sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Um disco fundamental da MPB

Gonzaguinha
De volta ao começo - 1980

Todas as gerações possuem seus poetas, aquelas pessoas dotadas de uma rara sensibilidade que tem o poder de transportar para as palavras todo o espírito de sua época e com isso tornarem-se seu porta-voz. No entanto, é necessário que além do talento com o verbo se vivencie sua época com muito vigor a fim de poder transmitir suas impressões com realismo e não apenas como expectador, tornando-se um cronista com um olhar aguçado sobre os problemas, angústias e esperanças que nutre como ser integrante de um universo em transformação.
Viver plenamente cada instante da vida, participar dos dramas da sociedade, tornar-se referência na afirmação de valores, lutar por um mundo mais humano e com justiça social e ainda por cima ter tempo de ser romântico, transmitindo emoções por todos os lados e firmar uma obra que extrapola seu tempo tornando-a eterna, não é tarefa para qualquer pessoa. É preciso além do talento, ter a argúcia necessária para compreender em plenitude a sua verdadeira importância histórica, perceber-se como um ser integrante desse período vivido e captar cada instante como sendo único, universalizá-lo e transpor com cores vibrantes uma mensagem que será referencia de um tempo em que ator e autor social se confundem. É dessa maneira que podemos identificar e reverenciar figuras ilustres que muitos chamam de ícones de uma geração, pessoas que ajudaram a transformar outras pessoas, tornando-as melhores, contribuindo com sua arte para um mundo mais belo.
Um dos maiores personagens de seu tempo, notadamente os anos setenta foi o cantor e compositor Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha. Iniciando sua carreira nos finais da década de sessenta, sua consagração viria na década seguinte como um de seus poetas mais notáveis. Músico de rara inspiração é um dos poucos casos da música popular brasileira cuja obra é praticamente toda autoral, ou seja, sem parceiros, o que dá a condição de analisá-la sem as fragmentações de pensamento muitas vezes vista em parcerias onde na grande maioria dos casos não se sabe onde começa e termina a participação de um ou de outros compositores/poetas, apesar de seus incontestáveis méritos.
Filho do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, o moleque Gonzaguinha não foi criado no Nordeste, mas no Rio de Janeiro, onde vivenciou todas as sutilezas e malandragens dos morros cariocas, criando uma obra urbana e de grande conteúdo social, cujo reflexo deu-se logo no lançamento de seu primeiro disco lançado em 1973 contendo a canção Comportamento geral, proibida pela censura militar.
Crítico ferrenho dos desmandos da ditadura e da falta de liberdade, aos poucos se foi deixando levar pelos caminhos do coração conseguindo com maestria aliar dramas sociais e políticos com paixão, sem ser piegas, mas sim um incorrigível poeta romântico, capitalizando como poucos o universo feminino. Em 1980, já consagrado, lança um disco fundamental para a compreensão de seu pensamento, intitulado De volta ao começo, conseguindo mesclar a sátira/critica social com belas canções de amor, resultando num trabalho simplesmente arrebatador, um verdadeiro panorama daquela época. Abrindo o LP temos Questão de fé, fazendo uma referência aos exilados que estavam de volta ao país; em Ponto de interrogação, Grito de alerta e Sangrando atinge o clímax de seu talento de incorrigível poeta do amor, criando três canções que são clássicos de nossa canção moderna. Em Pequena memória para um tempo sem memória, A cidade contra o crime, Marcha do povo doido e Achados e perdidos, temos o artista em todo seu vigor tecendo críticas sociais com uma linguagem clara, inteligível e que não deixa dúvidas quanto ao seu conteúdo e significação, aqui o poeta revela-se em completa sintonia e clara percepção de seu tempo/realidade vivida.
Contudo, apesar de misturar amor com dramas sociais cotidianos o que permeia todo o trabalho, é o profundo sentido de esperança de um novo país que se avizinhava, pois ele já não era o homem descrente dos primeiros tempos, havia uma luz de esperança e alegria no ar, e isso fica bem demonstrado no fabuloso samba E vamos a luta, e na alegre e descontraída Bié, bié, Brazil. Em De volta ao começo, que dá nome ao disco, ele faz um retorno ao menino alegre e cheio de esperanças que era e verifica que esse tempo esta de volta. O LP ainda contém Libertad mariposa, composta e interpretada em espanhol, Paixão, Mulher e daí e Da vida, belas canções que se integram plenamente no conjunto da obra.
Um trabalho que marca a trajetória de um grande músico e poeta de nosso tempo que soube como poucos perceber sua própria história e a de nosso país, tornando-se no maior poeta/cronista de sua geração, que infelizmente foi para o andar de cima numa triste manhã do dia 29 de abril de 1991, mas cuja voz rascante/doce e bela juntamente com sua música e poesia vivem eternamente na memória de seus contemporâneos e na história da música popular brasileira, inscrita em letras maiúsculas.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br

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