segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Parecia uma coisa impossível

John Bante foi submetido a mais uma operação, outra operação. Haviam começado o processo todo ao lhe cortarem um pé, depois o outro. Depois foram seguindo pernas acima. Creio que ele teria morrido caso não se submetesse a esses procedimentos, mas esta escolha não me parecia muito melhor do que a primeira.
Mary me ligou dizendo que ele estava de volta em casa e que gostariam que fôssemos jantar com eles.
Vamos beber um pouco de vinho – ela me disse. Marcamos uma data.
Quando chegamos, Bante já estava sentado à mesa. Estava na cadeira de rodas. Aquilo foi muito mais agradável do que vê-lo estendido sob um lençol. Seu filho, Harry, e a mulher dele, Nana, também tinham comparecido. Mary nos apresentou. Sentamos e Mary nos serviu de vinho.
Vou tomar um cálice com você, Chinaski – disse John.
É uma honra...
Erguemos as taças.
Que tal o gosto, Chinaski?
Está ótimo, Bante.
Harry e Nana têm lido seus livros. Agora estão viciados.
Recebi meus ensinamentos de um mestre, um tal John Bante.
Você teria conseguido, de um jeito ou de outro.
Tomei emprestado parte do seu estilo. Mas, diabos, nossos conteúdos são diferentes, John. Você escreve como uma boa alma; eu tenho um lado mais cretino.
Você está certo. Tome um pouco mais de vinho. Mary, cuide para que Chinaski seja bem servido.
Em seguida, Mary, auxiliada por Nana, trouxe o jantar. Nana havia feito a comida. O jantar foi preparado com capricho. Comemos sem alarde, fazendo breves comentários. Então terminamos e mais vinho foi servido.
Vou tomar mais um cálice com você, Chinaski! Esta é minha grande noite!
Mas tem que ser o último mesmo – disse Mary.
Ouvi dizer que vocês circulam ali pelo Musso’s – disse John.
Costumávamos ir lá uma vez por semana quando morávamos para aqueles lados – disse Alta. – Agora que estamos em San Pedro, não vamos tão seguido.
Vocês deviam tentar o Chasen’s – disse Bante.
Muito chique para mim – admiti.
John estava na segunda taça de vinho. Era como se ressurgisse. Achei isso ótimo. Eu podia sentir a vida retornando ao seu corpo.
Eu ia muito ao Musso’s. Certo dia, estava sentado numa mesa quando meu escritor favorito entrou. Big Red. Você sabe quem era Big Red?
Não...
Sinclair Lewis.
Jesus Cristo!
Mas eu não disse mais nada além disso. Sinclair Lewis não estava na minha lista.
Ei, o que é isso que você está fumando? Tem um cheiro engraçado!
É um cigarro que vem da Índia. Não tem nicotina, mas vai muito bem com vinho.
Posso fumar um?
Olhei para Mary. Ela me acenou um “sim”. Acendi um e coloquei-o em sua mão. Alta fez a volta com um cinzeiro.
Aqui está o cinzeiro, John. Consegue sentir?
Sim, obrigado. Como eu ia dizendo, estava lá sentado e Big Red entrou. Veja bem, era como enxergar um Deus, está entendendo?
Sim, claro – respondi.
O que importa é que ele sentou numa mesa com essas duas mulheres e eles fizeram o pedido. Eu era só um garoto, sabe, e estava ali... sentado no mesmo ambiente que Sinclair Lewis... Trouxeram-lhe uma garrafa de vinho e ele e as mulheres beberam. Ali estava ele, sentado tão perto, Big Red. Parecia uma coisa impossível. Não queria incomodá-lo. Tentei me conter, mas não consegui. Eu estava lá sozinho. Tinha um caderno comigo e fingia trabalhar num roteiro de cinema. Mas odiei aquilo. Havia muitas páginas em branco. Arranquei uma delas e caminhei na direção de Sinclair Lewis. Parei diante de sua mesa. Ele falava com uma das mulheres... Acho que o cigarro indiano apagou...
Alta se levantou e reacendeu o cigarro com o isqueiro.
Qualquer coisa apagam, sabe, é que não têm produtos químicos.
Obrigado, Alta... Mas como eu ia dizendo, fiquei ali parado e disse: “Me perdoe, sr. Lewis...” Ele olhou para cima. As mulheres também me olharam. “Sou escritor. Meu nome é John Bante. Há muito tempo que o senhor é meu escritor favorito. Não quero, de modo algum, incomodá-lo, mas aqui estou. Gostaria de saber se o senhor me daria seu autógrafo nesta folha de papel?”
Houve uma pausa. John tomou o último gole de seu vinho. Era como se ele estivesse de volta ao Musso’s, plantado diante da mesa de Big Red. Então continuou:
Sinclair Lewis agiu como se eu não estivesse ali. Ignorou o pedaço de papel que eu lhe estendia e começou a conversar com as mulheres novamente.
Mas que filho da puta!
Voltei para a minha mesa e fiquei pensando no que tinha acontecido. Quanto mais eu pensava, pior me sentia. Big Red me dera um gelo. Chamei o garçom e paguei minha conta. Então voltei até a mesa de Lewis. Ele olhou para mim. “Escute, seu merda, sou publicado pela mesma editora que você. Talvez L. H. Renkin ficasse feliz em saber o cretino que você é!” Então caminhei em direção à saída. Dei uma olhada para trás e vi que ele se levantava da mesa para me seguir. Saí em direção à rua de trás, pulei no meu carro e me escondi. Vi quando ele surgiu correndo, à minha procura. Ele parecia aterrorizado. Mas não tinha jeito de ele me achar. Ficou parado por algum tempo, depois voltou para dentro. Tinha feito ele se borrar nas calças!
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

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