Habito
a paisagem sólida, querida. Venham ver vocês. Ainda é inverno:
alegrias direitinhas.
Amanhece
de neblina, todos os dias, frio com frio. Ainda escuro, de sazão,
agora, a madrugada vem muito curta, chega logo a manhã. O clarear é
que é curto, para se assistir ao madrugar. Depois da coruja piando:
o hu-lhu-h’hú. Da coruja, o pio é sempre. Mas, às vezes,
vira o gargalhar, seco, um estalado, coisa seca, parece gargalhadinha
de velho. Outra, a outra, seus estalidos, meio estridentes:
cla-kle-cle-klá. Seriam duas corujas, no cajueiro, atrás do
meu quarto; ninho delas. Dado o dia, bem guardam-se.
Os
galos — e pintinhos e galinhas se agitando. A galinha com treze
pintinhos, ela dorme debaixo do balaio. Entremente, melros, dos
melhores. Ou os outros. A cambaxilra, aqui tem muita, dá um
trinadozinho tristris. Aparecem os sanhaços. Vige aqui uma ordem:
deixar-se, em cada mamoeiro, um mamão maduro, para eles, os pássaros
de uso, que rebuscam o fácil das frutas. Àquela árvore de flor
amarela, enchida de lagartas, vão os anus-pretos, mais tarde, quando
se bem diz que o sol já está quente. Vi, porém, o martim-pescador,
pousado no fim da luz, lindo. Escuro-e-verde e bronze, que, quando
bate o sol, vira verde-azulado. Esperando a companheira?
Sigo,
ao arreia-pêlo da correnteza, pela margem do mimo riachinho,
soliloquaz: todo o tempo nos cruzamos. Sirimim estava de água
clarinha, desta vez, ainda meio cheio, pelo que se sabe do que foi o
verão: de chuvas e enxurros a granel. Mesmo agora, se costuma de vir
alguma.
Tão
cheiroso, na horta, aquele lugar da roseira! A gente se lembra de que
foi a Irene que a plantou. A Irene se foi, faz seis meses, mas dá
notícias. Diz que não conseguiu até hoje ajuntar dinheiro, só deu
para comprar um vestido. Mas a Irene vai vir, estes dias, para o
casamento da Maria do Dudu. Agora escuto o ruído de um muçum, pelo
sol: a bulha da água remexida. E já se plantaram novas pimenteiras.
Ali,
cheirando a roseira, e um perfume que vem, sai do chão. Cheira a
mel. Vem de baixo. Você não vê nada. Deve de ser uma ervinha, um
capinzinho. É o melhor cheiro e sobe da terra. Está por volta da
horta, onde tem mato, nos lugares não capinados.
Vou
visitar o Pedro, bebemos da biquinha, que recita. Mais que todas, a
água do Sirimim, quando se apanha e põe na folha de taioba, ela
fica de prata — a película prateada, a tremer. É a água mais
pura que há.
O
Pedro, mesmo tendo agora outra cachorrinha, não se esquece da que
foi tão boa, a Bolinha, extinta. Conta de quando ela desapareceu,
fugida, com a doença. — “... Zé Rufino tinha visto: ela
passar, zangada, lá. Longe... Arruinada, uai. De zanga. Porque,
naquela certa época do ano, zangam.” O Pedro é grato à
Bolinha, porque ela não incomodou ninguém aqui, e porque poupou-lhe
o assistir ao seu fim.
Sentamo-nos
no antigo banco, pegado ao corte do barranco, ali tem uma laranjeira
bem em cima do barranco, metade das raízes ficaram para fora. Mas, a
casinha, a casa, atrás da qual estamos, já é a nova! O Pedro
exulta — de não cessar de a contemplar.
E
considera, com domingueiros olhos de repouso, o “seu” arrozal, lá
embaixo, lugar fresco — à passarada. Está contente com o
movimento, com o que se faz: na pinguela, para transpor o
carro-de-bois, taparam os vãos com tabatinga e palha de arroz;
taparam também todo o caminho que vem da pinguela até aqui, à
casa; assim, há sempre palha de arroz espalhada — para refrescar a
terra, agasalhá-la da umidade, e produzir adubo, depois.
Derrubou-se
a casa velha, que era só um ranchinho de capim. O Pedro botou fogo
em tudo, sapé e madeira podre, com ideia de que ali desse
escorpiões. Mas, antes, a mudança levou dias, porque havia muito
mantimento. O Pedro e a Eva são muito acomodados. A casa nova é
grandinhazinha, com os dois quartos, e a cozinha e o
quarto-dos-guardados — despensa para o milho e o arroz. Sem se
esquecer a sala — só com um banco e o oratório: parece que os
santos é que estão de visita ao Pedro.
No
dia em que na casa nova definitivamente se alojaram, à noitinha, o
Pedro, entrando no quarto-dos-guardados, escutou um barulho se
mexendo. Com susto, invocou São Bento, pensou que fosse cobra atrás
de camundongos, que estão dando no milho. Mas era uma gambá, com
sete filhotes, já instalada perto do cacho de bananas — também de
mudada! Foi só o Pedro fechar a porta, e mandar à Eva: — “Minha
filha, premeia eles, com o cacete!” Medita: — “O vivente tem
pouca pena do vivente...” E come a gambá, refogada simples,
com farinha pura; mas não chupa os ossos, porque “dá caxumba”.
