Imagem: Google
Que
me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faça-o eu, e a ciência
mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais
pode saltar o capítulo; vá direto a narração. Mas, por menos curioso que seja,
sempre lhe digo que é interessante saber o que se passou na minha cabeça
durante uns vinte a trinta minutos.
Primeiramente, tomei a
figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me
pagava o trabalho com beliscões e confeitos; caprichos de mandarim.
Logo depois, senti-me
transformado na Suma Teológica de
S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata
e estampas; ideia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade; e ainda
agora me lembra que, sendo as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu
sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe
dava a imagem de um defunto.
Ultimamente, restituído
à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir,
calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de
tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte
lhe disse que a viagem me parecia sem destino.
— Engana-se, replicou o
animal, nós vamos a origem dos séculos.
Insinuei que deveria ser
muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que
não fingiu uma dessas coisas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era
descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Baleão, retorquiu-me com um
gesto peculiar a estes dois quadrúpedes: abanou as orelhas. Pela minha parte
fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá de confessar
que senti umas tais ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem
dos séculos, se era tão misteriosa como a origem do Nilo, e sobretudo se valia
alguma coisa mais ou menos do que a conformação dos mesmos séculos: reflexões
de cérebro enfermo. Como ia de olhos fechados, não via o caminho; lembra-me só
que a sensação de frio aumentava com a jornada e que chegou uma ocasião em que
me pareceu entrar na região dos gelos eternos. Com efeito, abri os olhos e vi
que o meu animal galopava numa planície branca de neve, com uma ou outra
montanha de neve, vegetação de neve, e vários animais grandes e de neve. Tudo
neve; chegava gelar-nos um ar de neve. Tentei falar, mas apenas pude grunhir
esta pergunta ansiosa:
— Onde estamos?
— Já passamos o Éden.
— Bem; paramos na tenda
de Abraão.
— Mais se nós caminhamos
para trás! redarguiu montejando a minha cavalgadura.
Fiquei vexado e
aturdido. A jornada entrou a parecer-me enfadonha e extravagante, o frio
incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois — cogitações
de enfermo — dado que chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os
séculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas,
que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando
caminho, e a planície voava debaixo de nossos pés, até que o animal estacou, e
pude olhar mais tranquilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da
imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul.
Talvez, a espaços, me aparecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando
ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do
sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.
Caiu do ar? Destacou-se
da terra? Não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu
então, fitando-me uns olhos rutilantes como o Sol. Tudo nessa figura tinha a
vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano,
porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita
vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito;
mas, ao cabo de algum tempo, quer foi breve, perguntei quem era e como se
chamava: curiosidade de delírio.
— Chama-me Natureza ou
Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última
palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que
produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um
longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse
ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives; não
quero outro flagelo.
— Vivo? Perguntei eu,
enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives.
Não receie perder este andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas
horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo ensandeceste,
vives; e se a tua consciência reouver um instante a sagacidade, tu dirás que
queres viver.
Dizendo isto, a visão
estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora
uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais
quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a
feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna
surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no
coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de
juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e
decrépito dos seres.
— Entendeste-me? disse
ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
— Não respondi; nem
quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto,
ou, se é verdade que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado,
isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza,
tu? A Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um
flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que
Pandora?
— Porque levo na minha
bolsa os bens e os males, e o maior de todos a esperança, consolação dos
homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar
fascina-me.
— Creio; eu não sou
somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te
emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra
ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som
que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim
mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto!
exclamou. Para que tu queres mais alguns instantes de vida? Para devorar e
seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de
sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia,
a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da terra, o sono,
enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te
peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, se não tu? e, se eu
amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso
de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto
que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e
parece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não
tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o
raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor:
eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isso dizendo,
arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e
contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa
única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos
eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos
apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o
espetáculo. A história dos homens e da terra tinha assim uma intensidade que
lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais
lenta e a imaginação mais vaga, enquanto o que eu ali via era a condensação
viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os
séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio
são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, — flagelos e delícias, —
desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via
o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham
a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a
pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza,
o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um
farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia
o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da
espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um
sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem,
flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma
figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro
de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha
da imaginação; e essa figura, — nada menos do que a quimera da felicidade, — ou
lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia
ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.
Ao contemplar tanta
calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora
escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral,
fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota.
— Tens razão, disse eu,
a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando
Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá
de cima o espetáculo. Vamos lá Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é
divertida, mas digere-me.
A
resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que
continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às
gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os
devassos de Comodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma
força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: - "Bem, os séculos
vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a
decifração da eternidade." E fixei os olhos, e continuei a ver as idades,
que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se
alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de
apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias
novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma
primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida
tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a
civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o
tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que
perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a
face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens,
colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida
e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar
o século presente, e atrás dele os futuros. Aquele vinha ágil, destro,
vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão
miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a
mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei a atenção; fitei a vista; ia enfim
ver o último, - o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que
escapava a toda compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por
isso entraram os objetos a trocaram-se; uns cresceram, outros minguaram, outros
perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, - menos o hipopótamo que ali
me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho
de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão,
que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...
Machado de Assis,
in Memórias Póstumas de Brás Cubas (XII capítulo)