quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Nova Iorque

Karl desconhece a eletricidade e, neste momento, com o corpo ainda ofendido, sabe apenas que não a quer voltar a ter dentro de si. Que o prodígio se detenha por luzes e máquinas, longe das entranhas e dos músculos que tão bem passam sem confusões adicionais.
Ao longo da tarde vai sentido ainda espasmos: nas pernas, nos braços, no pescoço. Lentamente estes vão-se tornando mais raros e, a meio da tarde, já quase não se fazem sentir, apenas o braço direito continua a fugir-lhe ao controlo quando menos espera; parece-lhe até que começou a tremer mais, como se os espasmos tivessem diminuído de intensidade e aumentado de frequência, tornando-se contínuos. As últimas janelas são limpas com a mão esquerda, que a outra não lhe merece confiança.
Pensa em queixar-se ao homem do fato e pedir-lhe mais dinheiro por danos aos nervos, mas não o faz, de resto é pouco provável que o encontre, neste momento será já outra a plateia e outro o vendedor.
Sente-se levemente ingênuo por arriscar tanto por um dólar, depois apercebe-se de que trabalha a oitenta metros do solo e há quem pesque em alto mar, quem coma do pugilato e quem escolha a vida militar. As cidades estão cheias de gente que arrisca muito por pouco e Nova Iorque parece um congresso.
Quando acaba de limpar a última janela, detém-se por alguns momentos a olhar a cidade lá em baixo. Dali sente-se capaz de pensar coisas novas, de ver longe e de descobrir significados até aí ocultos. Na verdade nada disso acontece, talvez por não estar habituado a pensar coisas novas, talvez porque Nova Iorque não permita que se pense muito.
Entra então no edifício e arruma as suas coisas. É sábado e tem algum dinheiro no bolso, apetece-lhe divertir-se, foi uma semana em que se manteve vivo e a trabalhar, irá procurar algum prazer que possa trocar por moedas. Comer, beber, uma mulher, talvez, que mais há?
Entra no elevador e vê-o encher-se a cada piso. São lugares democráticos os elevadores, no mesmo espaço juntam-se fatos-macaco e casacos de bom corte e, apesar da diferença, são só pano que separa a pele do trabalho. O cheiro é também diferente e a colônia dos senhores, misturada com o tabaco de cachimbo, lembram-lhe o pai e a vida que deixou.
Fora, as ruas vão cheias de gente livre, há diversas correntes que se entrecruzam e vão desaguar em pontos distintos da cidade. Há quem se deixe levar para casa, para os bairros residenciais e os quarteirões de imigrantes, e quem vá atrás das luzes como insetos que se querem queimar. Enchem-se os restaurantes, os cabarés, os bares, as tascas clandestinas, os casinos ilegais e os bordéis. Também Karl andará atrás das luzes, ainda inseguro de quanto está disposto a queimar-se. O braço incomoda-o, será preciso adormecê-lo a qualquer custo.
Nuno Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros

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