domingo, 28 de fevereiro de 2021

Descansa na paz do nosso travesseiro

          Rose Rondelli foi minha primeira namorada. Namorada no sentido Manuel Bandeira da coisa, que afirmou ter sido um coelhinho-da-índia a sua primeira. Rose Rondelli, que morreu em janeiro de 2004, de câncer, num apartamento do Leblon, a vedete mais bonita de todas dos anos 60, um par de coxas que ia daqui até o outro canto da cama, uma bunda do tempo em que elas ainda não tinham formado uma nação à parte do corpo da mulher, Rose foi a primeira namorada das muitas que nunca tive.
Não guardo mágoa, pelo contrário. Todas só me fizeram bem ao tratamento contra a timidez e a falta de sentido em existirmos. Agradeço penhorado, e com os olhos úmidos elas aqui me têm novamente em regresso. Joelhos dobrados sobre as letrinhas, em funeral de saudade pela mais gostosa, professora e impossível de todas.
Eu desconheci Rose Rondelli pela primeira vez quando tinha sei lá quantos anos de infância, mais ou menos quando eu me afundava no vício acachapante, ô droga!, que onda!, do pó de pirlimpimpim batido com refresco de groselha. Rose era uma uva. Me buliversava um tremor inaugural do que eu não tinha ideia que fosse. Me desfalecia os sentidos primevos do que eu sequer supunha ser. Me tornava pulsativa a pílula de vida futura que começava a fazer nexo quando a palavra amor piscava numa guarânia do Anísio Silva.
Me levou no beiço como todas as outras fariam em seguida. Me arreliava a razão como eu me deixaria prostrar estupefato diante das melhores que encontrei na fila. Me desfocava o cerebelo para o umbigo do divino. Me fez, na aula de português, como se vê agora, que eu lhe voasse sôfrego até a catedral do amor e comungasse beato de sua hóstia consagrada, no justo momento em que a professora ensinava a não se começar uma frase com pronome oblíquo. Me desculpe.
Rose Rondelli era a Miss Campeonato de um programa da Mayrink Veiga quando eu botei meus ouvidos na direção de sua fala brejeira. Era atriz do “Noites Cariocas” na TV Rio quando eu coloquei meus óculos míopes sobre o violão em dó sustenido redondo que tinha formatado nas ancas. Era a vedete serelepe gritando “Ooooooooooooooobaaaaa!” na escadaria do teatro rebolado de Walter Pinto. Mais do que as da Sandra Sandré, na “Revista do Rádio”, suas fotos vibravam o que ainda estava por ser explicado, e agora vejo que nunca será, a um moleque batuta apenas nos prazeres do bafo-bafo. A primeira namorada traz a tábua de mandamentos e aponta o caminho. “Rosebud”, estava escrito no trenó feliz da infância de Orson Welles. Eu, menino nos trópicos, escrevi “Rosendelli” no carrinho de rolimã em que me joguei ladeira abaixo até aqui. Foi ela.
Quer dizer que havia algo ainda mais eletrizante do que passar cerol de vidro moído na linha da pipa e cortar quem ousasse opor resistência nos mares do céu? Quer dizer que havia pêlos mais macios que os fios do algodão-doce? Foi ela quem deu o toque.
Rose, a mais certinha das certinhas do Lalau, um par de peitos que olhava altivo e em uníssono na mesma direção do horizonte, nunca para mim. Descansa na paz do nosso travesseiro. Foi a primeira namorada no sentido catecismo de que na mesma mensagem elas trazem o anúncio da salvação da carne, a demolição da calma, a comunhão dos santos, a repetição dos pecados, a vida eterna e a impossibilidade do amém.
São elas, de tempos em tempos, que vão se revezando pacientes na arte de oferecer aos meninos novas porções de mistério que substituam o bola-ou-búlica do primeiro quintal.
São elas, algumas muito más, como as louras de olhos verdes que caminham sobre as árvores do Jardim Botânico, outras muito boas, branqueias flanando diáfanas sobre a Praia do Diabo, são elas que tornam um dia depois do outro um acontecimento adulto de alguma forma suportável para quem já viveu o frisson infantil de gritar “marraio feridô sou rei” e quer, precisa, sonha reinventar um pique-esconde de tantas delícias.
Rondelli, que Deus a tenha embalsamada na glória de seu espartilho, foi a pedra de toque, embora lhe imaginasse a pele acolchoada, de que as aventuras do Sítio do Pica-Pau Amarelo, as reinações de Narizinho, o poço do Visconde, os doze trabalhos de Hércules, o circo do Carequinha e o telecatch Montilla podiam ser desdobráveis pelo resto da existência. Mudariam apenas os brinquedos e o pátio.
Foi o que eu percebi, sempre sob inspiração de Rose, quando pela primeira vez, no escurinho do cinema, a mão desceu pelo ombro da moça, milímetro a milímetro sendo conquistado, e os cinco dedos chegaram sorrateiros como serpentes do Indiana Jones ao ninho que arfava assustado e finalmente consentido. Mudariam apenas os sabores da marmelada de goiaba e do “bento que bento é o frade” a se sussurrar sobre o cangote das amarelinhas.
Aprendi com Rose, colocando um copo de água em cima do rádio, que no pomar do amor maduro haveria mais frutas que o pêra-uva-ou-maçã do casamento japonês. Gramaticalmente errado como sempre, me quedo saudoso agora com a rosa que se foi. Sinto-lhe os dentes cravados na polpa da manga-espada que ofereço.
Quando eu me apaixonei por Rose Rondelli jurei que era para sempre. Um amor inquebrável como disco azul do Braguinha, o assobio do Pererê do Ziraldo e o garoto correndo atrás da bola. E tem sido, e tem sido bom. Por mais que essas novas vedetes me apareçam de nomes trocados, tatuem os glúteos e afinem as coxas, eu reconheço a minha vedete inaugural no jeitão com que cada uma delas se comporta na escadaria de teatro rebolado que é o espetáculo amoroso. Rangem, rugem, anunciam alegrias variadas que eu, ignorante em outra língua, traduzo sempre para os braços levantados de Rose Rondelli. Ela está gritando o que me revelou ser o mantra único da felicidade. O sentido básico da vida, o que não tem segredo nem nunca terá discussão. Quem gritar mais vezes venceu. Ooooooooooooooobaaaaa!

Joaquim Ferreira dos Santos, in Em Busca do Borogodó Perdido

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