Demorou algumas semanas até que
Crispina, em parte, se pacificasse. Antes disso foi preciso conviver
com seus gritos e gemidos, dia e noite. De dia, já era de certa
forma esperado. À noite, nos arrepiávamos e acordávamos aturdidos.
Via meu pai Zeca levantar de seu quarto e seguir acompanhado de minha
mãe para onde estava a interna. Escutávamos tudo de onde estávamos,
minúsculo cômodo onde nós, irmãos, dormíamos amontoados, mas
quando as palavras chegavam até mim eram apenas sussurros que mal
conseguia distinguir. Minha mãe passava com o candeeiro aceso no
quarto para bem-fadar nosso sono. Essa rotina se repetiu por semanas.
Quando retornei certa manhã, depois de
aguar as plantas do quintal – e Crispina já reagia bem às rezas e
poções de raízes que meu pai administrava –, ouvi as duas irmãs
conversando baixo, a princípio, mas depois se tornou um crescente
exaltar de vozes vindas do quarto onde estavam. Tinham acabado de
voltar de um passeio pelo terreiro da casa, consentido pelo curador.
Não pude escutar tudo, mas suas sentenças passaram o resto do dia
martelando em minha cabeça: “Não foi verdade”, “Foi, sim”,
“Você adoeceu, Crispina”, “Não estou doida, Crispiniana”,
“Não diga uma tolice dessas na frente de nosso pai”, “Que você
estava no mato com ele”, “Isidoro nem estava por lá essa hora”,
“Isidoro fez promessa de morar comigo”, “Fez promessa não,
senhora. Você que está inventando coisa”, “Fala isso porque é
você que quer ele e estava lá no mato”, “Maluca, por isso está
aqui”.
Escutei tudo suavizando minha respiração,
atenta ao que diziam, na mesma medida que estava alerta à presença
de minha mãe, que poderia chegar a qualquer momento e me surpreender
escutando a conversa. Sabia bem que repreensão teria se fosse
apanhada ouvindo duas pessoas mais velhas. Foi quando Crispina gritou
para que a irmã saísse dali, que a deixasse em paz, e das brechas
da cortina que separava os cômodos, vi seus olhos ficarem vermelhos
feito dois torrões de brasa. Ela começou a salivar de tal forma que
se formou um muco leitoso no canto da boca. Eram gritos misturados ao
choro alto. O caos se instaurou naquele instante, as duas choravam
até que, depois de certo ponto, rolavam pelo chão retirando seus
lenços e se agarrando aos cabelos.
Eu estava surpresa, mas Belonísia se
aproximou de mim rindo da cena. Minha mãe, que lavava utensílios
com a água que eu havia pegado no rio mais cedo, deixou as panelas
no jirau e correu para o quarto. “Mas o que é isso?”, disse
avançando para tentar separar as duas, “Anda, vocês duas” –
olhou para mim e Belonísia – “me ajudem aqui”. Seguramos
Crispiniana pelos braços. Ela tinha os olhos lacrimosos e o cabelo
em pé de tantos puxões que havia levado; minha mãe segurou os dois
braços de Crispina, a perturbada, com os olhos vítreos e a boca
repetindo as acusações que havia lançado à irmã. Minha mãe
ameaçou chamar compadre Saturnino para levar as duas dali, “e aí
não tem remédio, acaba o tratamento e não vou querer você de
volta, Crispina”. Nos braços de minha mãe mesmo, Crispina,
agitada, chorou repousando a cabeça nos seus seios. Salustiana
Nicolau ordenou que Crispiniana saísse com nós duas e que as
deixássemos a sós por um tempo.
Crispiniana ajeitou a roupa rasgada em
seu corpo e foi para o quintal. Chorou em silêncio e, quando seus
olhos ficaram cansados de verter lágrimas, pegou os utensílios que
minha mãe lavava para terminar o trabalho. Eu e Belonísia
continuamos na sala, fingindo brincar em silêncio para escutar o que
Crispina dizia. Crispina repetiu o que havia dito, que encontrou seu
noivo deitado com a irmã na roça dele. Que foi tomada de um
sentimento de amargor que nunca havia experimentado. Que já não
atinava mais coisa com coisa e foi tomada de uma coisa ruim que a
perturbou por completo. Só veio recobrar a consciência quando já
estava instalada em nossa casa, há semanas, e aos poucos foi
recordando os dias que antecederam seu desaparecimento.
