Gonzaguinha
De volta ao começo - 1980
Todas as gerações possuem seus poetas, aquelas pessoas
dotadas de uma rara sensibilidade que tem o poder de transportar para as
palavras todo o espírito de sua época e com isso tornarem-se seu porta-voz. No
entanto, é necessário que além do talento com o verbo se vivencie sua época com
muito vigor a fim de poder transmitir suas impressões com realismo e não apenas
como expectador, tornando-se um cronista com um olhar aguçado sobre os
problemas, angústias e esperanças que nutre como ser integrante de um universo
em transformação.
Viver plenamente cada instante da vida, participar dos dramas
da sociedade, tornar-se referência na afirmação de valores, lutar por um mundo
mais humano e com justiça social e ainda por cima ter tempo de ser romântico,
transmitindo emoções por todos os lados e firmar uma obra que extrapola seu
tempo tornando-a eterna, não é tarefa para qualquer pessoa. É preciso além do
talento, ter a argúcia necessária para compreender em plenitude a sua
verdadeira importância histórica, perceber-se como um ser integrante desse
período vivido e captar cada instante como sendo único, universalizá-lo e
transpor com cores vibrantes uma mensagem que será referencia de um tempo em
que ator e autor social se confundem. É dessa maneira que podemos identificar e
reverenciar figuras ilustres que muitos chamam de ícones de uma geração,
pessoas que ajudaram a transformar outras pessoas, tornando-as melhores,
contribuindo com sua arte para um mundo mais belo.
Um dos maiores personagens de seu tempo, notadamente os anos
setenta foi o cantor e compositor Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha. Iniciando
sua carreira nos finais da década de sessenta, sua consagração viria na década
seguinte como um de seus poetas mais notáveis. Músico de rara inspiração é um
dos poucos casos da música popular brasileira cuja obra é praticamente toda
autoral, ou seja, sem parceiros, o que dá a condição de analisá-la sem as
fragmentações de pensamento muitas vezes vista em parcerias onde na grande
maioria dos casos não se sabe onde começa e termina a participação de um ou de
outros compositores/poetas, apesar de seus incontestáveis méritos.
Filho do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, o moleque Gonzaguinha
não foi criado no Nordeste, mas no Rio de Janeiro, onde vivenciou todas as
sutilezas e malandragens dos morros cariocas, criando uma obra urbana e de
grande conteúdo social, cujo reflexo deu-se logo no lançamento de seu primeiro
disco lançado em 1973 contendo a canção Comportamento geral, proibida pela
censura militar.
Crítico ferrenho dos desmandos da ditadura e da falta de
liberdade, aos poucos se foi deixando levar pelos caminhos do coração
conseguindo com maestria aliar dramas sociais e políticos com paixão, sem ser
piegas, mas sim um incorrigível poeta romântico, capitalizando como poucos o
universo feminino. Em 1980, já consagrado, lança um disco fundamental para a
compreensão de seu pensamento, intitulado De
volta ao começo, conseguindo mesclar a sátira/critica social com belas
canções de amor, resultando num trabalho simplesmente arrebatador, um verdadeiro
panorama daquela época. Abrindo o LP temos Questão
de fé, fazendo uma referência aos exilados que estavam de volta ao país; em
Ponto de interrogação, Grito de alerta e Sangrando atinge o clímax de seu talento de incorrigível poeta do
amor, criando três canções que são clássicos de nossa canção moderna. Em Pequena memória para um tempo sem memória, A
cidade contra o crime, Marcha do povo doido e Achados e perdidos, temos o artista em todo seu vigor tecendo críticas
sociais com uma linguagem clara, inteligível e que não deixa dúvidas quanto ao
seu conteúdo e significação, aqui o poeta revela-se em completa sintonia e
clara percepção de seu tempo/realidade vivida.
Contudo, apesar de misturar amor com dramas sociais
cotidianos o que permeia todo o trabalho, é o profundo sentido de esperança de
um novo país que se avizinhava, pois ele já não era o homem descrente dos
primeiros tempos, havia uma luz de esperança e alegria no ar, e isso fica bem
demonstrado no fabuloso samba E vamos a
luta, e na alegre e descontraída Bié,
bié, Brazil. Em De volta ao começo,
que dá nome ao disco, ele faz um retorno ao menino alegre e cheio de esperanças
que era e verifica que esse tempo esta de volta. O LP ainda contém Libertad mariposa, composta e
interpretada em espanhol, Paixão, Mulher
e daí e Da vida, belas canções
que se integram plenamente no conjunto da obra.
Um trabalho que marca a
trajetória de um grande músico e poeta de nosso tempo que soube como poucos
perceber sua própria história e a de nosso país, tornando-se no maior
poeta/cronista de sua geração, que infelizmente foi para o andar de cima numa
triste manhã do dia 29 de abril de 1991, mas cuja voz rascante/doce e bela
juntamente com sua música e poesia vivem eternamente na memória de seus
contemporâneos e na história da música popular brasileira, inscrita em letras
maiúsculas.
Luiz Américo Lisboa Junior, in www.luizamerico.com.br
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