quarta-feira, 27 de abril de 2016

A casa vazia

Um monarca árabe deve escolher um representante para negociar a paz com um rei cristão, que ameaça invadir seu país. Aconselhado por um vizir, ele indica para o posto um homem de quem nunca ouvira falar. Um homem comum, que parecia ser o menos competente para a tarefa.
O emissário desconhecido chega à corte cristã. Depois de saudá-lo, o rei lhe aponta o céu, e ele, sem vacilar, o imita. Ergue os dedos em direção a seu rosto, e ele dirige os seus para o rosto do rei. Diante de uma ceia suntuosa, o rei escolhe uma pequena azeitona, e o visitante, copiando-o, se limita a servir-se de um ovo. O rei, enfim, exclama: “Nunca vi ninguém mais entendido nem mais capaz”. A paz entre os reinos é imediatamente selada.
Quando, depois, lhe perguntam como conseguiu chegar a um acordo tão rápido, o viajante árabe assim descreve o rei que visitou: “Nunca vi ninguém mais estúpido, nem mais ignorante”. Havia em cena dois homens, mas na verdade quatro pessoas. Quando apontou o céu, o rei cristão quis dizer: “Deus é único”. Mas o visitante entendeu: “Eu erguerei você com a ponta do meu dedo” – e, ao repetir o gesto, repetiu a ameaça. O rei apontou o rosto do viajante para afirmar: “Todos os homens têm uma só origem, Adão”. Mas ele entendeu: “Eu arrancarei seus olhos com meu dedo” e, sem pensar duas vezes, repetiu a intimidação.
O rei cristão e o emissário islâmico usaram os mesmos gestos para dizer coisas diferentes. Retidos nas trevas da linguagem, terminaram por se entender mesmo sem entender. A paz, como quase todos os eventos da palavra, não passou de um equívoco. Mas nem por isso deixou de ser paz.
Leio esse relato, que resumo sem muita inspiração, em Histórias para ler sem pressa (editora Globo), antologia de antigos contos árabes organizados e traduzidos por Mamede Mustafa Jarouche, com ilustrações fortes de Andrés Sandoval. Em seu teatro mudo, o rei cristão e o emissário árabe encenaram o abismo escuro que a língua habita. Não que as palavras cheguem a ser inúteis; mas elas não servem para o que pensamos.
Foi com temor que comecei a ler a antologia de Jarouche: achava que encontraria só belas, sensíveis mas cerradas histórias moralistas. Na aparência, não só as antigas histórias árabes, mas os contos de fadas ocidentais se limitam a difundir ideias nobres, a pregar bons hábitos e a transmitir lições. As palavras, porém, são mais misteriosas que seus autores. Escrevemos um simples bilhete, passamos um telegrama formal, anotamos um recado e nem imaginamos o que estamos fazendo.
Artefatos humanos, as palavras carregam a mesma fluidez que define o homem. Em um ensaio de Juan José Saer, encontro um pensamento do mestre zen Lin Tsi que descreve isso. “Escondido em seu conglomerado de carne vermelha há um homem verdadeiro sem situação que, sem cessar, entra e sai pelas portas de sua casa.” Esse homem escondido, que está além de todas as circunstâncias, não é uma figura agradável. Seu interior obscuro está infestado de vísceras e outros conteúdos repugnantes. Mas não importa se isso nos agrada ou desagrada. É ali, em silêncio, que a vida se move.
O silêncio é o cosmos da língua. Pequena língua, ínfima agulha, a girar no escuro ou, para roubar os versos de Drummond, a flutuar em um “silencioso cubo de trevas”. Continuo em Drummond: “A soma da vida é nula./ Mas a vida tem tal poder:/ na escuridão absoluta,/ como líquido, circula”. O cubo, poliedro regular de seis faces, promete um equilíbrio que, na verdade, não tem. Simboliza, também, a terceira potência – e quando dizemos: “três ao cubo”, não falamos de três, mas de nove. Força que não está nem nas faces quadradas nem no interior vazio, mas que (como insistia Clarice) se dissimula nas entrelinhas.
A palavra é muitas vezes um veneno – como nas intrigas de vizinhos, na retórica de políticos e nos fuxicos das faladeiras. Um dos relatos da antologia fala do vizir Sáhib Ibn Abbád, que recebeu a denúncia de um roubo – crime medonho contra a herança de um órfão. A acusação é justa, mas o vizir sabe que, às vezes, mais medonha que o ato, é sua transmissão. “A intriga é detestável ainda que verdadeira”, resume.
A intriga – como se diz do enredo de um filme – pode ser eletrizante, mas nem por isso merece confiança. Um dos relatos conta a história de Abu Attarçúci, o mais avarento dos homens. No fecho, o autor, Aljáhoiz, um sábio árabe do século IX, se apressa a observar: “Essas coisas e outras semelhantes ficam muito mais saborosas caso você as veja com os próprios olhos”. E não se furta a sujar o que escreveu: “Pois a escrita não retrata todas as coisas nem revela suas essências, limites e verdades”.
Coisas falam mais que palavras. Um velho sábio pede que seus discípulos narrem uma visita ao mercado. Eles descrevem as cores, as iguarias e, entre elas, um estupendo peixe frito. “E o que ele lhe disse?”, o mestre pergunta aos alunos. Um deles, cheio de si, logo reage: “E por acaso um peixe morto e frito fala?”. Furioso, o velho sábio o emenda: “Vocês alegam ser hábeis estudiosos, mas as coisas lhes falam e vocês não as entendem!”.
Em um poema famoso, Charles Baudelaire expõe seu temor a esse mundo errante: “Túnel que me esconde,/ cheio de vago horror, levando não sei onde”. O poema se aplica à história do Almutanabbi, autor de belos versos sobre a generosidade, que é obrigado a explicar por quê, contrariando o que escreve, é um homem avaro. Ele relembra sua juventude miserável para mostrar como o real o leva a, mesmo escrevendo sobre a bondade, praticar a maldade. A poesia nem sempre vem dos melhores sentimentos.
Em outro conto, enfurecido com a acusação de que sua ciência não serve para nada, o alquimista Yúçuf argumenta que ela, por mais incerta que seja, é mais potente que a ciência infalível dos farmacêuticos. “Quando se pede alguma coisa aos farmacêuticos, eles afirmam que a têm, mesmo que não tenham”, compara. A poesia, ao contrário, é a casa dos que sabem que não têm e, só por isso, se arriscam a tentar.
José Castello, in Sábados inquietos

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