O resto da história nós sabíamos de
escutar compadre Saturnino contar no dia em que chegaram à casa, e
mais as prosas das vizinhas, compadres e comadres que repetiam a
novidade nos caminhos que cortavam a fazenda. Depois de sumir sem
deixar vestígios, pai, noivo e irmãos procuraram Crispina por
roças, na mata que cercava o rio Santo Antônio, pelos pântanos e
brejos dos marimbus, sem êxito. O pai, atormentado com aquele
inesperado desaparecimento, chegou à cidade caminhando e procurou
por ajuda da polícia. A cada dia chegava uma notícia nova, de que
Crispina estava indo para um povoado nas cercanias da fazenda, ou que
alguém a havia visto subindo num ônibus em direção à capital, ou
que ouviram urros de uma mulher louca durante a madrugada, como se
fosse um bicho. Ou ainda, que tinham visto alguém tirando frutas do
quintal, que compadre Domingos havia atirado numa pessoa pensando que
era uma raposa, e quando Saturnino chegou tonto na casa do compadre,
teve a história desmentida.
Oito dias depois, Crispina foi encontrada
por um coveiro deitada entre os túmulos no cemitério da cidade,
incapaz de responder sobre quem era, muito menos onde vivia e o que
estava fazendo ali. Surgiu poucos dias depois do feriado de finados,
deitada em meio a flores murchas que já haviam perdido a frescura,
mas ainda guardavam o perfume das coisas que mirram e diminuem em sua
própria finitude. Angélicas, crisântemos, lírios deixados pelas
famílias mais abastadas, e flores artificiais, de arame e papel
crepom desbotado pelo tempo, pelas famílias desprovidas. Estava mais
magra, abandonada ao próprio esquecimento, suja da terra que
revolviam para sepultar os mortos, da longa caminhada, com os pés e
mãos feridos, com um odor forte de suor e urina. Compadre Saturnino
foi ao encontro da filha, submisso ao destino, aceitando o
imprevisto. Não contou com a boa vontade de Sutério para buscá-la
com o Ford Rural. O gerente havia alegado trabalhos para não
fazer o transporte no carro do patrão. Daí que veio a ideia de
laçá-la como se laçam os animais na lida do campo ou os
perturbados conduzidos aos curadores de jarê. E caminhando por
muitas horas chegaram aos domínios de Zeca Chapéu Grande, para que
pudesse curá-la do infortúnio da loucura que havia se abatido sobre
seu juízo.
De loucura meu pai entendia, assim
diziam, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto
de sua vida. Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e
do espírito dos doentes, era o que sabíamos desde o nascimento. O
que mais chegava à nossa porta eram as moléstias do espírito
dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do
próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. Diziam
que talvez fosse por conta do passado minerador do povo que chegou à
região, ensandecido pela sorte de encontrar um diamante, de
percorrer seu brilho na noite, deixando um monte para adentrar
noutro, deixando a terra para entrar no rio. Gente que perseguia a
fortuna, que dormia e acordava desejando a ventura, mas que se
frustrava depois de tempos de trabalhos fatigantes, quebrando rochas,
lavrando cascalhos, sem que o brilho da pedra pudesse tocar de forma
ínfima o seu horizonte. Quantos do que encontravam a pedra estavam
libertos do delírio? Quantos tinham que proteger seu bambúrrio da
cobiça alheia, passando dias sem dormir, com os diamantes debaixo do
corpo, sem se banhar nas águas dos rios, atentos a qualquer gesto de
trapaça que poderia vir de onde menos se esperava?
Crispina tentou de todo jeito fazer com
que minha mãe mandasse a irmã de volta para casa, que a deixasse
ali sozinha. Minha mãe, de forma assertiva, disse que o passado
ficaria para trás, que elas eram irmãs e naqueles dias que se
encontrava recolhida em nossa casa Crispiniana tinha zelado por ela
como se fosse uma mãe. “Onde já se viu irmãs da mesma barriga
viverem a vida como se fossem inimigas?”, perguntou. Disse que
nunca em sua vida tinha visto algo assim, e que aquilo deveria trazer
má sorte para a vida das duas. As gêmeas voltaram a se falar e
conviver como antes no resto da temporada em nossa casa. Não
brigaram mais, porém tampouco “se uniram como os dedos da mão”,
diria minha mãe certo dia para meu pai.
Crispina recobrou a saúde, o viço da
pele, as forças de jovem lavradora, como grande parte das mulheres
que residiam na fazenda. Havia brilho em seus olhos e se tornou
novamente um espelho da irmã, Crispiniana. Logo seria hora de
regressarem para as margens do Santo Antônio. Agora, mais que antes,
laços concretos nos uniam: a mão de meu pai estava repousada,
enquanto vivesse, em sua cabeça. Repousada nas cabeças dos membros
de sua família. Zeca Chapéu Grande não era apenas um compadre. Era
pai espiritual de toda a gente de Água Negra. Quando deixou nossa
casa, ela voltou, contra a vontade do pai, a se encontrar com
Isidoro. Pegaram seus pertences e foram morar juntos numa casa de
barro que levantaram na parte destinada à morada dos trabalhadores.
Da porta da casa do pai, Crispiniana mirava a vida da irmã com sua
grande paixão. Não acreditávamos que a história das irmãs fosse
terminar daquela forma.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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