segunda-feira, 31 de julho de 2023

Kell Smith e Dorgival Dantas | Samba do Amor

Os domingos

Os domingos eram dias amaldiçoados. Íamos à igreja presbiteriana, da qual era pastor o mesmo missionário que lutara com o demônio para salvar a alma do Fubina, inutilmente. Era muito chato. Não entendíamos nada. Não acreditávamos em nada. Minha mãe acreditava era na Ave-Maria que a Iaiá lhe havia ensinado e que rezava toda noite antes de dormir. Meu pai, então, era descrente. Acho que nem acreditava em Deus. Ele sempre contava o caso de um católico lá em Boa Esperança que não ia à missa e se entregava a episódios de farra. A pedido da mulher, o padre o repreendia, repreensão que ele aceitava compungidamente, de cabeça baixa. Mas era só o padre virar as costas e lá estava ele com a roda de amigos, na venda. E comentava: “Se Deus ficar com muito enjoamento ele vai acabar sozinho naquele ceuzinho dele...” . Meu pai pensava igual. Então, por que era que ele e minha mãe iam à igreja aos domingos, dia tão bom de se vadiar? Minha mãe contava a história de uma moça que se casou com um homem de quem não gostava só pra se livrar dele. Casando, ele pararia de persegui-la com propostas de casamento. Acho que aconteceu igual com meu pai e minha mãe. Iam à igreja pra se livrar do reverendo Davis. Porque era certo que, se eles não fossem, na manhã da segunda-feira o reverendo apareceria para saber as razões por que não haviam ido à igreja na véspera. Acho que o reverendo Davis, traumatizado com o caso do Fubina, que fora para o inferno por não levantar um dedo, tinha medo que o mesmo acontecesse com meu pai e minha mãe.
Tudo era falso. Lembro-me de ter visto um diácono, secretário da escola dominical que, acreditando-se sozinho, deu um murro no rosto do seu filho, meu colega de escola. Lembro-me da cara de dor que ele fez. E houve um incidente que me marcou, embora eu não o entendesse na época. Aconteceu com uma senhora casada aquilo que acontece com muita gente: ela ficou amando um outro homem. Descuidada e apaixonada, não tomou as devidas precauções. O boato correu. Todo mundo ficou sabendo. Todo mundo comentou. Todo mundo acusou. O marido, homem digno, deixou de ir à igreja com toda a família, por causa da vergonha. Passadas muitas semanas, num culto de quarta-feira, ele apareceu. Assentou-se no último banco. Sozinho. Ninguém o procurou. O marido traído também é culpado. Aí, no meio do culto, o reverendo Davis anunciou solenemente: “Tenho o dever de informar a congregação de que a senhora (o nome dela) foi excluída do rol de membros da nossa igreja por haver transgredido o sétimo mandamento, não adulterarás”. Ouviu-se um soluço no fundo da igreja, soluço que mais parecia um grito — e ele saiu correndo da igreja. Ninguém disse nada. Ninguém fez nada. Todo mundo ficou petrificado. Meu pai ficou furioso. “E se esse homem, da profundeza da sua raiva e humilhação, chegar em casa e fizer uma besteira?” Ninguém percebeu que ela havia transgredido o sétimo mandamento num momento de amor. E o conselho da igreja a havia excluído do rol de membros da igreja por desamor. Quem pecou mais? Assim se comportam os que se julgam puros. Não admira que Jesus os detestasse de forma especial. “As meretrizes entrarão no Reino de Deus antes de vós...”

