segunda-feira, 30 de setembro de 2019
Uma Faca só Lâmina
Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim
como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;
qual
bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual
ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio
que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim
como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual
uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de
um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
João
Cabral de Melo Neto
Preste atenção a palavras perigosas
“Fique
alerta ao emprego das palavras ‘extremismo’ e ‘terrorismo’.
Esteja atento às noções fatais de emergência e exceção.
Revolte-se contra o uso traiçoeiro de vocabulário patriótico.”
Timothy
Snyder,
in Sobre
a tirania: vinte lições do século XX para o presente
Para
o jurista nazista Carl Schmitt, a essência do fascismo é
concentrar-se na ideia de exceção. Um nazista supera os adversários
criando a convicção de que o momento presente é excepcional, e
depois esse estado de exceção é transformado em estado de
emergência. Daí, os cidadãos
trocam a liberdade por uma falsa segurança.
Segundo Snyder, quando políticos usam o
termo Terrorismo para tentar nos fazer abrir mão da liberdade em
nome de segurança, devemos abrir o olho.
Muitas vezes, quando tiranos falam de
Extremismo, referem-se as pessoas que não estão na mesma corrente
dominante do momento. No século XX, os que resistiam ao fascismo
eram chamados de extremistas.
Acerca da liberdade
“Não
creio, no sentido filosófico do termo, na liberdade do homem. Todos
agem não apenas sob um constrangimento exterior mas também de
acordo com uma necessidade interior.”
Albert
Einstein, in Como vejo o mundo
A morte e a morte de Quincas Berro D'Água - I
Até
hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro
D'Água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no
depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre
hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e
conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte
matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase
vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia
da noite, quando a Lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios
na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas
idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase
final repetida de boca em boca representou, na opinião daquela
gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho
profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem
autor de nosso tempo).
Tantas
testemunhas idôneas, entre as quais Mestre Manuel e Quitéria do
Olho Arregalado, mulher de uma só palavra, e, apesar disso, há quem
negue toda e qualquer autenticidade não só à admirada frase mas a
todos os acontecimentos daquela noite memorável, quando, em hora
duvidosa e em condições discutíveis, Quincas Berro D'Água
mergulhou no mar da Bahia e viajou para sempre, para nunca mais
voltar. Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas,
amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos
habituais, ao papel selado. Exibem eles, vitoriosamente, o atestado
de óbito assinado pelo médico quase ao meio-dia e com esse simples
papel — só porque contém letras impressas e estampilhas —
tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas Berro D'Água
até sua partida, por livre e espontânea vontade, como declarou, em
alto e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes.
A
família do morto — sua respeitável filha e seu formalizado genro,
funcionário público de promissora carreira; tia Marocas e seu irmão
mais moço, comerciante com modesto crédito num banco — afirma não
passar toda a história de grossa intrujice de bêbedos inveterados,
patifes à margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem
devera ser as grades da cadeia e não a liberdade das ruas, o porto
da Bahia, as praias de areia branca, a noite imensa. Cometendo uma
injustiça, atribuem a esses amigos de Quincas toda a
responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos
anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto
de seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados
na presença inocente das crianças, para as quais o avô Joaquim, de
saudosa memória, morrera há muito, decentemente, cercado da estima
e do respeito de todos. O que nos leva a constatar ter havido uma
primeira morte senão física pelo menos moral, datada de anos antes,
somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte,
um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido
os acontecimentos posteriores — a partir do atestado de óbito até
seu mergulho no mar — uma farsa montada por ele com o intuito de
mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a
existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua.
Não era ele homem de respeito e de conveniência, apesar do respeito
dedicado por seus parceiros de jogo a jogador de tão invejada sorte,
a bebedor de cachaça tão longa e conversada.
Não
sei se esse mistério da morte (ou das sucessivas mortes) de Quincas
Berro D'Água pode ser completamente decifrado. Mas eu o tentarei,
como ele próprio aconselhava, pois o importante é tentar, mesmo o
impossível.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D'Água
O sertão
O
sertão não conhece o mar. O mar não conhece o sertão. Não se
tocam. Não se veem. Não se buscam. Mas há em ambos a mesma
grandeza, a mesma imponência, a mesma inescrutabilidade. Sobre um e
outro se estende esse mesmo enigma das majestades indecifráveis. De
um e outro ressalta a mesma expressão de energia, força e poder a
que se não resiste. Um e outro se nos antolham, do mesmo modo, como
dois reservatórios insondáveis e inesgotáveis de vida.
Ante
um e outro nos sentimos nulos, em todo o acanhamento do nosso nada, e
temos a visão da imensidade, a sensação do infinito, a impregnação
do eterno. É a comoção religiosa, que vibrava entre os primeiros
navegadores, quando, ao avistarem a ourela das praias, onde se franja
o pélago azulado, lhes saía d’alma todo um hino em um só grito:
“O mar!”, “o mar largo!”. Assim me rebentava, há pouco, do
seio, ao dar com os olhos na primeira orladura da região das matas e
das serras este clamor íntimo de alvoroço: “O sertão! o sertão
livre!”.
