Estava
o principezinho sentado, com as mãos e a cabeça sobre os joelhos, e
dormia. A seu lado, brinquedos esperavam: a boneca de plumas, o
lhama, a bolsa contendo pequeninas coisas. O sono era tão mineral
que o principezinho se deixou carregar por dois estranhos, e se
naquela postura estava, naquela postura ficou. Desceram-no e
depositaram-no, com seus objetos, ao pé da escarpa.
Pessoas
experimentadas inferiram que ele se perdera na montanha, e adormecera
com fome. Outras vislumbraram no rosto semidescoberto uma expressão
de medo — como a de menino que presenciasse um bombardeio aéreo —,
e sua atitude seria a de quem se protege contra perigo iminente. Mas,
observando bem, sentia-se a paz daquele sono, que nem a picareta dos
homens batendo na rocha viera perturbar, aquele sono que envolvia
todo o menino numa peculiar camada de silêncio, e o tornava
indiferente ao desconforto da posição e ao frio da altura.
Sua
condição de príncipe ressaltava das vestes e adornos, que eram
nobres, e se confirmava no lavor de ouro dos brinquedos. Cingia-o um
colar de pérolas; a boneca tinha o ombro traspassado por um grande
alfinete de prata.
Alçaram
de novo o principezinho e levaram-no para a cidade grande, onde é
hoje objeto de pasmo geral. Continua dormindo. Jornais
cinematográficos espalharam pelo mundo sua imagem. Agora, chega uma
revista com a fotografia do principezinho, sempre dormindo, sempre
enrodilhado, e tão distante de nossa curiosidade como dos asteroides
minúsculos que o seu colega, imaginado por Saint-Exupéry, gostava
de percorrer.
Todo
o barulho da terra não faria essa criança acordar. Dorme há
quinhentos anos, desde o dia em que os pais a colocaram a uma altura
de cinco mil metros, protegendo-lhe o sono com amuletos. É um
príncipe da nação dos Incas, e maravilhoso acaso foi esse, de
gente rústica, há trinta anos à procura de um tesouro, deparar com
o seu pequeno túmulo congelado.
O
gelo conservara pois, por sua simples virtude, no alto de um pico
chileno, uma criança nascida quando não existiam nem Pizarro, nem
Chile, nem Brasil, nem América. Foi-se o glorioso Império dos
Incas, com sua pompa, e nos deixou apenas formas artísticas,
modeladas por arquitetos, escultores, joalheiros e tecelões, ou
simples palavras, incorporadas às línguas em uso; o ser humano
contemporâneo dessas formas e símbolos, este se despedira para
sempre, e nos tristes quíchuas de hoje não erra mais que o seu
reflexo longínquo. Mas o menininho, acocorado e dormindo o mesmo
sono iniciado há cinco séculos, aí está agora, a cativar-nos com
o seu mistério.
Envelhecemos
depressa. O tempo de uma criança dormir, e Maias e Incas
desaparecem, e o Império Espanhol na América se inaugura e se faz
em escombros, e o português também: ela ainda não acordou, e já
nascem e morrem Camões, Cervantes, Shakespeare, Racine, São Vicente
de Paulo, Newton; e vêm os direitos do homem, e surgem teorias
novas, e novas guerras. Em seu sono infinito, o menino passou pelos
homens e suas obras, por instituições, ideias, sonhos, vidas e
mortes, sempre dormindo em postura humilde, cercado de ídolos,
cachos de cabelos, dentes de leite. Nada mudou para ele. O mundo é
talvez um sonhar acordado. Dorme, menininho, dorme.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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