Para alimentar a saudade do meu primeiro
amor, comia retratos, rezava sem fé, mastigava hóstia, subtraía-me,
entregava-me às amoras e seus aromas. Não havia mundo lá fora. Só
amor, dentro e fora de mim. Virei dois, como a mulher de duas almas
que visitava a minha rua. Faltavam-me rédeas para frear meu amor.
Ele me roubava para o fundo do quintal, afogava-me nos rios,
transportava-me para os pastos, subia-me nos galhos das árvores,
mesmo sem fruto para colher. Eu amava, ou melhor, por inteiro, eu só
era amor.
Tranquei minha boca, não por falta da
palavra. A felicidade abraçava-me, embaraçava-se em meu corpo,
salgava-me com o sal de sua saliva. A felicidade se escondia no porão
da casa, e cabia a mim visitá-la. Ser feliz era estar em pecado, eu
me culpava e negociava o fingimento de estar infeliz. Caminhar por
sobre o pecado demandava muitas pernas. Mentir-me em tristeza
preservava a felicidade que me assaltara, eu suspeitava.
Ela decapitava um tomate para cada
refeição. Isso, depois de tomar do martelo e espancar, com a força
dos seus músculos, os bifes. Sofrer amaciava, talvez ela pensasse.
Batia forte tornando possível escutar o ruído na rua. O martelar
violento avisava aos vizinhos que comeríamos carne no almoço. Eu
padecia pelo medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a
carne.
Depois, com o sal na ponta dos dedos, ela
salgava os bifes, lentamente, dos dois lados, como o rio da cidade. O
sal agia sobre a carne morta e uma água ensanguentada se empossava
no fundo da travessa de louça. O gato da minha irmã suspirava
diante da sangrenta água. Os bifes eram finos — magros como eu —
pelo amargor dos espancamentos. Ao depois de muita tortura, a carne
se transfigurava em pedaços de rendas esgarçadas.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo
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