Na
maior alegria, o Pedro inaugurou a casa nova, com uma ladainha. Armou
a ladainha de ação-de-graças. Fez roupas novas, de papel crepom,
para os santos todos do oratório. Varreu o terreno. Adornou o
terreiro e casa com bandeirolas de papel. Arquinhos de bambus, com
flores de papel, toscas, espetadas. Não tinha padre. Então, chamou
um vizinho. Antoniartur de Almeida — ladrão, mau caráter, dizem,
mas com grande prática de ladainhas. Quando estavam todos juntos, o
homem dirigiu umas palavras ao povo. Depois, tirou umas rezas e
preces. Ao meio-dia, em ponto. Rezaram um terço e a Ladainha de
Todos-os-Santos. E o Padre reflete: — “Não é segredo o que
estou lhe contando: mas, neste mundo, há gente de todo jeito. E é o
de que se carece...”
Depois,
dias, é que foi a festa — a dos quinze anos da Eva.
Da
venda de ovos e galinhas, o Pedro conseguira um dinheirinho, bem
escondido, que seria para se a Eva viesse a precisar, por doenças,
em o caso. Graças a Deus, porém, a Eva sempre teve saúde, assim se
criou. Vai daí, o Pedro, com a influência da casa nova, resolveu
gastar esse cobre na alegria. Ficou muito boa, a festa dele. Teve
danças. Serviram café, rosquinha redondinha, broa e pé-de-moleque.
Bancou-se o manuel-manta: que é jogo de dados, num caixote com um
papel com seis quadradinhos, em que as apostas se casam. — “O
Pedro não tem muita valença...” — diz o Joaquim. Mesmo tão
casmurro, achou que devia dar-lhe proteção, ao irmão mais novo e
afilhado; por isso, ficou lá até a festa dar em fim.
Contudo,
às vezes, o Joaquim parece ter inveja do Pedro, dos agrados que lhe
fazem. Não pode compreender que se preze um pobre aleijadinho,
assim. Tudo ele pega, pesa, mede e apreça — o Joaquim.
O
Joaquim vai se mudar daqui. Ele tem setenta-e-dois-anos, e é duro,
carrancudo, prepotente. O Joaquim bebe.
A
Irene foi-se empregar no Rio, e ele ficou sentido com todos, e não
dizia por que, agastado. Não podia brigar com o Maninho, sem razão,
nem obrigar o Maninho, a se casar com a Irene. A Maria, mulher dele,
então, ainda ficou mais desgostosa. Ambos, remoeram, muito, aquilo,
mais e mais a se ressentir. Daí, chegaram à decisão. Ir-se embora,
mesmo largando suas benfeitorias de colono — a farturinha formada
naqueles anos: bananeiras, canavial, mandioca.
Donde
que, vão para perto da outra filha, a Maria Doca, mulher do Manuel
Doca, deles muito querida, lá têm netinhas, no Cici.
O
Joaquim é homem sério, estricto e correcto demais, não gosta de
natureza para os olhos. A coisa melhor, para ele, é a fartura. A
coisa pior — a que ameaça a fartura — é a vadiação. Só pensa
em termos de proveito. Andar bem com os outros — isto é: os outros
andando bem com ele. Acha que a gente está aqui para cumprir
obrigação, fazer fartura; e, depois, no Céu, apresentar contas a
Deus. Contas certas, certa a vida.
Rejeita
toda mercê de beleza, desocupada e que não produz. Mesmo a
roseirinha que a Irene plantou, ele diz que a tolera somente porque
ela serve às plantinhas, de sombra. Mas nunca reparou em que, nas
rosinhas-de-cachos, as pétalas de de-dentro é que são cor-de-rosa
claro, e as de fora, mais brancas, ou parecem brancas, pelo menos, se
não são. Nem jamais sentiu, rosas asas, seu perfume.
O
riachinho sair por aí, correndo e cantando, aborrece a ele.
Aceita-o,
servo, na horta: aprisionadas, obrigadas, as aguinhas diligentes. Mas
não as que se seguem, para lá, lá, em todo o depois — as das
sombras matosas, e as que, soltas, na cheia, vão de afogadilho. Da
ponta para baixo, o Sirimim “está com vadiação” , vale de
nada, de nenhum préstimo. Presume-se que, no fundo, detestava-o o
Joaquim: como à flor que flor, a borboleta andante, o passarinho e
ninho, o grilo na alface, e, à noite, no negro ermo, no ar, o
pirilampadário. O meu Sirimim no descuidoso imprestar-se: a lânguida
água à lengalenga e a ternura em aventura.
A
ida embora do Joaquim é uma luta, que o Sirimim venceu.
A
casa, que foi dele, está vaga. Quem a virá ocupar? Talvez, o velho
avô da Idalina.
Guimarães
Rosa, in Ave,
palavra