Rose Rondelli foi minha primeira
namorada. Namorada no sentido Manuel Bandeira da coisa, que afirmou
ter sido um coelhinho-da-índia a sua primeira. Rose Rondelli, que
morreu em janeiro de 2004, de câncer, num apartamento do Leblon, a
vedete mais bonita de todas dos anos 60, um par de coxas que ia daqui
até o outro canto da cama, uma bunda do tempo em que elas ainda não
tinham formado uma nação à parte do corpo da mulher, Rose foi a
primeira namorada das muitas que nunca tive.
Não guardo mágoa, pelo contrário.
Todas só me fizeram bem ao tratamento contra a timidez e a falta de
sentido em existirmos. Agradeço penhorado, e com os olhos úmidos
elas aqui me têm novamente em regresso. Joelhos dobrados sobre as
letrinhas, em funeral de saudade pela mais gostosa, professora e
impossível de todas.
Eu desconheci Rose Rondelli pela primeira
vez quando tinha sei lá quantos anos de infância, mais ou menos
quando eu me afundava no vício acachapante, ô droga!, que onda!, do
pó de pirlimpimpim batido com refresco de groselha. Rose era uma
uva. Me buliversava um tremor inaugural do que eu não tinha ideia
que fosse. Me desfalecia os sentidos primevos do que eu sequer
supunha ser. Me tornava pulsativa a pílula de vida futura que
começava a fazer nexo quando a palavra amor piscava numa guarânia
do Anísio Silva.
Me levou no beiço como todas as outras
fariam em seguida. Me arreliava a razão como eu me deixaria prostrar
estupefato diante das melhores que encontrei na fila. Me desfocava o
cerebelo para o umbigo do divino. Me fez, na aula de português, como
se vê agora, que eu lhe voasse sôfrego até a catedral do amor e
comungasse beato de sua hóstia consagrada, no justo momento em que a
professora ensinava a não se começar uma frase com pronome oblíquo.
Me desculpe.
Rose Rondelli era a Miss Campeonato de um
programa da Mayrink Veiga quando eu botei meus ouvidos na direção
de sua fala brejeira. Era atriz do “Noites Cariocas” na TV Rio
quando eu coloquei meus óculos míopes sobre o violão em dó
sustenido redondo que tinha formatado nas ancas. Era a vedete
serelepe gritando “Ooooooooooooooobaaaaa!” na escadaria do teatro
rebolado de Walter Pinto. Mais do que as da Sandra Sandré, na
“Revista do Rádio”, suas fotos vibravam o que ainda estava por
ser explicado, e agora vejo que nunca será, a um moleque batuta
apenas nos prazeres do bafo-bafo. A primeira namorada traz a tábua
de mandamentos e aponta o caminho. “Rosebud”, estava escrito no
trenó feliz da infância de Orson Welles. Eu, menino nos trópicos,
escrevi “Rosendelli” no carrinho de rolimã em que me joguei
ladeira abaixo até aqui. Foi ela.
Quer dizer que havia algo ainda mais
eletrizante do que passar cerol de vidro moído na linha da pipa e
cortar quem ousasse opor resistência nos mares do céu? Quer dizer
que havia pêlos mais macios que os fios do algodão-doce? Foi ela
quem deu o toque.
Rose, a mais certinha das certinhas do
Lalau, um par de peitos que olhava altivo e em uníssono na mesma
direção do horizonte, nunca para mim. Descansa na paz do nosso
travesseiro. Foi a primeira namorada no sentido catecismo de que na
mesma mensagem elas trazem o anúncio da salvação da carne, a
demolição da calma, a comunhão dos santos, a repetição dos
pecados, a vida eterna e a impossibilidade do amém.
São elas, de tempos em tempos, que vão
se revezando pacientes na arte de oferecer aos meninos novas porções
de mistério que substituam o bola-ou-búlica do primeiro quintal.
São elas, algumas muito más, como as
louras de olhos verdes que caminham sobre as árvores do Jardim
Botânico, outras muito boas, branqueias flanando diáfanas sobre a
Praia do Diabo, são elas que tornam um dia depois do outro um
acontecimento adulto de alguma forma suportável para quem já viveu
o frisson infantil de gritar “marraio feridô sou rei” e quer,
precisa, sonha reinventar um pique-esconde de tantas delícias.
Rondelli, que Deus a tenha embalsamada na
glória de seu espartilho, foi a pedra de toque, embora lhe
imaginasse a pele acolchoada, de que as aventuras do Sítio do
Pica-Pau Amarelo, as reinações de Narizinho, o poço do Visconde,
os doze trabalhos de Hércules, o circo do Carequinha e o telecatch
Montilla podiam ser desdobráveis pelo resto da existência. Mudariam
apenas os brinquedos e o pátio.
Foi o que eu percebi, sempre sob
inspiração de Rose, quando pela primeira vez, no escurinho do
cinema, a mão desceu pelo ombro da moça, milímetro a milímetro
sendo conquistado, e os cinco dedos chegaram sorrateiros como
serpentes do Indiana Jones ao ninho que arfava assustado e finalmente
consentido. Mudariam apenas os sabores da marmelada de goiaba e do
“bento que bento é o frade” a se sussurrar sobre o cangote das
amarelinhas.
Aprendi com Rose, colocando um copo de
água em cima do rádio, que no pomar do amor maduro haveria mais
frutas que o pêra-uva-ou-maçã do casamento japonês.
Gramaticalmente errado como sempre, me quedo saudoso agora com a rosa
que se foi. Sinto-lhe os dentes cravados na polpa da manga-espada que
ofereço.
Quando eu me apaixonei por Rose Rondelli
jurei que era para sempre. Um amor inquebrável como disco azul do
Braguinha, o assobio do Pererê do Ziraldo e o garoto correndo atrás
da bola. E tem sido, e tem sido bom. Por mais que essas novas vedetes
me apareçam de nomes trocados, tatuem os glúteos e afinem as coxas,
eu reconheço a minha vedete inaugural no jeitão com que cada uma
delas se comporta na escadaria de teatro rebolado que é o espetáculo
amoroso. Rangem, rugem, anunciam alegrias variadas que eu, ignorante
em outra língua, traduzo sempre para os braços levantados de Rose
Rondelli. Ela está gritando o que me revelou ser o mantra único da
felicidade. O sentido básico da vida, o que não tem segredo nem
nunca terá discussão. Quem gritar mais vezes venceu.
Ooooooooooooooobaaaaa!
Joaquim Ferreira dos Santos, in Em Busca do Borogodó Perdido
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