domingo, 28 de fevereiro de 2021
Mudanças
“Eu tenho a certeza que toda a gente já teve a experiência de ler um livro, e achar que foi vibrante, com vivacidade, colorido e excitante. E que, talvez algumas semanas mais tarde, tenham-no lido outra vez e considerá-lo simples e vazio. Bem, não foi o livro que mudou: a pessoa é que mudou.”
Doris Lessing, in The golden notebook
O mato
Rubem Braga, in A traição das elegantes
Descansa na paz do nosso travesseiro
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em Busca do Borogodó Perdido
sábado, 27 de fevereiro de 2021
Amor próprio
Voltaire, in Dicionário Filosófico
Antiperipléia
Guimarães Rosa, in Tutameia
Janeiro: Como nasceram as estrelas
Clarice Lispector, in Doze lendas brasileiras: Como nasceram as estrelas
Um salmo
Quem tocar vai louvar,
quem cantar vai louvar,
o que pegar a ponta de sua saia
e fizer uma pirueta, vai louvar.
Os meninos, os cachorros,
os gatos desesquivados,
os ressuscitados,
o que sob o céu mover e andar
vai seguir e louvar.
O abano de um rabo, um miado
u’a mão levantada, louvarão.
Esperai a deflagração da alegria.
A nossa alma deseja,
o nosso corpo anseia
o movimento pleno:
cantar e dançar TE-DEUM.
Adélia Prado
Dois runs para regar o acordo
Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
Autocontrole
Não aspiro ao autocontrole. Autocontrole significa: querer atuar num ponto aleatório das irradiações infinitas da minha existência espiritual. Mas tenho de traçar estes círculos em torno de mim, por isso é melhor fazê-lo passivamente no puro espanto de admiração perante o imenso complexo e levar para casa apenas a força que, e contrario , essa visão oferece.
Franz Kafka, in Aforismos reunidos
O fim está próximo! (De novo?)
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
Lavoura Arcaica / 14
Saltei num instante para cima da laje que pesava sobre meu corpo, meus olhos de início foram de espanto, redondos e parados, olhos de lagarto que abandonando a água imensa tivesse deslizado a barriga numa rocha firme; fechei minhas pálpebras de couro para proteger-me da luz que me queimava, e meu verbo foi um princípio de mundo: musgo, charcos e lodo; e meu primeiro pensamento foi em relação ao espaço, e minha primeira saliva revestiu-se do emprego do tempo; todo espaço existe para um passeio, passei a dizer, e a dizer o que nunca havia sequer suspeitado antes, nenhum espaço existe se não for fecundado, como quem entra na mata virgem e se aloja no interior, como quem penetra num círculo de pessoas em vez de circundá-lo timidamente de longe; e na claridade ingênua e cheia de febre logo me apercebi, espiando entre folhagens suculentas, do voo célere de um pássaro branco, ocupando em cada instante um espaço novo; pela primeira vez senti o fluxo da vida, seu cheiro forte de peixe, e o pássaro que voava traçava em meu pensamento uma linha branca e arrojada, da inércia para o eterno movimento; e mal saindo da água do meu sono, mas já sentindo as patas de um animal forte galopando no meu peito, eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para o meu uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da minha própria história, não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso! vendo o sol se enchendo com seu sangue antigo, retesando os músculos perfeitos, lançando na atmosfera seus dardos de cobre sempre seguidos de um vento quente zunindo nos meus ouvidos, me rondando o sono quieto de planta, despenteando o silêncio do meu ninho, me espicaçando o couro nas pontas da sua luz metálica, me atirando numa súbita insônia ardente, que bolhas nos meus poros, que correntes nos meus pelos enquanto perseguia fremente uma corça esguia, cada palavra era uma folha seca e eu nessa carreira pisoteando as páginas de muitos livros, colhendo entre gravetos este alimento ácido e virulento, quantas mulheres, quantos varões, quantos ancestrais, quanta peste acumulada, que caldo mais grosso neste fruto da família! eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos!
Raduan Nassar, in Lavoura Arcaica
Estátua de mãe
Stella Maris Rezende, in A mocinha do mercado central
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Um dicionário
Noemi Jaffe, in Não está mais aqui quem falou
Fingimento de estar infeliz
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
Pour Mémoire
nesta lembrança.
Não perguntes a respeito
que viro mãe-leoa
ou pedra-lage lívida
ereta
na grama
muito bem-feita.
Estas são as fazes da minha fúria.
Sob a janela molhada
passam guarda-chuvas
na horizontal,
como em Cherbourg,
mas não era este
o nome.
Saudade em pedaços,
estação de vidro.
Água.
As cartas
não mentem jamais:
virá ver-te outra vez
um homem de outro continente.
Não me toques,
foi minha cortante resposta
sem palavras
que se digam
dentro do ouvido
num murmúrio.
E mais não quer saber
a outra, que sou eu,
do espelho em frente.
Ela instrui:
deixa a saudade em repouso
(em estação de águas)
tomando conta
desse objeto claro
e sem nome.
Ana Cristina Cesar
Os embrulhos do Rio
Rubem Braga, in A traição das elegantes
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
O rio Grande
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
Torto Arado / 6
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado