Mas antes, teve a ladainha de convencer a
mãe de que deveria passar algum tempo fora de Dores do Indaiá.
Disse-lhe que acabara de completar dezoito anos, havia sido uma aluna
razoável, mas ainda não sabia que curso faria dali em diante;
disse-lhe que voltaria quando chegasse a hora do regresso; que a hora
de voltar a gente descobre de repente, num momento crucial; disse-lhe
também que a amava, que sentiria saudade, mas o mais premente
naquela fase da vida era ser todas as moças que ela pudesse ser, a
partir dos nomes que ela mesma escolhesse para si, no intento de ser
mais senhora de si.
A mãe, coitada, com a pia cheia de
louça, perguntou que história é essa de ser todas as moças que
ela pudesse ser, como assim a partir dos nomes que ela mesma
escolhesse, que ideia é essa, minha filha.
Maria, já um tanto sedutora e cativante,
argumentou que passar algum tempo fora da casa materna seria bom,
diferente, aventuroso, e com certeza daria a ela Maria muitas
oportunidades de aprender muitas coisas, coisas que a pia cheia de
louça e a mãe sozinha não podiam ensinar.
Ao ouvir isso, “coisas que a pia cheia
de louça e a mãe sozinha não podiam ensinar”, Bernardina ficou
parada, virou uma estátua, uma mulher com a espuma de sabão
escorrendo pelos braços. Uma travessa escorregou dentro da pia; a
sorte é que não quebrou.
Bernardina também com apenas dezoito
anos. Já havia perdido os pais, sentia-se totalmente sem rumo, e
então quisera conhecer São Paulo. Estivera com a única irmã, mais
velha, que morava em Belo Horizonte, que dizia que viajar faz bem, e
decidira passar uns dias na maior cidade do Brasil. E estava naquele
ônibus. Cochilara um pouquinho. Sentia-se alegrinha. De repente, a
freada brusca. O susto. O pavor.
Minutos depois, enquanto os outros
esvaziavam sacolas, bolsas e malas de mão, o mais jovem dos bandidos
olhou para ela.
Hesitou por um breve instante.
E obedeceu à ordem do chefe.
Cometeu o crime.
Sua filha também correria riscos?
A estátua se moveu. Continuou a lavar as
vasilhas.
– Vou telefonar pro serviço da
senhora. Uma vez por semana, pra dar notícias, combinado assim?
Maria acrescentou que sempre tivera
vontade de viajar, de sentir como é estar numa cidade diferente, com
pessoas estranhas, saber como resolver coisa ou outra por conta
própria, de certa forma ser outra pessoa.
Bernardina teve que concordar. No fundo,
ela sabia que a filha um dia lhe diria essas coisas.
E a moça de nome Maria, “a senhora”,
“a escolhida”, assim que saiu de casa com a malinha de couro
antiga, e na bolsa umas economias dadas pela mãe, caminhou solerte
em direção à rodoviária, sabia que de fato já se chamava
Zoraida.
Stella Maris Rezende, in A mocinha do mercado central
Nenhum comentário:
Postar um comentário