Karl
desconhece a eletricidade e, neste momento, com o corpo ainda
ofendido, sabe apenas que não a quer voltar a ter dentro de si. Que
o prodígio se detenha por luzes e máquinas, longe das entranhas e
dos músculos que tão bem passam sem confusões adicionais.
Ao
longo da tarde vai sentido ainda espasmos: nas pernas, nos braços,
no pescoço. Lentamente estes vão-se tornando mais raros e, a meio
da tarde, já quase não se fazem sentir, apenas o braço direito
continua a fugir-lhe ao controlo quando menos espera; parece-lhe até
que começou a tremer mais, como se os espasmos tivessem diminuído
de intensidade e aumentado de frequência, tornando-se contínuos. As
últimas janelas são limpas com a mão esquerda, que a outra não
lhe merece confiança.
Pensa
em queixar-se ao homem do fato e pedir-lhe mais dinheiro por danos
aos nervos, mas não o faz, de resto é pouco provável que o
encontre, neste momento será já outra a plateia e outro o vendedor.
Sente-se
levemente ingênuo por arriscar tanto por um dólar, depois
apercebe-se de que trabalha a oitenta metros do solo e há quem
pesque em alto mar, quem coma do pugilato e quem escolha a vida
militar. As cidades estão cheias de gente que arrisca muito por
pouco e Nova Iorque parece um congresso.
Quando
acaba de limpar a última janela, detém-se por alguns momentos a
olhar a cidade lá em baixo. Dali sente-se capaz de pensar coisas
novas, de ver longe e de descobrir significados até aí ocultos. Na
verdade nada disso acontece, talvez por não estar habituado a pensar
coisas novas, talvez porque Nova Iorque não permita que se pense
muito.
Entra
então no edifício e arruma as suas coisas. É sábado e tem algum
dinheiro no bolso, apetece-lhe divertir-se, foi uma semana em que se
manteve vivo e a trabalhar, irá procurar algum prazer que possa
trocar por moedas. Comer, beber, uma mulher, talvez, que mais há?
Entra
no elevador e vê-o encher-se a cada piso. São lugares democráticos
os elevadores, no mesmo espaço juntam-se fatos-macaco e casacos de
bom corte e, apesar da diferença, são só pano que separa a pele do
trabalho. O cheiro é também diferente e a colônia dos senhores,
misturada com o tabaco de cachimbo, lembram-lhe o pai e a vida que
deixou.
Fora,
as ruas vão cheias de gente livre, há diversas correntes que se
entrecruzam e vão desaguar em pontos distintos da cidade. Há quem
se deixe levar para casa, para os bairros residenciais e os
quarteirões de imigrantes, e quem vá atrás das luzes como insetos
que se querem queimar. Enchem-se os restaurantes, os cabarés, os
bares, as tascas clandestinas, os casinos ilegais e os bordéis.
Também Karl andará atrás das luzes, ainda inseguro de quanto está
disposto a queimar-se. O braço incomoda-o, será preciso adormecê-lo
a qualquer custo.
Nuno
Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros
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