Imagem: Google
Há,
desde a entrada, um sentimento de tempo na casa materna. As grades do portão
têm uma velha ferrugem e o trinco se oculta num lugar que só a mão filial
conhece. O jardim pequeno parece mais verde e úmido que os demais, com suas
palmas, tinhorões e samambaias que a mão filial, fiel a um gesto de infância,
desfolha ao longo da haste.
É
sempre quieta a casa materna, mesmo aos domingos, quando as mãos filiais se
pousam sobre a mesa farta do almoço, repetindo uma antiga imagem. Há um
tradicional silêncio em suas salas e um dorido repouso em suas poltronas. O
assoalho encerado, sobre o qual ainda escorrega o fantasma da cachorrinha
preta, guarda as mesmas manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As
coisas vivem como em prece, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos
maternas quando eram moças e lisas. Rostos irmãos se olham dos porta-retratos,
a se amarem e compreenderem mudamente. O piano fechado, com uma longa tira de
flanela sobre as teclas, repete ainda passadas valsas, de quando as mãos
maternas careciam sonhar.
A
casa materna é o espelho de outras, em pequenas coisas que o olhar filial
admirava ao tempo em que tudo era belo: o licoreiro magro, a bandeja triste, o
absurdo bibelô. E tem um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz
morta, com negras aberturas para quartos cheios de sombra. Na estante junto à
escada há um Tesouro da juventude com o dorso puído de tato e de tempo. Foi ali
que o olhar filial primeiro viu a forma gráfica de algo que passaria a ser para
ele a forma suprema da beleza: o verso.
Na
escada há o degrau que estala e anuncia aos ouvidos maternos a presença dos
passos filiais. Pois a casa materna se divide em dois mundos: o térreo, onde se
processa a vida presente, e o de cima, onde vive a memória. Embaixo há sempre
coisas fabulosas na geladeira e no armário da copa: roquefort amassado, ovos frescos,
mangas-espadas, untuosas compotas, bolos de chocolate, biscoitos de araruta -
pois não há lugar mais propício do que a casa materna para uma boa ceia
noturna. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta
com uma repugnância que vem de longe. Em cima ficam os guardados antigos, os
livros que lembram a infância, o pequeno oratório em frente ao qual ninguém, a
não ser a figura materna sabe por que, queima às vezes uma vela votiva. E a
cama onde a figura paterna repousava de sua agitação diurna. Hoje, vazia.
A imagem paterna persiste no interior da
casa materna. Seu violão dorme encostado junto à vitrola. Seu corpo como que se
marca ainda na velha poltrona da sala e como que se pode ouvir ainda o brando
ronco de sua sesta dominical. Ausente para sempre da casa materna, a figura
paterna parece mergulhá-la docemente na eternidade, enquanto as mãos maternas
se fazem mais lentas e as mãos filiais mais unidas em torno à grande mesa, onde
já agora vibram também vozes infantis.
Vinicius
de Moraes
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