Para
Renan de Freitas Pinto
Um
dos mitos que alguns escritores inventam para si mesmos é o do
leitor precoce. Antes mesmo de bater uma pelada ou de brincar de
cabra-cega, certas crianças — meninos e meninas letrados — já
leram trechos de Proust ou de uma tragédia grega. Quanta
precocidade! Melhor viver intensamente a infância e a juventude, e
ler os clássicos no momento adequado.
Não
fui um leitor precoce. Mas, por obrigação, tive de ler capítulos
d’ Os sertões antes dos quinze anos de idade. Foi literalmente um
castigo, um ato de punição disciplinar de um professor de
literatura, admirador do Divino Marquês. Ainda bem que no sorteio
dos capítulos que seriam lidos e fichados tirei a última parte do
livro, cuja leitura me fascinou. Nessas páginas d’ Os sertões há
grandes personagens de uma batalha extremamente desigual. O que
aconteceu em Canudos foi uma guerra de extermínio. Hoje, seria
considerado um verdadeiro “genocídio”, como assinalou Walnice
Nogueira Galvão num artigo publicado no Estado de S. Paulo
(Cultura, 26/07/2009).
Euclides,
republicano convicto, percebeu uma das faces mais bárbaras e atrozes
da República, que, no entanto, usava a máscara da civilização.
Positivista, crente no progresso, na justiça e nos avanços da
ciência, o escritor viu nos seringais do Purus “a mais criminosa
organização do trabalho que engenhou o mais desaçamado egoísmo”.
Nesse mesmo artigo (“Terra sem história”), ressaltou a “urgência
de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do
trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que
lhe cerceie os desmandos…”
Um
século depois, tempo suficiente para que a República salvasse a
sociedade obscura e abandonada, não sei o que Euclides diria sobre a
prostituição infantil, milhões de trabalhadores sem carteira
assinada, trabalho escravo, o massacre do Carandiru, o assassinato de
Chico Mendes e outros líderes de seringueiros, e a impunidade de
tantos políticos indecorosos.
Sem
dúvida Euclides foi um gênio verbal. Para o crítico Antonio
Candido, a força expressiva da linguagem, aliada a uma intuição
poderosa, fazem do escritor um iluminado, muito mais que um
sociólogo. Augusto Meyer notou que Euclides “dramatiza tudo, a
tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”.
E Gilberto Freyre apontou no estilo euclidiano a “obsessão quase
bizantina do escultural […] e da tendência ao monumentalismo que
quase nunca o abandona”. De fato, algumas das passagens mais
notáveis d’Os sertões evocam combatentes e animais
imobilizados em pose patética depois da morte, como se fossem
estátuas sinistras no palco macabro da batalha.
Não
menos comovente é o texto “Judas-Asvero”, do livro À margem
da História, que reúne seus ensaios amazônicos. Nesse belo
relato, a desforra dos seringueiros do Alto Purus — uma vingança
contra Deus e o mundo — é materializada numa escultura moldada com
gestos inventivos por mãos de artistas anônimos. “Judas-Asvero”
é um ponto alto da prosa euclidiana, pois nele estão ausentes o
determinismo climático e as teorias raciais, dois anacronismos
compreensíveis na obra de um escritor brasileiro do século XIX.
Euclides
relutou em publicar “Judas-Asvero” por considerá-lo pitoresco
demais. Coelho Neto, que convenceu o amigo a mudar de ideia, teria
dito: “Isto é uma das melhores coisas que você escreveu”.
Infelizmente
a linha reta da engenharia e do positivismo, e a crença cega no
progresso e na “civilização” turvaram um pouco a visão e a
análise histórico-social de Euclides sobre o Brasil. Uma dose de
descrença e desconfiança faz bem quando se luta por uma “justiça
austera” e por uma sociedade mais justa e civilizada. As tenebrosas
transações (como diz uma canção de Chico Buarque) seguem seu
curso impunemente, escudadas pela imunidade de tantos representantes
dos poderes da República.
Joseph
Conrad, contemporâneo de Euclides, foi mais reticente quanto às
grandes conquistas da ciência; foi também menos eufórico com a
ideia de civilização, e pouco entusiasmado com a perspectiva de uma
sociedade mais justa. Ele, que escreveu uma das obras mais críticas
aos horrores do colonialismo europeu na África, sabia que a nobreza
da alma humana era uma quimera, que os interesses econômicos e
políticos enterram as boas intenções, e que o coração é, muitas
vezes, envolto por trevas.
Numa
de suas Notas sobre vida e literatura, Conrad escreveu: “A
vida e a arte seguem trilhas obscuras e não vão enveredar pela
região luminosa da ciência”.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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