco mais de vinho. Mary, cuide para que
Chinaski seja bem servido.
Em
seguida, Mary, auxiliada por Nana, trouxe o jantar. Nana havia feito
a comida. O jantar foi preparado com capricho. Comemos sem alarde,
fazendo breves comentários. Então terminamos e mais vinho foi
servido.
– Vou
tomar mais um cálice com você, Chinaski! Esta é minha grande
noite!
– Mas
tem que ser o último mesmo – disse Mary.
– Ouvi
dizer que vocês circulam ali pelo Musso’s – disse John.
–
Costumávamos ir lá uma vez por semana
quando morávamos para aqueles lados – disse Alta. – Agora que
estamos em San Pedro, não vamos tão seguido.
– Vocês
deviam tentar o Chasen’s – disse Bante.
– Muito
chique para mim – admiti.
John
estava na segunda taça de vinho. Era como se ressurgisse. Achei isso
ótimo. Eu podia sentir a vida retornando ao seu corpo.
– Eu
ia muito ao Musso’s. Certo dia, estava sentado numa mesa
quando meu escritor favorito entrou. Big Red. Você sabe quem era Big
Red?
–
Não...
–
Sinclair Lewis.
– Jesus
Cristo!
– Mas
eu não disse mais nada além disso. Sinclair Lewis não estava na
minha lista.
– Ei,
o que é isso que você está fumando? Tem um cheiro engraçado!
– É
um cigarro que vem da Índia. Não tem nicotina, mas vai muito bem
com vinho.
– Posso
fumar um?
Olhei
para Mary. Ela me acenou um “sim”. Acendi um e coloquei-o em sua
mão. Alta fez a volta com um cinzeiro.
– Aqui
está o cinzeiro, John. Consegue sentir?
– Sim,
obrigado. Como eu ia dizendo, estava lá sentado e Big Red entrou.
Veja bem, era como enxergar um Deus, está entendendo?
– Sim,
claro – respondi.
– O
que importa é que ele sentou numa mesa com essas duas mulheres e
eles fizeram o pedido. Eu era só um garoto, sabe, e estava ali...
sentado no mesmo ambiente que Sinclair Lewis... Trouxeram-lhe uma
garrafa de vinho e ele e as mulheres beberam. Ali estava ele, sentado
tão perto, Big Red. Parecia uma coisa impossível. Não queria
incomodá-lo. Tentei me conter, mas não consegui. Eu estava lá
sozinho. Tinha um caderno comigo e fingia trabalhar num roteiro de
cinema. Mas odiei aquilo. Havia muitas páginas em branco. Arranquei
uma delas e caminhei na direção de Sinclair Lewis. Parei diante de
sua mesa. Ele falava com uma das mulheres... Acho que o cigarro
indiano apagou...
Alta
se levantou e reacendeu o cigarro com o isqueiro.
–
Qualquer coisa apagam, sabe, é que não
têm produtos químicos.
–
Obrigado, Alta... Mas como eu ia dizendo,
fiquei ali parado e disse: “Me perdoe, sr. Lewis...” Ele olhou
para cima. As mulheres também me olharam. “Sou escritor. Meu nome
é John Bante. Há muito tempo que o senhor é meu escritor favorito.
Não quero, de modo algum, incomodá-lo, mas aqui estou. Gostaria de
saber se o senhor me daria seu autógrafo nesta folha de papel?”
Houve
uma pausa. John tomou o último gole de seu vinho. Era como se ele
estivesse de volta ao Musso’s, plantado diante da mesa de
Big Red. Então continuou:
–
Sinclair Lewis agiu como se eu não
estivesse ali. Ignorou o pedaço de papel que eu lhe estendia e
começou a conversar com as mulheres novamente.
– Mas
que filho da puta!
–
Voltei para a minha mesa e fiquei
pensando no que tinha acontecido. Quanto mais eu pensava, pior me
sentia. Big Red me dera um gelo. Chamei o garçom e paguei minha
conta. Então voltei até a mesa de Lewis. Ele olhou para mim.
“Escute, seu merda, sou publicado pela mesma editora que você.
Talvez L. H. Renkin ficasse feliz em saber o cretino que você é!”
Então caminhei em direção à saída. Dei uma olhada para trás e
vi que ele se levantava da mesa para me seguir. Saí em direção à
rua de trás, pulei no meu carro e me escondi. Vi quando ele surgiu
correndo, à minha procura. Ele parecia aterrorizado. Mas não tinha
jeito de ele me achar. Ficou parado por algum tempo, depois voltou
para dentro. Tinha feito ele se borrar nas calças!
Charles
Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho
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