Assanhamento
de cigarras, próprio à minha janela, no dia 17 de janeiro, de um
ano que mais não sei. À tarde, às 6 e 30, de repente, todas
comparecem a se assar. As cigarras se descascam, novinhas. E como que
cantam, em hirta mentira, estridem. Longo tempo azucrinam,
maquinazinhas; penteiam algo. Eu tinha de ouvi-las, no consciencio.
Em
crescendo. Em vários níveis. Tantos ésses, no febril! Cada uma é
um ponto de laminação carretel, vapor, fervor, orifício. Muitas se
acertam, se acirram, insistidíssimas. Umas são mais secas. Calam-se
a um tempo, repentinas. Cada uma despejou seu chio, parou, pôs-se a
rolha. Outras, longas, retomam-se. Aquele concerto se aproxima. Elas
são os galos da tardinha. São ondas. (As de longe: remoinho;
teimosia. As perto: é mesmo zizio.) Não cantam, nem gritam
entre-dentes, nervosinhas. Sabe-se só os machos é que fretinem —
o zinir, o frinir, o confricar dos abdomes membranosos: o cio, cio,
cio.
Depois,
não sei porque, ficou uma, apenas, cega-rega, a bolha de seu canto
rebentava. Ela, atrás de mim, dispara: é uma cigarra suíça, e
nova. Para zoar seu sobre si, precisa de se dar muito motor.
Desmancha a barriga, de barulhar. É uma cigarra trissílaba. É uma
cigarra frigideira. Mas paroxística. Uma cigarra que até cacareja.
Quando ela para, dói na gente. Vai-se até ao coraçãozinho dela,
dentro de um susto.
Deve
ser uma conhecida, que há dias salvei das patas da gata. Antes
dizer: Xizinha já a dentara, abocanhada. E como ela grinchava, de
horror, doida fortemente, estridulantérrima. Era um alarme terrível.
Nenhum bicho se defende mais braviamente a brados, nem pede tão
endiabrado socorro, quando nessas inóspitas e urgentes condições.
Vem de sua notória longevidade esse medo frenético de morrer?
Livrando-a
dos leves dentes de Xizinha, tive-a um instante, fremente, na mão.
Essa era como as outras: a grossa cigarra de asas escritas, asas
nervosas, as de cima mais compridas, manchas pretas nas costas, a
cabeça larga, curta, vertical — feia, bela, horrenda. Cigarra de
ferro, renha cigarra: como a beleza de teus sons te envolve!
Nem
me agradeceu. Perguntei, repreendendo-a:
— Por
que você grita tão exagerada?
E:
— O
Senhor não Acha que a Vida Mesma é que é um Exagero? — foi
sua terminante resposta.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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