Quando
passei no mestrado, aos trinta e três anos, senti uma diferença em
mim, como se tivesse passado de fase. As coisas que me incomodavam
muito deixaram de incomodar, e passei a entender o que de fato era
importante na minha vida.
Decidi
que participaria de mais eventos acadêmicos e, em 2013, um trabalho
meu foi aceito para ser apresentado em um seminário na Universidade
Nacional de La Plata, na Argentina. Foi minha segunda experiência
internacional. Senti que seria necessário dialogar mais com outras
epistemologias do Sul, de conhecer mais profundamente o pensamento
das intelectuais feministas da América do Sul, uma vez que em minha
formação isso me foi negado.
Fui
de avião até Buenos Aires e, de lá, peguei um ônibus até La
Plata. Foi uma experiência muito ruim, pois sofri muito assédio de
homens na rua. “Brasileira”, “mulata”, “bonita”, fui
obrigada a escutar quando ainda estava em Buenos Aires. Ao chegar na
cidade, foi infernal ter que lidar com pessoas na rua me parando para
tocar nos meus cabelos, como se nunca tivessem visto uma pessoa
negra, me senti num zoológico. Até me entender com o mapa e
encontrar o hostel onde eu ficaria hospedada, vivi momentos
horríveis, vó.
Quando
finalmente cheguei no hostel, a recepcionista me abordou tocando nas
minhas tranças. Estava tão irritada com o que havia passado na rua,
que respondi: “Olha, precisa tomar um vinho antes pra achar que tem
intimidade pra me tocar”. Ela ficou sem graça e até o dia da
minha saída me tratou com formalidade. Já na universidade, entre as
colegas que participavam do evento, a recepção foi acolhedora.
Apesar de ter dificuldades de falar o espanhol, compreendo bem e pude
assistir a algumas das apresentações sem grandes problemas. O que
aprendi ali ampliou o meu olhar em relação ao debate feminista.
No
dia da minha apresentação, dividi mesa com acadêmicas da
Argentina, Bolívia, Venezuela. Meu trabalho foi bem recebido e gerou
discussões interessantes. Não participei das festas
pós-apresentações porque, infelizmente, não me sentia segura
naquela cidade. Evitava andar nas ruas ou fazer qualquer coisa fora
do hostel que não tivesse ligação com o evento. Como eu ainda
teria alguns dias até o meu voo de volta, quando o seminário
acabou, eu decidi pegar um ônibus e ir até Mar del Plata.
Sempre
quis conhecer outros países e cidades e me pareceu uma ótima
oportunidade para explorar. Lembro da minha alegria em pegar um
daqueles ônibus de dois andares e de ir olhando a estrada enquanto
seguíamos viagem. Foi uma sensação de liberdade inexplicável.
Queria poder aproveitar, nem que por dois dias, o máximo daquela
viagem e daquele tempo sozinha. Assim que cheguei, deixei a mala no
hotel e fui andar pela cidade. Caminhei pelas praias até escurecer,
sentindo a brisa do mar. No dia seguinte, saí cedo para andar sem
rumo e sem pressa. Foram apenas dois dias naquela cidade, mas senti
que ali colei minhas asas, do mesmo modo como minha mãe deve ter
sentido quando Dara e eu compreendemos os motivos pelos quais ela
fora tão bruta durante nossa infância. Precisei lidar com o assédio
novamente quando retornei a Buenos Aires para pegar o voo de volta
para o Brasil, mas nada me tirou aquele sentimento de liberdade.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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