Filhos
- diz o poeta - melhor não tê-los. Já o Professor Aníbal Machado
me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo
pode não ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los.
A
conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes
da vida, e de lá arrancara a certeza imperativa de que a procriação
é uma verdade animal, uma coisa que não se discute, fora de alcance
do radar filosófico. “Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos
é o que há de mais importante”.
Engraçado
é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar a melancólica
impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias
Póstumas: “não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa
miséria”.
Filhos,
melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o
pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos,
como sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo
indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.
Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo.
Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo.
Sobretudo
instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o comedimento
quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha
cola... Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter;
vem-me a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia
deserta, de voltar para Minas Gerais, renunciar...
Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences. O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences. O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro.
Stanislaw
Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os
cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da
Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes
por mês, de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de
infância do vendedor de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro
Lessa e Rua México. A princípio, pensou que eu estava
substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro,
mas um dia eu lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e
confessou: “Lá em casa é a mesma coisa”.
Chego
em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para
você, quatro para você - segundo o temperamento e a distração de
cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um
no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta.
Terminada essa operação ostensiva, fico malicioso e furtivo;
secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os cantos e
recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do
exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno
solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um
pente singular, o mais ordinário encontrável na praça, e digo:
“Este é o meu pente; este ninguém usa; neste, sob pretexto algum,
ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos presentes deseja
fazer alguma objeção?”
Estão
todos de acordo. A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal
qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal,
venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas,
meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os
dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os
meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles
desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois,
até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos
os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo
III em plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um pente, meu
reino por um pente!”.
Eu
não fui - diz o primeiro; - eu não fui - diz o segundo; - eu não
fui - diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias e
sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente.
Não
foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina. Minha
mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a
quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro. Um
dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo.
E
sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em
silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los.
Paulo
Mendes Campos,
in Elenco
de cronistas modernos - 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário