Saíram
da estação, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na
própria rua onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois
voltou-se para trás, para exprimir esse pasmo ao companheiro; mas
atrás dela não vinha ninguém. Estava a rua, lunar e deserta, nem
havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser uma estação de
comboios.
Tonta,
sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa.
Entrou, subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido.
Lia, no escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro.
—
Então?
— perguntou ele.
E
ela:
—
Correu
tudo muito bem. O baile foi muito interessante. — E acrescentou,
antes que ele perguntasse — Umas pessoas que estavam lá no baile
trouxeram-me de automóvel até ao princípio da rua. Não quis que
eles viessem até à porta. Saí ali mesmo; insisti. Ah, que cansada
que estou!
E,
num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se
deitar.
Os
seus sonhos adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas
inexplicáveis por qualquer experiência que se conheça. Pairou nela
o desejo de grandes coisas, como de alguém que um dia foi separado,
numa vida antes desta, por sobre todas as idades da terra. E viu-se a
deslocar por uma ponte de uma grande altura, de onde se vê todo o
mundo. Em baixo, a uma distância mais que impossível, estavam, como
astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades, sem dúvida, da
terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhas, dizendo:
— São
as grandes cidades do mundo. Aquela é Londres — e apontou uma na
distância descida — Aquela é Berlim — e apontou para outra. —
E aquela, ali, é Paris. São manchas de luz na treva, e nós, nesta
ponte, passamos alto sobre elas, incrédulos do mistério e do
conhecimento.
— Que
coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é aquilo tudo ali em
baixo?
—
Aquilo,
minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus,
tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já
esperava, porque o Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em
contacto direto com os Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma
provação, como se diz em linguagem iniciática, e o Candidato
portou-se admiravelmente.
— Não
percebo. Foi daqui, realmente, que tentou Cristo?
— Foi.
Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma
montanha. No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora,
era o cume. Que bem que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde
além de Deus. Segui, porque era o meu dever, o conselho e a ordem de
Deus: tentei-o com tudo quanto havia. Se tivesse seguido o meu
próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode haver.
Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em
particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força
do Destino, supremo arquiteto de todos os mundos, o Deus que criou
este, e eu que, porque o nega, o sustenta?
— Mas
como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?
— É
a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem
se desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo,
seria um mineral. A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda
que resista. Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou
aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse, nada
existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba do meu
discípulo Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar
melhor no vácuo.
“A
música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por
música não deve entender-se só aquela que se toca, se não também
aquela que fica eternamente por tocar. Por luar, ainda, não se deve
supor que se fala só do que vem da lua e faz as árvores grandes
perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e obscurece em
pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o que
são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre
naturais e nossos.
— Mas,
se o mundo é ação, como é que o sonho faz parte do mundo?
— É
que o sonho, minha senhora, é uma ação que se tornou ideia; e que
por isso conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é
o estar no espaço. Não é verdade que somos livres no sonho?
— Sim,
mas é triste o acordar...
— O
bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não
durma. Já uma vez ele mo disse...
Ela
olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do
fundo de toda a alma que nunca sentira.
— Mas
afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?
—
Respondo,
numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado.
— Como?
— Minha
senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se
sobressalte.
E
num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela
reconheceu, de repente, que era verdade.
— Eu
sou de fato o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente
o Diabo, e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra
e acima da terra, são perigosos, como todos os plagiários, porque
não conhecem o segredo da minha maneira de ser. Shakespeare, que
inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse que eu era um
cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está bem.
Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora.
Quando assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o
Shakespeare a sê-lo. Mas, realmente, não era preciso.
“Dato
do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista.
Ora, como deve saber, todos os ironistas são inofensivos, exceto se
querem usar da ironia para insinuar qualquer verdade. Ora eu nunca
pretendi dizer a verdade a ninguém em parte porque de nada serve, e
em parte porque a não conheço. O meu irmão mais velho, Deus todo
poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são questões
de família.”
“Talvez
não saiba porque é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real
nem propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a
violar ou atrair. Essas coisas sucedem na terra, entre os animais,
que incluem os homens, e parece que dão prazer, creio, segundo me
dizem de lá de baixo, até às vítimas.”
“De
resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os
homens são animais. Na minha posição social no universo são
impossíveis não bem porque a moral seja melhor, mas porque nós, os
anjos, não temos sexo, e essa é, neste caso pelo menos, a principal
garantia. Pode pois estar tranquila porque a não desrespeitarei. Bem
sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos
romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados,
porque a minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e
nunca tive que pensar nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram
pactos comigo, mas é falso; ainda que o não seja, porque o com que
tiveram pacto foi com a própria imaginação, que, em certo modo,
sou eu.”
“Esteja,
pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas Deus
é pior num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível,
que é muito menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem.
Passam. Antes assim, não é verdade?”
(...)
Fernando
Pessoa, in A hora do diabo e outros contos
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