quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Estátua de mãe

          Mas antes, teve a ladainha de convencer a mãe de que deveria passar algum tempo fora de Dores do Indaiá. Disse-lhe que acabara de completar dezoito anos, havia sido uma aluna razoável, mas ainda não sabia que curso faria dali em diante; disse-lhe que voltaria quando chegasse a hora do regresso; que a hora de voltar a gente descobre de repente, num momento crucial; disse-lhe também que a amava, que sentiria saudade, mas o mais premente naquela fase da vida era ser todas as moças que ela pudesse ser, a partir dos nomes que ela mesma escolhesse para si, no intento de ser mais senhora de si.
A mãe, coitada, com a pia cheia de louça, perguntou que história é essa de ser todas as moças que ela pudesse ser, como assim a partir dos nomes que ela mesma escolhesse, que ideia é essa, minha filha.
Maria, já um tanto sedutora e cativante, argumentou que passar algum tempo fora da casa materna seria bom, diferente, aventuroso, e com certeza daria a ela Maria muitas oportunidades de aprender muitas coisas, coisas que a pia cheia de louça e a mãe sozinha não podiam ensinar.
Ao ouvir isso, “coisas que a pia cheia de louça e a mãe sozinha não podiam ensinar”, Bernardina ficou parada, virou uma estátua, uma mulher com a espuma de sabão escorrendo pelos braços. Uma travessa escorregou dentro da pia; a sorte é que não quebrou.

Bernardina também com apenas dezoito anos. Já havia perdido os pais, sentia-se totalmente sem rumo, e então quisera conhecer São Paulo. Estivera com a única irmã, mais velha, que morava em Belo Horizonte, que dizia que viajar faz bem, e decidira passar uns dias na maior cidade do Brasil. E estava naquele ônibus. Cochilara um pouquinho. Sentia-se alegrinha. De repente, a freada brusca. O susto. O pavor.
Minutos depois, enquanto os outros esvaziavam sacolas, bolsas e malas de mão, o mais jovem dos bandidos olhou para ela.
Hesitou por um breve instante.
E obedeceu à ordem do chefe.
Cometeu o crime.

Sua filha também correria riscos?
A estátua se moveu. Continuou a lavar as vasilhas.
Vou telefonar pro serviço da senhora. Uma vez por semana, pra dar notícias, combinado assim?
Maria acrescentou que sempre tivera vontade de viajar, de sentir como é estar numa cidade diferente, com pessoas estranhas, saber como resolver coisa ou outra por conta própria, de certa forma ser outra pessoa.
Bernardina teve que concordar. No fundo, ela sabia que a filha um dia lhe diria essas coisas.
E a moça de nome Maria, “a senhora”, “a escolhida”, assim que saiu de casa com a malinha de couro antiga, e na bolsa umas economias dadas pela mãe, caminhou solerte em direção à rodoviária, sabia que de fato já se chamava Zoraida.

Stella Maris Rezende, in A mocinha do mercado central

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