Rubem Alves, in O velho que acordou menino 

O genial Quino

Xico Buark me visita

Essa grafia, Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite no Antonio’s. Gostei como quando eu brincava com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Não é um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e eternamente jovem que se chamasse garoto, Francisco Buarque de Holanda seria dessa raça montanhosa.
Gostei tanto de Chico que o convidei para a minha casa. Com simplicidade ele aceitou.
Apareceu perto das quatro da tarde: naquele tempo, às cinco horas tinha uma lição de música com Vilma Graça, e havia um ano que estava estudando Teoria Musical, para depois estudar piano.
Quanto a momentos decisivos na sua vida, é muito moço para saber se eram de fato decisivos esses momentos, se no final de contas contaram ou não. Nasceu com a estrela na testa: tudo lhe correu fácil e natural como um riacho de roça. Para ele, criar não é muito laborioso. Às vezes está procurando criar alguma coisa e dorme pensando nisso, acorda pensando nisso – e nada. Em geral cansa e desiste. No outro dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e aparentemente negativo.
O problema lhe interessa: fez-me várias perguntas sobre o meu modo de trabalhar. Eu lhe disse: “Você, apesar de rapaz que veio de cidade grande e de uma família erudita, dá impressão de que se deslumbrou ao mesmo tempo que deslumbra os outros com sua fala particular: já se habituou ao sucesso? Dá impressão de que você se deslumbrou com as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão.”
Chico acha que tem cara de bobo porque suas reações são muito lentas, mas que no fundo é um vivo. Só que pôr os pés no chão no sentido prático o atrapalha um pouco. Acha que o sucesso faz parte dessas coisas exteriores que não contribuem em nada para ele: a pessoa tem sua vaidade, alegra-se, mas isso não é importante. Importante é aquele sofrimento de quem procura buscar e achar. Hoje, disse-me, acordei com um sentimento de vazio danado porque ontem terminei um trabalho.
Falamos do processo de criar de Villa-Lobos e ele contou uma frase dele dita a Tom Jobim: Villa-Lobos estava um dia trabalhando em sua casa e havia uma balbúrdia danada em volta. O Tom perguntou: “Como é, maestro, isso não atrapalha?” Ele respondeu: “O ouvido de fora não tem nada a ver com o ouvido de dentro.” E isso Chico invejava. Também gostaria de não ter prazo para entrega das músicas, e de não fazer sucesso: ele é interrompido nas ruas e nas ruas mesmo é obrigado a dar autógrafos.
Chico tem um ar de bom rapaz, desses que todas as mães com filhas casadoiras gostariam de ter como genro. Esse ar de bom rapaz vem da bondade misturada com bom humor, melancolia e honestidade. Tem o ar crédulo, mas diz que não é, é apenas muito preguiçoso.
Claro que gostou quando o maestro Isaac Karabtchevsky dirigiu “A banda” no Teatro Municipal, mas o que lhe interessa mesmo é criar. Desde pequeno faz versinhos. Pedi-lhe que fizesse assim de improviso um versinho e que, para pô-lo à vontade, eu esperaria na copa. Daí a minutos Chico me chamou, rindo: Como Clarice pedisse/ Um versinho que eu não disse/ Me dei mal/ Ficou lá dentro esperando/ Mas deixou seu olho olhando/ Com cara de Juízo Final.
Perguntei-lhe se já experimentara sentir-se em solidão ou se sua vida tinha sempre esse brilho justificável. Eu aconselhei que de vez em quando ficasse sozinho, senão seria submergido, pois até o amor excessivo dos outros podia submergir uma pessoa. Ele concordou e disse que sempre que podia dava suas retiradas.
Logo que entrou para Arquitetura, quando começou a trocar a régua T pelo violão, a coisa parecia vagabundagem. Mas depois a família se conformou.
Estava em fase de procura e no dia anterior acabara um trabalho que era só de música, que exigia prazo. Mas para uma canção nova estava sempre disponível. A coisa mais importante para Chico é trabalho e amor, e, como indivíduo, quer exatamente ter a liberdade para trabalhar e amar. De brincadeira perguntei-lhe o que era amor. “Não sei definir”, disse-me, “e você?” “Nem eu”, respondi.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Quiche com salada

O grupo de Whatsapp chamava-se Almoço de Páscoa e comunicava algo como “as quiches são com a gente, as saladas são com a gente, o resto é com vocês”. O resto! Estava na cara que era putaria, né? Se fosse vinho, diriam “vinho”. Se fosse sobremesa, diriam “sobremesa”. O resto… era putaria. Vesti saia comprida rodada porque estava bem naquela semana, estava solar. Quando fico solar, acredito que posso ser um pouco hippie. Depois passa (graças a Deus). Eu tinha um namorado treze anos mais velho e isso prometia uma vida maravilhosa para mim. Uma vida cinco em um. Namorado mas também pai, professor, mestre e mentor. O namoro duraria cinco semanas porque, eu viria então a descobrir, ele era chato e tinha problemas de intestino.
Eu havia parado com o antidepressivo Escitalopram que, apesar do nome, não me deixava ficar excitada nem com sessenta e sete casais transando ao mesmo tempo. E não digo isso porque estou inventando um número qualquer, trata-se de um vídeo pornô japonês que esse mesmo grupo Almoço de Páscoa tinha mandado para mim semanas antes. Eram sessenta e sete casais japoneses transando ao mesmo tempo num parque ensolarado. Fazia um ano que esse grupo tentava me chamar para um desses almoços, sempre com um papo de “galera do cinema descolada, pra falar sobre a vida”, mas eu nunca ia porque não conhecia ninguém (e porque as pessoas de cinema que estão de fato fazendo cinema não perdem tempo andando com gente descolada, e para falar sobre a vida eu só acreditava pagando a alguém que tivesse estudado muito).
Mas, como dizia, eu tinha parado com o antidepressivo fazia cerca de três meses, tempo suficiente para que não tivesse sobrado nadinha no meu sangue. E estava numa fase estranhíssima, sentindo tesão até em boneco de posto.
Parar de tomar um remédio que havia me transmutado num legume sexual me devolvia agora um ânimo juvenil que nem na mais tenra adolescência experimentei. Eu era um garoto de quinze anos que dividia as emoções do mundo entre “livro merda de geografia prova amanhã” e “qualquer pele encostada em mim me fará contorcer de amor”. Foi quando por fim topei ver qual era a da galera das quiches e saladas. Magra, entediada de morte com a vida sexual comezinha da moça urbana falsamente ousada, e pronta para viver aquele momento.
Ao chegar ao grande evento, uma decepção: as meninas realmente estavam na cozinha lavando as saladas. Vestidas. As meninas que ainda chegariam, realmente trariam quiches. E elas viriam vestidas. E pretendiam continuar vestidas. O vinho que levei realmente foi aberto, e “era exatamente o que queria dizer ‘o resto é com vocês’”. Os rapazes conversavam na varanda sobre “que tipo de música eletrônica ainda dá pra encarar”, enquanto o mais feinho deles atacava de DJ usando o Bluetooth do celular. Então era só isso? Pessoas fofas fazendo amigos e saladas e quiches? Vamos ouvir sucessos dos anos 1980 e rir “das coisas que lembramos”? Calma, quando eu menos esperava, a coisa toda começou.
Como eu consegui entrar na Globo? Mandei só currículo ou fiz alguma oficina de roteiro lá dentro? E o primeiro filme? Vendi o argumento ou me encomendaram a partir de uma sinopse? E livro? Que editores eu conhecia? Eu poderia ler “um livro” da esposa talentosíssima e depois indicar? Ela não veio hoje, mas mandou dizer que me adora. E no jornal, quem eram meus contatos? Eu poderia ler os textos do marido da esposa talentosíssima e indicar? Achei que meu corpo seria usado de forma louca, perigosa e psiquiatricamente inesquecível, mas era só uma galera desempregada querendo usar minha agenda. Tem coisa mais podre e degradante?
Mas aquilo não ficaria assim. Eu tinha feito laser nos pelos mais intrínsecos dos grandes lábios, veja, achando que seria uma noite longa. E os caras vêm me pedir contato profissional? Aquilo despertou em mim uma sede de vingança ainda maior que a libido desenfreada com que eu estava tendo de lidar naqueles dias.
Forjei então o mais sincero amor verdadeiro por todas as pessoas lá presentes. E comecei a pegar no cabelo delas, no joelho delas. Eram desempregadinhos tão bonitos, tão cheios de esperança, tão limpos. Acho que mordi mesmo o ombro de uma das moças, agradecendo a taça que ela me trouxe. E então propus uma brincadeira. Uma coisa leve, despretensiosa, só para a gente se conhecer mesmo, todos ali, na paz de Cristo. Vai que, se eu gostasse de alguém, depois ajudava na carreira, né?
A gente viraria a garrafa, como no jogo da verdade, mas, em vez de “pergunta e responde”, seria “manda e obedece”. Assim: Juju pede a Maria uma mordiscadinha na biqueta, Maria mordisqueta; Daniel pede a Maria uma lambidinha libidinosa na orelha, Maria lambelha; Maria pede a Daniel um tapinha na bunda, Daniel estabunda. Enquanto ainda estavam tímidos, era eu a dar as ordens que eles dariam. Era eu a colocar fala na boca daqueles personagens tão bonitos e limpos e desempregados.
E assim, tomados por álcool e pela energia inebriante do meu “descompensamento” químico, os desempregados todos começaram a transar muito, enquanto eu só observava. Quando “dei por mim”, estava numa poltroninha e na minha frente, num pobre sofá branquinho, uma quantidade infinita de possibilidades “buracais” se expressava. Um dos desempregados tentou me puxar pelo pé, como um morto que não desiste, mas um braço perdido, do epicentro do amor amorfo, puxou o desempregado para dentro.
Não deixei que me tocassem, não deixei que tirassem minha roupa. De mim não levaram um só número de telefone ou nome de “pessoa influente”. Nunca li nenhum texto deles. Nunca os indiquei a ninguém. Como era eu a rodar a garrafa, fiz de um jeito que ela nunca apontasse para mim. Nas poucas vezes que quase apontou, enganei a todos, me movendo centímetros ou dando um imperceptível peteleco na garrafa. Era fácil enganá-los. Tão bonitos e limpos e desempregados.

Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu

Notas do Subsolo | 5


Então aí está, finalmente aí está o tal choque com a realidade – balbuciei enquanto corria como uma flecha escada abaixo. – Isto, é claro, não é mais o papa deixando Roma e indo para o Brasil; é claro, não é um baile no lago de Como! “Você é um canalha”, passou-me de relance pela cabeça, “se agora está rindo dessas coisas”.
Não importa! – exclamei, respondendo a mim mesmo. – Agora está tudo perdido mesmo!
Não restava nem sinal dos outros, mas dava na mesma: eu sabia aonde eles tinham ido.
Junto à entrada estava parado um cocheiro noturno solitário, metido num capote de lã grosseira e todo salpicado da neve úmida que caía e que parecia morna. O ar estava abafado como numa estufa. O cavalinho malhado e peludo também estava todo salpicado e tossia, lembro-me bem disso. Atirei-me para o trenó de madeira; mas, mal havia levantado um pé para subir, a lembrança de Símonov dando-me pouco antes os seis rublos me fez fraquejar e deixei-me cair no trenó como um saco de farinha.
Não! É preciso muita coisa para resgatar isso! – gritei. – Mas hei de resgatar, ou então esta noite mesmo serei reduzido a nada. Vamos embora!
Partimos. Minha cabeça girava em turbilhão.
Implorar minha amizade de joelhos eles não vão. Isso é uma miragem, uma miragem infame, nojenta, romântica e fantástica; é o mesmo que o baile no lago de Como. Por isso eu tenho que dar uma bofetada em Zverkov! Sou obrigado a dar. Portanto, está decidido: estou agora voando para ir dar uma bofetada nele”.
Mais depressa, vamos!
O cocheiro deu uma sacudida nas rédeas.
Assim que eu entrar, dou-lhe a bofetada. Será que é necessário dizer algumas palavras introdutórias antes da bofetada? Não! Vou simplesmente entrar e esbofeteá-lo. Eles estarão todos sentados na sala e ele no divã com Olímpia. Maldita Olímpia! Uma vez ela riu da minha cara e me recusou. Vou arrastar Olímpia pelos cabelos e Zverkov pelas orelhas! Não, é melhor agarrá-lo por uma das orelhas e obrigá-lo a caminhar por toda a sala. Eles talvez comecem a me bater e me expulsem de lá. Na certa é o que vai acontecer. Que seja! De qualquer modo, quem primeiro deu a bofetada fui eu: a iniciativa foi minha e, de acordo com o código de honra, isso é o que importa. Ele já está desonrado e não se limpará da bofetada com surra nenhuma, apenas com um duelo. Ele terá de bater-se. E eles que me batam agora, que batam! Gentalha! Trudoliúbov é que vai bater mais: ele é muito forte. Ferfítchkin vai me agarrar de lado e pelos cabelos, provavelmente. Não importa! É para isso que estou indo. Suas cabeças de carneiro serão obrigadas a destrinchar, finalmente, o trágico de tudo isso! Quando eles estiverem me arrastando para a porta eu lhes gritarei que eles não valem o meu mindinho”.
Mais depressa, cocheiro, mais depressa! – gritava eu. Ele até estremeceu e sacudiu o chicote. Meu grito soara completamente selvagem.
O duelo será assim que clarear, está decidido. Quanto ao departamento, isso será o fim. Há pouco Ferfítchkin disse lepartamento, em vez de departamento. Mas onde conseguir as pistolas? Bobagem! Peço um adiantamento do salário e compro as pistolas. E a pólvora e as balas? Isso quem resolve é o padrinho. E como conseguir fazer tudo isso antes de clarear? E onde vou arrumar um padrinho? Não tenho conhecidos... Bobagem! – gritei, agitando-me ainda mais, como num turbilhão. – Bobagem! O primeiro que eu encontrar na rua e que eu abordar será obrigado a ser meu padrinho, do mesmo modo que é obrigado a salvar uma pessoa que está se afogando. Até as hipóteses mais excêntricas devem ser admitidas. E se amanhã eu pedisse ao próprio diretor para ser meu padrinho, ele também teria de concordar, por puro espírito cavalheiresco, e teria de guardar segredo. Anton Antônytch...”
O problema é que naquele exato instante eu percebia, de maneira mais clara e viva do que qualquer outra pessoa no mundo, todo o torpe absurdo de minhas suposições e todo o reverso da medalha, mas...
Mais depressa, cocheiro, mais depressa, patife, mais depressa!
Que é isso, patrão! – disse a força campesina.
De repente, um frio me percorreu.
Não seria melhor... não seria melhor... se eu fosse direto para casa agora? Ó meu Deus! Para que fui me oferecer ontem para aquele jantar! Mas não, não posso! E meu passeio de três horas da mesa até a lareira? Não, eles, eles e ninguém mais devem me pagar por esse passeio! Eles têm que lavar essa desonra!”
Mais depressa!
E se eles me entregarem à polícia? Não se atreverão! Ficarão com medo do escândalo. E se Zverkov, por desprezo, se recusar a duelar? Isso é até muito provável, mas então eu provarei para eles... Se isso acontecer, vou correndo amanhã à estação da posta na hora de sua partida, agarro-o pela perna, arranco seu capote quando ele for subir na diligência. Finco os dentes na sua mão e o mordo. “Vejam todos até que ponto podem levar um homem desesperado!”. Não importa que ele bata na minha cabeça com todos os outros atrás dele. Vou gritar para a plateia: “Vejam o moleque que parte para seduzir as circassianas com minha cusparada na cara!”.
