Essa
grafia, Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, numa noite
no Antonio’s. Gostei como quando eu brincava com palavras em
criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por
achar engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado
pela fama. Se Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco
melancólica de Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar
os outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir
conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Não é
um garoto, mas se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo
e eternamente jovem que se chamasse garoto, Francisco Buarque de
Holanda seria dessa raça montanhosa.
Gostei
tanto de Chico que o convidei para a minha casa. Com simplicidade ele
aceitou.
Apareceu
perto das quatro da tarde: naquele tempo, às cinco horas tinha uma
lição de música com Vilma Graça, e havia um ano que estava
estudando Teoria Musical, para depois estudar piano.
Quanto
a momentos decisivos na sua vida, é muito moço para saber se eram
de fato decisivos esses momentos, se no final de contas contaram ou
não. Nasceu com a estrela na testa: tudo lhe correu fácil e natural
como um riacho de roça. Para ele, criar não é muito laborioso. Às
vezes está procurando criar alguma coisa e dorme pensando nisso,
acorda pensando nisso – e nada. Em geral cansa e desiste. No outro
dia a coisa estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita,
nascida naquele momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior
inconsciente e aparentemente negativo.
O
problema lhe interessa: fez-me várias perguntas sobre o meu modo de
trabalhar. Eu lhe disse: “Você, apesar de rapaz que veio de cidade
grande e de uma família erudita, dá impressão de que se deslumbrou
ao mesmo tempo que deslumbra os outros com sua fala particular: já
se habituou ao sucesso? Dá impressão de que você se deslumbrou com
as próprias capacidades, entrou numa roda-viva e ainda não pôs os
pés no chão.”
Chico
acha que tem cara de bobo porque suas reações são muito lentas,
mas que no fundo é um vivo. Só que pôr os pés no chão no sentido
prático o atrapalha um pouco. Acha que o sucesso faz parte dessas
coisas exteriores que não contribuem em nada para ele: a pessoa tem
sua vaidade, alegra-se, mas isso não é importante. Importante é
aquele sofrimento de quem procura buscar e achar. Hoje, disse-me,
acordei com um sentimento de vazio danado porque ontem terminei um
trabalho.
Falamos
do processo de criar de Villa-Lobos e ele contou uma frase dele dita
a Tom Jobim: Villa-Lobos estava um dia trabalhando em sua casa e
havia uma balbúrdia danada em volta. O Tom perguntou: “Como é,
maestro, isso não atrapalha?” Ele respondeu: “O ouvido de fora
não tem nada a ver com o ouvido de dentro.” E isso Chico invejava.
Também gostaria de não ter prazo para entrega das músicas, e de
não fazer sucesso: ele é interrompido nas ruas e nas ruas mesmo é
obrigado a dar autógrafos.
Chico
tem um ar de bom rapaz, desses que todas as mães com filhas
casadoiras gostariam de ter como genro. Esse ar de bom rapaz vem da
bondade misturada com bom humor, melancolia e honestidade. Tem o ar
crédulo, mas diz que não é, é apenas muito preguiçoso.
Claro
que gostou quando o maestro Isaac Karabtchevsky dirigiu “A banda”
no Teatro Municipal, mas o que lhe interessa mesmo é criar. Desde
pequeno faz versinhos. Pedi-lhe que fizesse assim de improviso um
versinho e que, para pô-lo à vontade, eu esperaria na copa. Daí a
minutos Chico me chamou, rindo: Como Clarice pedisse/ Um versinho
que eu não disse/ Me dei mal/ Ficou lá dentro esperando/ Mas deixou
seu olho olhando/ Com cara de Juízo Final.
Perguntei-lhe
se já experimentara sentir-se em solidão ou se sua vida tinha
sempre esse brilho justificável. Eu aconselhei que de vez em quando
ficasse sozinho, senão seria submergido, pois até o amor excessivo
dos outros podia submergir uma pessoa. Ele concordou e disse que
sempre que podia dava suas retiradas.
Logo
que entrou para Arquitetura, quando começou a trocar a régua T pelo
violão, a coisa parecia vagabundagem. Mas depois a família se
conformou.
Estava
em fase de procura e no dia anterior acabara um trabalho que era só
de música, que exigia prazo. Mas para uma canção nova estava
sempre disponível. A coisa mais importante para Chico é trabalho e
amor, e, como indivíduo, quer exatamente ter a liberdade para
trabalhar e amar. De brincadeira perguntei-lhe o que era amor. “Não
sei definir”, disse-me, “e você?” “Nem eu”, respondi.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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