terça-feira, 28 de novembro de 2017

Os galos da tardinha

Assanhamento de cigarras, próprio à minha janela, no dia 17 de janeiro, de um ano que mais não sei. À tarde, às 6 e 30, de repente, todas comparecem a se assar. As cigarras se descascam, novinhas. E como que cantam, em hirta mentira, estridem. Longo tempo azucrinam, maquinazinhas; penteiam algo. Eu tinha de ouvi-las, no consciencio.
Em crescendo. Em vários níveis. Tantos ésses, no febril! Cada uma é um ponto de laminação carretel, vapor, fervor, orifício. Muitas se acertam, se acirram, insistidíssimas. Umas são mais secas. Calam-se a um tempo, repentinas. Cada uma despejou seu chio, parou, pôs-se a rolha. Outras, longas, retomam-se. Aquele concerto se aproxima. Elas são os galos da tardinha. São ondas. (As de longe: remoinho; teimosia. As perto: é mesmo zizio.) Não cantam, nem gritam entre-dentes, nervosinhas. Sabe-se só os machos é que fretinem — o zinir, o frinir, o confricar dos abdomes membranosos: o cio, cio, cio.
Depois, não sei porque, ficou uma, apenas, cega-rega, a bolha de seu canto rebentava. Ela, atrás de mim, dispara: é uma cigarra suíça, e nova. Para zoar seu sobre si, precisa de se dar muito motor. Desmancha a barriga, de barulhar. É uma cigarra trissílaba. É uma cigarra frigideira. Mas paroxística. Uma cigarra que até cacareja. Quando ela para, dói na gente. Vai-se até ao coraçãozinho dela, dentro de um susto.
Deve ser uma conhecida, que há dias salvei das patas da gata. Antes dizer: Xizinha já a dentara, abocanhada. E como ela grinchava, de horror, doida fortemente, estridulantérrima. Era um alarme terrível. Nenhum bicho se defende mais braviamente a brados, nem pede tão endiabrado socorro, quando nessas inóspitas e urgentes condições. Vem de sua notória longevidade esse medo frenético de morrer?

Livrando-a dos leves dentes de Xizinha, tive-a um instante, fremente, na mão. Essa era como as outras: a grossa cigarra de asas escritas, asas nervosas, as de cima mais compridas, manchas pretas nas costas, a cabeça larga, curta, vertical — feia, bela, horrenda. Cigarra de ferro, renha cigarra: como a beleza de teus sons te envolve!
Nem me agradeceu. Perguntei, repreendendo-a:
Por que você grita tão exagerada?
E:
O Senhor não Acha que a Vida Mesma é que é um Exagero? — foi sua terminante resposta.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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