Evidentemente, tudo estará terminado depois disso. Meu departamento terá desaparecido da face da terra. Serei preso, processado, demitido do emprego, encarcerado e enviado para a Sibéria, para viver lá sob vigilância. Tanto faz! Daqui a quinze anos, quando me libertarem, irei me arrastar no encalço dele, em farrapos, na miséria. Hei de procurar até encontrá-lo em alguma cidade de província. Ele estará casado e feliz. Terá uma filha já adulta. Eu lhe direi: “Olhe, monstro, veja minhas faces fundas e meus farrapos! Perdi tudo – carreira, felicidade, arte, ciência, a mulher amada, e tudo por sua causa. Aqui estão as pistolas. Eu vou descarregar a minha pistola e... e eu o perdoo”. Então atiro para o ar e desapareço para sempre...
Quase caí em prantos, embora naquele momento soubesse muito bem que tudo aquilo vinha de Sílvio e da Mascarada, de Lérmontov. E de repente eu senti uma vergonha terrível, tão terrível, que mandei parar o cavalo, desci do trenó e fiquei de pé na neve, no meio da rua. O cocheiro me olhava espantado e suspirava.
O que eu poderia fazer? Não podia ir para lá, era absurdo, mas tampouco podia abandonar as coisas como estavam, porque, senão, o resultado disso seria... Meu Deus! Como posso deixar isso de lado? Depois de tais insultos!
Não! – exclamei, atirando-me de novo dentro do trenó –, isso já estava traçado, é o meu destino! Vamos, vamos depressa para!
E, na impaciência, bati com o punho no pescoço do cocheiro.
Que há com você, por que está brigando? – gritou o pobre mujique, fustigando, porém, o pangaré com tanto ímpeto que ele começou a escoicear.
A neve úmida caía em flocos. Desabotoei meu casaco, sem me importar com ela. Esqueci de tudo o mais, porque havia me decidido definitivamente pela bofetada e sentia com pavor que ela teria de acontecer e que teria de ser obrigatoriamente naquele momento, e nenhuma força seria capaz de me impedir. Nas ruas desertas lampejavam lugubremente os lampiões através da bruma nevada, semelhantes a tochas de enterro. A neve penetrou dentro do meu capote, do meu paletó, da minha gravata, derretendo; não me cobri: tudo estava perdido mesmo! Finalmente chegamos. Saltei fora do trenó meio inconsciente, subi correndo os degraus e pus-me a bater na porta com as mãos e os pés. Sentia uma fraqueza terrível nos joelhos. Não tardaram a abrir, como se já soubessem da minha chegada. (De fato, Símonov havia prevenido que talvez viesse mais alguém, que era preciso avisar por lá e tomar algumas precauções. O local era uma das “lojas de modas” que já há muito tempo foram fechadas pela polícia. Durante o dia eram de fato lojas, mas, à noite, pessoas com recomendação podiam ser recebidas ali.) Atravessei com passos rápidos a loja escura e entrei no salão, já meu conhecido, onde brilhava uma única vela, e parei atônito: eles não estavam lá!
Onde estão eles? – perguntei a alguém.
Mas, pelo visto, eles já tinham se dispersado...
Diante de mim estava uma mulher com um sorriso idiota – era a própria dona do lugar, que me conhecia ligeiramente. Um minuto depois abriu-se uma porta e entrou outra pessoa.
Sem prestar atenção a nada, fiquei caminhando pela sala e creio que falava comigo mesmo. Era como se tivesse sido salvo da morte e alegremente sentia isso com todo o meu ser: pois eu ia dar a bofetada, sem dúvida eu ia dar a bofetada! Mas agora eles não estavam mais lá e... tudo havia desaparecido, tudo havia mudado! Olhei em volta. Ainda não me dera conta totalmente da situação. Olhei mecanicamente para a moça que acabara de entrar: na minha frente perpassou um rosto fresco, jovem, um pouco pálido, com sobrancelhas retas e escuras e um olhar sério, que parecia um pouco espantado. Isso me agradou imediatamente; eu a teria odiado se ela estivesse sorrindo. Pus-me a olhá-la mais fixamente e com certo esforço: não tinha conseguido ainda organizar meus pensamentos. Havia algo simples e bondoso naquele rosto, mas era, de certo modo, estranhamente sério. Estou certo de que isso não a favorecia num lugar como aquele e que nenhum daqueles bobalhões havia prestado atenção nela. Ademais, ela não podia ser chamada de beldade, embora fosse alta e forte, de boa constituição. Sua roupa era extraordinariamente simples. Algo perverso me mordeu: marchei diretamente em sua direção.
Sem querer, vi-me de relance num espelho. Meu rosto desfigurado me pareceu extremamente repulsivo: pálido, cruel, vil, com os cabelos em desordem. “Não importa, estou feliz com isso”, pensei, “parecer a ela repulsivo me deixa de fato satisfeito; gosto disso...”

Dostoiévski, in Notas do subsolo

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Ana Cañas e Ney Matogrosso | Paralelas

1511 – Aymaco | Becerrillo

A insurreição dos caciques Agüeynaba e Mabodamaca foi esmagada e todos os prisioneiros marcharam para a morte.
O capitão Diego de Salazar descobre uma velha, escondida entre os arbustos, mas não a atravessa com a espada.
Vamos – diz. – Leva esta carta ao governador, que está em Caparra.
A velha abre os olhos aos poucos. Tremendo, estende os dedos.
E se põe a caminhar. Caminha como menino pequeno, com o balançar de um ursinho, e leva o envelope como estandarte ou bandeira.
Quando a velha está à distância de um tiro de balestra, o capitão solta Becerrillo.
O governador Ponce de León ordenou que Becerrillo receba o dobro de salário que um soldado balestrero, por ser descobridor de emboscadas e caçador de índios. Não têm pior inimigo os índios de Porto Rico.
A rajada derruba a velha. Becerrillo, duras as orelhas, arregalados os olhos, a devorará de uma só vez.
Senhor cachorro – suplica – , eu vou levar esta carta ao senhor governador.
Becerrillo não entende a língua do lugar, mas a velha mostra-lhe o envelope vazio.
Não me faça mal, senhor cachorro.
Becerrillo cheira o envelope. Dá umas voltas em torno deste saco de ossinhos trêmulos que geme palavras, levanta uma pata e mija.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Hagar, o Horrível

Aço em flor

para Koji Sakaguchi,
portal amigo entre o
Japão e o Brasil

Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.

Paulo Leminski, in Toda Poesia

A pesca maravilhosa

Uma associação de rimas é tão legítima como uma associação de ideias. E mais imprevista, sim. Nem me venham com essa de que não há nada mais previsível do que uma rima. Deem-se as mesmas rimas a diferentes poetas e de cada poeta brotará um poema diferente. Agora, se o rio do poeta não for lá muito piscoso — que culpa tem o anzol?

Mário Quintana, in Caderno H

O Realismo brasileiro de Almeida Júnior

Caipira picando fumo (1893), de José Ferraz de Almeida Júnior

Desenredo

Do narrador a seus ouvintes:
Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.
Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.
Ela — longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.
Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
Mas.
Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.
Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
Mais.
No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã.
A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.
Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?
Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta.
Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
E pôs-se a fábula em ata.

Guimarães Rosa, in Tutameia 

Cartas para minha avó

Quando passei no mestrado, aos trinta e três anos, senti uma diferença em mim, como se tivesse passado de fase. As coisas que me incomodavam muito deixaram de incomodar, e passei a entender o que de fato era importante na minha vida.
Decidi que participaria de mais eventos acadêmicos e, em 2013, um trabalho meu foi aceito para ser apresentado em um seminário na Universidade Nacional de La Plata, na Argentina. Foi minha segunda experiência internacional. Senti que seria necessário dialogar mais com outras epistemologias do Sul, de conhecer mais profundamente o pensamento das intelectuais feministas da América do Sul, uma vez que em minha formação isso me foi negado.
Fui de avião até Buenos Aires e, de lá, peguei um ônibus até La Plata. Foi uma experiência muito ruim, pois sofri muito assédio de homens na rua. “Brasileira”, “mulata”, “bonita”, fui obrigada a escutar quando ainda estava em Buenos Aires. Ao chegar na cidade, foi infernal ter que lidar com pessoas na rua me parando para tocar nos meus cabelos, como se nunca tivessem visto uma pessoa negra, me senti num zoológico. Até me entender com o mapa e encontrar o hostel onde eu ficaria hospedada, vivi momentos horríveis, vó.
Quando finalmente cheguei no hostel, a recepcionista me abordou tocando nas minhas tranças. Estava tão irritada com o que havia passado na rua, que respondi: “Olha, precisa tomar um vinho antes pra achar que tem intimidade pra me tocar”. Ela ficou sem graça e até o dia da minha saída me tratou com formalidade. Já na universidade, entre as colegas que participavam do evento, a recepção foi acolhedora. Apesar de ter dificuldades de falar o espanhol, compreendo bem e pude assistir a algumas das apresentações sem grandes problemas. O que aprendi ali ampliou o meu olhar em relação ao debate feminista.
No dia da minha apresentação, dividi mesa com acadêmicas da Argentina, Bolívia, Venezuela. Meu trabalho foi bem recebido e gerou discussões interessantes. Não participei das festas pós-apresentações porque, infelizmente, não me sentia segura naquela cidade. Evitava andar nas ruas ou fazer qualquer coisa fora do hostel que não tivesse ligação com o evento. Como eu ainda teria alguns dias até o meu voo de volta, quando o seminário acabou, eu decidi pegar um ônibus e ir até Mar del Plata.
Sempre quis conhecer outros países e cidades e me pareceu uma ótima oportunidade para explorar. Lembro da minha alegria em pegar um daqueles ônibus de dois andares e de ir olhando a estrada enquanto seguíamos viagem. Foi uma sensação de liberdade inexplicável. Queria poder aproveitar, nem que por dois dias, o máximo daquela viagem e daquele tempo sozinha. Assim que cheguei, deixei a mala no hotel e fui andar pela cidade. Caminhei pelas praias até escurecer, sentindo a brisa do mar. No dia seguinte, saí cedo para andar sem rumo e sem pressa. Foram apenas dois dias naquela cidade, mas senti que ali colei minhas asas, do mesmo modo como minha mãe deve ter sentido quando Dara e eu compreendemos os motivos pelos quais ela fora tão bruta durante nossa infância. Precisei lidar com o assédio novamente quando retornei a Buenos Aires para pegar o voo de volta para o Brasil, mas nada me tirou aquele sentimento de liberdade.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Kiss From a Rose (Seal Cover) | Martin Miller Session Band & Lari Basilio

Um único fim

Todos trabalhamos para um único fim, alguns consciente e deliberadamente e outros mesmo sem saber. Heráclito, acredito, afirmou: “Mesmo dormindo, os homens são trabalhadores e colaboradores no que diz respeito ao que decorre no universo.” Não obstante, colaboram de maneiras distintas. Até mesmo aqueles que criticam os eventos e tentam se opor e impedi-los cooperam abundantemente, pois o universo precisa até mesmo de homens como eles.
Logo, resta descobrir qual classe de trabalhador você é, pois, com certeza, aquele que governa o todo o usará corretamente e o acolherá entre outros colaboradores cujos trabalhos conduzem a um fim. Entretanto, na peça, não atue no papel cujo verso é mesquinho e ridículo na peça, citado por Crisipo.

Marco Aurélio, in Meditações

Descobrimento

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

Mário de Andrade, in Antologia Poética

Cartas na Rua | 17


Depois de três anos, passei a ser um dos regulares. Isto significava feriados pagos (os substitutos não recebiam os feriados) e semana de quarenta horas, com dois dias de folga. O Stone também foi obrigado a me indicar como homem de revezamento para cinco rotas diferentes. Essa era minha obrigação — cobrir cinco rotas diferentes. Com o tempo eu aprenderia bem os itinerários, além dos atalhos e das armadilhas de cada rota. A cada dia seria mais fácil. Eu podia começar a cultivar aquele ar de alguém que se sente confortável em sua posição.
De algum modo, eu não estava muito feliz. Eu não era o tipo de homem que deliberadamente procurava o sofrimento, o trabalho ainda era duro o suficiente, mas de certa maneira o encanto dos meus dias de substituto já não estava mais lá — o não-saber-que-diabos iria me acontecer a seguir.
Alguns dos regulares se aproximaram e apertaram minha mão.
Parabéns — eles diziam.
Beleza — eu respondia.
Parabéns pelo quê? Eu não tinha feito nada. Agora eu fazia parte do clube. Eu era um dos garotos. Poderia ficar lá por anos, pleitear finalmente minha própria rota. Poderia ganhar presentes de Natal do meu pessoal. E quando eu telefonasse alegando uma doença, diriam a algum substituto fodido: “Onde está o carteiro regular? Você está atrasado. O carteiro de sempre nunca se atrasa”.
Assim, lá eu estava. Então chegou um boletim advertindo que nenhum quepe ou equipamento deveria ser deixado sobre as caixas dos carteiros. A maioria dos rapazes colocava os quepes lá. Aquilo não fazia mal a ninguém e economizava uma viagem até o vestiário. Agora, depois de três anos colocando meu quepe todo dia ali em cima, eu recebia uma ordem para não fazê-lo.
Bem, eu continuava chegando de ressaca e não podia me lembrar de tolices como essa do quepe. De modo que ali estava o meu quepe no dia posterior à ordem.
O Stone veio correndo com sua notificação. Dizia que era contra as regras e os regulamentos deixar qualquer equipamento sobre a caixa. Enfiei a notificação no bolso e continuei a organizar as cartas. O Stone se sentou em sua cadeira e ficou de olho em mim. Todos os outros carteiros tinham posto os quepes em seus armários. Exceto eu e um outro — um cara chamado Marty. E O Stone foi até o Marty e disse:
Bem, Marty, leia a ordem. Seu quepe não pode ficar em cima da caixa.
Sinto muito, senhor. É o hábito, o senhor sabe. Sinto muito.
Marty apanhou o quepe e o levou correndo escada acima até o armário.

Na manhã seguinte, voltei a me esquecer do quepe. O Stone veio com a notificação.
O papel dizia que era contra as regras e os regulamentos deixar qualquer equipamento sobre a caixa.
Enfiei o relatório no bolso e continuei a organizar as cartas.
Na manhã seguinte, assim que entrei, pude ver que O Stone me vigiava. Ele fazia aquilo de um modo bastante deliberado. Esperava para ver o que eu faria com o meu quepe. Deixei-o esperar um pouco. Depois tirei o quepe da cabeça e o coloquei sobre a caixa.
O Stone correu com a notificação.
Não a li. Joguei-a na lata de lixo, deixei meu quepe lá mesmo e continuei a organizar as cartas.
Podia ouvir O Stone na máquina de escrever. Havia raiva no som das teclas.
Eu me perguntava como ele tinha conseguido aprender a datilografar.
Ele retornou. Entregou-me uma segunda notificação.
Olhei para ele.
Não preciso ler isso. Já sei o que diz. Diz que não li a primeira notificação.
Joguei a segunda notificação na lata do lixo.
O Stone correu de volta para sua máquina.
Entregou-me uma terceira notificação.
Veja bem — eu respondi —, já sei o que todas essas coisas dizem. A primeira notificação era porque deixei o quepe em cima da caixa. A segunda era porque não li a primeira. A terceira é por não ter lido nem a primeira nem a segunda.
Olhei para ele, e depois joguei a notificação no lixo sem lê-la.
Agora, posso jogá-las fora à mesma velocidade que você as datilografa. Isso pode levar horas, e logo um de nós vai começar a parecer ridículo. Está nas suas mãos.
O Stone voltou à sua cadeira e se sentou. Não datilografou mais nada. Ficou apenas ali sentado, os olhos fixos em mim.

Não fui trabalhar no dia seguinte. Dormi até o meio-dia. Não telefonei. Então fui até o prédio da Central. Informei-lhes da minha missão. Colocaram-me em frente à mesa de uma velha magra. Seu cabelo era grisalho e ela tinha um pescoço muito magro e que entortava no meio de súbito. Isso empurrava a cabeça para a frente, e ela olhava para mim por sobre os óculos.
Sim?
Quero pedir demissão.
Demissão?
Sim, demissão.
E o senhor é carteiro regular?
Sou.
Tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc — começou a fazer, com seus lábios secos.
Deu-me os formulários apropriados e eu me sentei ali para preenchê-los.
Há quanto tempo está nos Correios?
Três anos e meio.
Tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc, tsc — continuou —, tsc, tsc, tsc, tsc.
E isso foi tudo. Segui para casa para encontrar Betty e abrimos uma garrafa.
Mal sabia que em poucos anos estaria de volta como funcionário e que trabalharia todo curvado sobre um banquinho por quase doze anos.

Charles Bukowski, in Cartas na Rua

3D

 

Capítulo 85 | O Cimo da Montanha

Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. E entrei a amar Virgília com muito mais ardor, depois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela. Assim, a presidência não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga de Malabar, com que tomamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também.
Nos primeiros dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se houvesse separação, a tristeza de um e de outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertando-nos com abraços.
Minha boa Virgília!
Meu amor!
Tu és minha, não?
Tua, tua...
E assim reatamos o fio da aventura, como a sultana Scheherazade o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós o céu tranquilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a descer…

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

O principezinho

Estava o principezinho sentado, com as mãos e a cabeça sobre os joelhos, e dormia. A seu lado, brinquedos esperavam: a boneca de plumas, o lhama, a bolsa contendo pequeninas coisas. O sono era tão mineral que o principezinho se deixou carregar por dois estranhos, e se naquela postura estava, naquela postura ficou. Desceram-no e depositaram-no, com seus objetos, ao pé da escarpa.
Pessoas experimentadas inferiram que ele se perdera na montanha, e adormecera com fome. Outras vislumbraram no rosto semidescoberto uma expressão de medo — como a de menino que presenciasse um bombardeio aéreo —, e sua atitude seria a de quem se protege contra perigo iminente. Mas, observando bem, sentia-se a paz daquele sono, que nem a picareta dos homens batendo na rocha viera perturbar, aquele sono que envolvia todo o menino numa peculiar camada de silêncio, e o tornava indiferente ao desconforto da posição e ao frio da altura.
Sua condição de príncipe ressaltava das vestes e adornos, que eram nobres, e se confirmava no lavor de ouro dos brinquedos. Cingia-o um colar de pérolas; a boneca tinha o ombro traspassado por um grande alfinete de prata.
Alçaram de novo o principezinho e levaram-no para a cidade grande, onde é hoje objeto de pasmo geral. Continua dormindo. Jornais cinematográficos espalharam pelo mundo sua imagem. Agora, chega uma revista com a fotografia do principezinho, sempre dormindo, sempre enrodilhado, e tão distante de nossa curiosidade como dos asteroides minúsculos que o seu colega, imaginado por Saint-Exupéry, gostava de percorrer.
Todo o barulho da terra não faria essa criança acordar. Dorme há quinhentos anos, desde o dia em que os pais a colocaram a uma altura de cinco mil metros, protegendo-lhe o sono com amuletos. É um príncipe da nação dos Incas, e maravilhoso acaso foi esse, de gente rústica, há trinta anos à procura de um tesouro, deparar com o seu pequeno túmulo congelado.
O gelo conservara pois, por sua simples virtude, no alto de um pico chileno, uma criança nascida quando não existiam nem Pizarro, nem Chile, nem Brasil, nem América. Foi-se o glorioso Império dos Incas, com sua pompa, e nos deixou apenas formas artísticas, modeladas por arquitetos, escultores, joalheiros e tecelões, ou simples palavras, incorporadas às línguas em uso; o ser humano contemporâneo dessas formas e símbolos, este se despedira para sempre, e nos tristes quíchuas de hoje não erra mais que o seu reflexo longínquo. Mas o menininho, acocorado e dormindo o mesmo sono iniciado há cinco séculos, aí está agora, a cativar-nos com o seu mistério.
Envelhecemos depressa. O tempo de uma criança dormir, e Maias e Incas desaparecem, e o Império Espanhol na América se inaugura e se faz em escombros, e o português também: ela ainda não acordou, e já nascem e morrem Camões, Cervantes, Shakespeare, Racine, São Vicente de Paulo, Newton; e vêm os direitos do homem, e surgem teorias novas, e novas guerras. Em seu sono infinito, o menino passou pelos homens e suas obras, por instituições, ideias, sonhos, vidas e mortes, sempre dormindo em postura humilde, cercado de ídolos, cachos de cabelos, dentes de leite. Nada mudou para ele. O mundo é talvez um sonhar acordado. Dorme, menininho, dorme.

Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Constantinople (Kiya Tabassian, dir.) & Ablaye Cissoko | Traversées

Presságio

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar…

Fernando Pessoa, in Antologia Poética

O ator precoce

Uma sauna suntuosa. Ela está de roupão, deslumbrante. Clima de filme erótico italiano dos anos 1970. O jardineiro abre a porta, sedutor.

ELA Entra, Geraldo.
ELE Mas e se o patrão chegar?
ELA Ele que se dane. Você não percebe que eu só quero você, Geraldo?
Eles se beijam.
ELE Não posso ficar, já tá no final do meu expediente.
ELA Pode deixar que eu te pago hora extra.
ELE Assim você me deixa louco…
Ela faz menção de apalpá-lo fora de quadro. Percebe-se pela face do ator que ele está tendo um orgasmo. Ela não entende se é sério ou atuação. Ele deixa claro que é sério, afastando ela. Ele olha pra câmera e faz menção de cortar, constrangido. Ela respira fundo. Isso sempre acontece com ela.
DIRETOR Corta! O que é que aconteceu, Romero?
ELE Perdi o controle.
DIRETOR Que coisa de garoto, Romero.
ELE Primeira vez que me acontece isso.
DIRETOR Tava há muito tempo sem botar pra fora?
ELE Tava acumulando pra dar volume. Aí ela deu uma pegada ali que foi fatal.
DIRETOR Agora a gente faz o quê?
ELE Roda outra.
DIRETOR Direto?
Ator olha para o próprio membro.
ELE Quinze minutinhos.
DIRETOR Quinze?
ELE Vinte.
DIRETOR Vinte minutos pro ator!
Atriz cochicha para o ator.
ELA Quer que eu não dê a pegada?
ELE Se você puder evitar essa pegada, vai facilitar pra mim.
Mesma cena anterior.
ELA Entra, Geraldo.
ELE Mas e se o patrão chegar?
ELA Ele que se foda. Você não percebe que eu só quero você, Geraldo?
Eles se beijam. Ele estremece. Tenta segurar e não consegue. Atriz impaciente.
DIRETOR Corta! De novo, Romero?
ELE Desculpa aí, gente.
ELA Eu tô fazendo alguma coisa errada?
ELE Não, esse é que é o problema. Você tá fazendo bem demais.
DIRETOR Quer cortar alguma marca?
ELE Agora que você falou, se tiver condição dela não me beijar…
DIRETOR Mas é um filme pornô.
ELE Mas não precisava me beijar desse jeito.
DIRETOR Ellen, tenta não beijar o Romero desse jeito. Vem cá, Romero.
Eles vão para um canto.
DIRETOR Quer que eu resolva na edição?
ELE Como é que funciona isso?
DIRETOR Eu faço um geral contigo e o close eu faço com outra caceta.
ELE Com a caceta de quem?
DIRETOR Sei lá que caceta. Com a minha caceta.
ELE Eu não sei como é sua caceta, pode pegar mal pra mim.
DIRETOR Com a caceta que você escolher. Escolhe uma caceta. Quer a caceta do Rubens?
Operador de boom, negro, aparece em quadro, já abrindo a calça.
RUBENS Quem quer minha caceta?
ELE Obrigado, Rubens. Mas pode ser com a minha caceta, mesmo.
Rubens fecha o zíper, decepcionado.
DIRETOR Tem certeza?
ELE Claro. Sou profissional, porra.
DIRETOR Então vai lá.
Ele olha para o próprio instrumento, decepcionado.
ELE Calma aí. Agora? Não pode ser depois do almoço?
Diretor respira fundo, impaciente, e grita para a equipe.
DIRETOR Almoço!
Mesma cena anterior.
ELA Entra, Geraldo.
Ele estremece.
DIRETOR Corta! Porra, Geraldo.
ELE Ela precisava mesmo falar com essa voz?
DIRETOR Fecha na caceta do Rubens.
Rubens, animado.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

Deseja o quê?