Um
monarca árabe deve escolher um representante para negociar a paz com
um rei cristão, que ameaça invadir seu país. Aconselhado por um
vizir, ele indica para o posto um homem de quem nunca ouvira falar.
Um homem comum, que parecia ser o menos competente para a tarefa.
O
emissário desconhecido chega à corte cristã. Depois de saudá-lo,
o rei lhe aponta o céu, e ele, sem vacilar, o imita. Ergue os dedos
em direção a seu rosto, e ele dirige os seus para o rosto do rei.
Diante de uma ceia suntuosa, o rei escolhe uma pequena azeitona, e o
visitante, copiando-o, se limita a servir-se de um ovo. O rei, enfim,
exclama: “Nunca vi ninguém mais entendido nem mais capaz”. A paz
entre os reinos é imediatamente selada.
Quando,
depois, lhe perguntam como conseguiu chegar a um acordo tão rápido,
o viajante árabe assim descreve o rei que visitou: “Nunca vi
ninguém mais estúpido, nem mais ignorante”. Havia em cena dois
homens, mas na verdade quatro pessoas. Quando apontou o céu, o rei
cristão quis dizer: “Deus é único”. Mas o visitante entendeu:
“Eu erguerei você com a ponta do meu dedo” – e, ao repetir o
gesto, repetiu a ameaça. O rei apontou o rosto do viajante para
afirmar: “Todos os homens têm uma só origem, Adão”. Mas ele
entendeu: “Eu arrancarei seus olhos com meu dedo” e, sem pensar
duas vezes, repetiu a intimidação.
O
rei cristão e o emissário islâmico usaram os mesmos gestos para
dizer coisas diferentes. Retidos nas trevas da linguagem, terminaram
por se entender mesmo sem entender. A paz, como quase todos os
eventos da palavra, não passou de um equívoco. Mas nem por isso
deixou de ser paz.
Leio
esse relato, que resumo sem muita inspiração, em Histórias para
ler sem pressa (editora Globo), antologia de antigos contos árabes
organizados e traduzidos por Mamede Mustafa Jarouche, com ilustrações
fortes de Andrés Sandoval. Em seu teatro mudo, o rei cristão e o
emissário árabe encenaram o abismo escuro que a língua habita. Não
que as palavras cheguem a ser inúteis; mas elas não servem para o
que pensamos.
Foi
com temor que comecei a ler a antologia de Jarouche: achava que
encontraria só belas, sensíveis mas cerradas histórias moralistas.
Na aparência, não só as antigas histórias árabes, mas os contos
de fadas ocidentais se limitam a difundir ideias nobres, a pregar
bons hábitos e a transmitir lições. As palavras, porém, são mais
misteriosas que seus autores. Escrevemos um simples bilhete, passamos
um telegrama formal, anotamos um recado e nem imaginamos o que
estamos fazendo.
Artefatos
humanos, as palavras carregam a mesma fluidez que define o homem. Em
um ensaio de Juan José Saer, encontro um pensamento do mestre zen
Lin Tsi que descreve isso. “Escondido em seu conglomerado de carne
vermelha há um homem verdadeiro sem situação que, sem cessar,
entra e sai pelas portas de sua casa.” Esse homem escondido, que
está além de todas as circunstâncias, não é uma figura
agradável. Seu interior obscuro está infestado de vísceras e
outros conteúdos repugnantes. Mas não importa se isso nos agrada ou
desagrada. É ali, em silêncio, que a vida se move.
O
silêncio é o cosmos da língua. Pequena língua, ínfima agulha, a
girar no escuro ou, para roubar os versos de Drummond, a flutuar em
um “silencioso cubo de trevas”. Continuo em Drummond: “A soma
da vida é nula./ Mas a vida tem tal poder:/ na escuridão absoluta,/
como líquido, circula”. O cubo, poliedro regular de seis faces,
promete um equilíbrio que, na verdade, não tem. Simboliza, também,
a terceira potência – e quando dizemos: “três ao cubo”, não
falamos de três, mas de nove. Força que não está nem nas faces
quadradas nem no interior vazio, mas que (como insistia Clarice) se
dissimula nas entrelinhas.
A
palavra é muitas vezes um veneno – como nas intrigas de vizinhos,
na retórica de políticos e nos fuxicos das faladeiras. Um dos
relatos da antologia fala do vizir Sáhib Ibn Abbád, que recebeu a
denúncia de um roubo – crime medonho contra a herança de um
órfão. A acusação é justa, mas o vizir sabe que, às vezes, mais
medonha que o ato, é sua transmissão. “A intriga é detestável
ainda que verdadeira”, resume.
A
intriga – como se diz do enredo de um filme – pode ser
eletrizante, mas nem por isso merece confiança. Um dos relatos conta
a história de Abu Attarçúci, o mais avarento dos homens. No fecho,
o autor, Aljáhoiz, um sábio árabe do século IX, se apressa a
observar: “Essas coisas e outras semelhantes ficam muito mais
saborosas caso você as veja com os próprios olhos”. E não se
furta a sujar o que escreveu: “Pois a escrita não retrata todas as
coisas nem revela suas essências, limites e verdades”.
Coisas
falam mais que palavras. Um velho sábio pede que seus discípulos
narrem uma visita ao mercado. Eles descrevem as cores, as iguarias e,
entre elas, um estupendo peixe frito. “E o que ele lhe disse?”, o
mestre pergunta aos alunos. Um deles, cheio de si, logo reage: “E
por acaso um peixe morto e frito fala?”. Furioso, o velho sábio o
emenda: “Vocês alegam ser hábeis estudiosos, mas as coisas lhes
falam e vocês não as entendem!”.
Em
um poema famoso, Charles Baudelaire expõe seu temor a esse mundo
errante: “Túnel que me esconde,/ cheio de vago horror, levando não
sei onde”. O poema se aplica à história do Almutanabbi, autor de
belos versos sobre a generosidade, que é obrigado a explicar por
quê, contrariando o que escreve, é um homem avaro. Ele relembra sua
juventude miserável para mostrar como o real o leva a, mesmo
escrevendo sobre a bondade, praticar a maldade. A poesia nem sempre
vem dos melhores sentimentos.
Em
outro conto, enfurecido com a acusação de que sua ciência não
serve para nada, o alquimista Yúçuf argumenta que ela, por mais
incerta que seja, é mais potente que a ciência infalível dos
farmacêuticos. “Quando se pede alguma coisa aos farmacêuticos,
eles afirmam que a têm, mesmo que não tenham”, compara. A poesia,
ao contrário, é a casa dos que sabem que não têm e, só por isso,
se arriscam a tentar.
José
Castello, in Sábados inquietos
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