quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O fim está próximo! (De novo?)

          Segundo um grupo de literalistas bíblicos, o mundo deveria ter acabado no dia 23 de setembro de 2017. Essa foi a interpretação deles de um capítulo do Apocalipse de João, o último livro do Novo Testamento, que prevê o fim dos tempos.
Segundo João, o fim dos tempos é anunciado por uma série de sinais, muitos deles cósmicos; coisas estranhas que acontecem nos céus, traduzidas como uma mensagem de Deus para os homens: Preparem-se, pois o fim está próximo! Desta vez, o “sinal” foi um alinhamento planetário nas constelações de Virgem e de Leão que, em 23 de setembro, atingiu uma espécie de auge. Estavam lá Mercúrio, Vênus, Marte, Sol, Lua e Júpiter. No dia 23, Júpiter deixou a constelação de Virgem, seguindo sua trajetória cósmica. João (Apocalipse 12: 1-5) relata a aparição de um “sinal grandioso no céu”, a Visão da Mulher e do Dragão: Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz.
Apareceu então outro sinal no céu: um grande Dragão, cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas; sua cauda arrastava um terço das estrelas do céu, lançando-as para a terra. O Dragão colocou-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho. Ela deu à luz um filho, que irá reger todas as nações com um cetro de ferro [...]. A profecia e sua interpretação é o tema do documentário O sinal, do canal a cabo americano da AT&T, a empresa telefônica.
O “filho” sendo parido é associado a Júpiter deixando a constelação da Virgem no dia 23; o alinhamento planetário e as estrelas mais brilhantes são a “coroa de doze estrelas”. Já o Dragão de Fogo é associado pelos literalistas à aparição do Planeta X, um planeta que muitos insistem (erroneamente) em afirmar que existe nos confins do sistema solar, a uma distância aproximadamente noventa vezes maior do que a do Sol e da Terra. Resumindo, os literalistas entrevistados no documentário afirmam com absoluta convicção que o Apocalipse chegaria no dia 23 de setembro de 2017, conforme profetizado por João. Felizmente, o documentário não fica apenas no catastrofismo, apresentando também a versão científica da história.
Nisso, representa o perene debate entre a ciência e a religião; neste caso, a religião mais extrema possível, que toma um livro sagrado como sendo uma narrativa profética da realidade e não um texto simbólico, construído para instruir as pessoas numa ética religiosa – no caso, uma ética cristã extremamente conservadora e retrógrada. Os cientistas, todos conhecidos e de alto gabarito, fazem o que podem para mostrar o absurdo da coisa. Um deles, em particular, o astrônomo Konstantin Batygin, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), explica como a existência de um objeto celeste como o Planeta X teria induzido o colapso da órbita da Terra: com tal massa e atração gravitacional, teria causado instabilidades na órbita terrestre e não estaríamos aqui para contar a história. No entanto, a Terra vem girando em torno do Sol há 4,5 bilhões de anos.
O Planeta X não existe. Se existisse, e estivesse perto, teria sido visto. O que não significa que não possam existir outros objetos nos confins do sistema solar, como explica Batygin. A palavra-chave aqui é “confins”: dado que a força da gravidade cai com o quadrado da distância, objetos muito distantes têm influência desprezível na Terra. É por isso, aliás, que não caímos no centro da galáxia, devorados pelo buraco negro gigantesco que existe lá. O que mais me espanta nessa discussão e em tantas outras, praticamente idênticas, que ocorreram antes é a convicção absoluta dos literalistas. O que disseram no dia 24, quando nada de catastrófico aconteceu, ao menos ao nível cósmico? Claro, tensões mundiais existem, e tanto Donald Trump quanto a Coreia do Norte ou algum outro líder ou grupo terrorista pode fazer algo terrível.
Haverá sempre alguma tensão política ou social no mundo que um oportunista pode interpretar como uma profecia bíblica. E por que não se aprende com a história, após incontáveis profecias não darem em nada? Outra coisa que me espanta nisso tudo: por que tantas pessoas ainda acreditam nesse tipo de profecia? Essa, para mim, é a pergunta-chave. Em meu livro O fim da Terra e do Céu: o apocalipse na ciência e na religião, explorei como muitas ideias apocalípticas de várias culturas fazem menção a eventos celestes, e como essas ideias transitaram da religião para a ciência. Eventos celestes estranhos ocorrem, e vêm sendo observados há milênios.
Como, para os crentes, os céus são a morada dos deuses (Deus é o “papai do céu”), atribuir uma aparição celeste estranha a uma mensagem divina é quase natural. Historicamente, eclipses, cometas, chuvas de meteoros e outros eventos astronômicos foram associados a mensagens divinas negativas, indicando uma tragédia iminente. A lógica é simples: se os céus se comportam de forma estranha, é porque os deuses não estão felizes. E se os deuses não estão felizes, nós pagaremos por isso; especialmente – para os cristãos – os pecadores. O medo de um fim apocalíptico expõe nossa fragilidade perante as forças da Natureza. Sabemos que pouco podemos fazer quando a ordem natural das coisas é rompida. O que podemos é tentar, coletivamente, fazer diferença no que vemos à nossa volta, das injustiças sociais à falta de acesso a uma educação de bom nível. Usar o medo como agente de mudança, como faz a tradição apocalíptica, não funcionou no passado e, certamente, funciona muito menos agora. Somos nós, e não os deuses, os agentes das mudanças que queremos ver no mundo.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

Nenhum comentário:

Postar um comentário