Não
será livre o sertão? É, senhores, como se fizéssemos estoutra
pergunta: “Não é livre o mar?”.
A
questão, quanto ao mar, não existe, embora a vejamos estabelecida,
a outra luz, em termos, que lhe tornem duvidosa a resposta. As
potências navais contendem pelo domínio das suas armas nas estradas
marítimas. Mas não há tratados, que logrem subjugar o indômito
elemento das vagas. Juntasse embora o orgulho humano todos os seus
monstros de guerra; e todos eles juntos não conseguiriam abaixar o
dorso das águas eternas. Fundisse embora a indústria humana todo o
metal, que se acumula nas entranhas da terra; e todo o ferro do
planeta, minerado e forjado, não daria cadeias bastantes, para
acorrentar a fúria de um maremoto. Cobrissem embora todas as frotas
do mundo com o enxame dos seus navios a superfície inteira das
ondas; e um movimento destas as poderia sepultar nas profundezas do
abismo. Só Deus possui o jugo, a que se curva o oceano.
Mas
se o Criador o mandasse calar; se lhe ordenasse às correntes que
parassem, e, esfriando-lhe as entranhas, lhe comprimisse debaixo da
mão onipotente as ondas remansadas, a vasta massa guardaria na sua
imobilidade a imagem do movimento subitamente paralisado, o aspecto
de uma grandeza adormecida à espera de outro milagre do céu, que a
volvesse ao calor e inconstância de sua existência agitada.
Rui
Barbosa, in Antologia
domingo, 29 de setembro de 2019
Menino de ilha
Às
vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de
gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como uma cama
fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar: e em breve as frescas
mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.
Era
indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja
janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém
nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição
daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe
fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me
naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante,
uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um
peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e
insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me
pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas
nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber
ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda
não existia para mim; ou só existia nisso que era sempre vivo,
nunca morto ou inútil.
Quando
não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a
continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco
todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada
acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo
estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu
se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e
estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com
as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do
Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro,
às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas
vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe
pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era
arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu
olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs
dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente
bom.
Havia
ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos
carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que
vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de
poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante
do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de
mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me
levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o
breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas.
Mas
- como dizê-lo? - era sempre nesses momentos de perigosa inércia,
de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio. Pois a
verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar sobre
minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá estava
ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos, suas asas
sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um sorriso pálido
que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas. E eu me
levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de bom-dia na
face que ela me entregava, pulava a janela de volta, atravessava a
casa com pés de gato e ia dormir direito em minha cama, com um gosto
de frio em minha boca.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
Acerca da cultura
“Nenhum
país tem o direito de se apresentar como guia cultural dos
restantes. As culturas não devem ser consideradas melhores ou
piores, todas elas são culturas e basta.”
José
Saramago, in As palavras de Saramago
Amor feinho
Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.
Adélia
Prado
O parecer
No
dia seguinte, a Sra. Marie me contou que o Sr. Zaturecky a ameaçara,
vociferara e tinha ido reclamar; a infeliz criatura estava com a voz
trêmula, à beira das lágrimas; dessa vez fiquei colérico.
Compreendia muito bem que a Sra. Marie, que até agora vinha se
distraindo com esse jogo de esconde-esconde (mais por simpatia por
mim do que por franca alegria), agora se sentisse ofendida e visse em
mim, naturalmente, a causa dos seus aborrecimentos. E se eu
acrescentasse a esses agravos o fato de a Sra. Marie ter revelado o
endereço de minha mansarda, de minha porta ter sido tamborilada
durante dez minutos e de haverem assustado Klara, minha cólera se
transformaria em fúria.
E
lá estava eu a dar grandes passadas no escritório da Sra. Marie,
mordendo os lábios, fervendo, imaginando uma vingança, e eis que a
porta se abre e aparece o Sr. Zaturecky.
Assim
que me viu, seu rosto se iluminou de felicidade. Inclinou-se e me deu
bom-dia.
Chegara
muito cedo, sem me dar tempo de pensar em minha vingança.
Perguntou
se me haviam entregue seu recado da véspera.
Não
respondi nada.
Ele
repetiu a pergunta.
— Sim
— respondi finalmente.
— E
o senhor vai escrever o parecer?
Eu
o via diante de mim: mesquinho, teimoso, ameaçador; via o sulco
vertical que desenhava em sua testa o traço de sua única paixão;
via esse traço retilíneo e compreendi que era uma linha reta
determinada por dois pontos: meu parecer crítico e seu artigo; e
que, exceto o vício dessa linha maníaca, nada existia em sua vida a
não ser uma ascese digna de um santo. E não resisti a uma
malevolência salutar.
— Espero
que o senhor compreenda que não tenho mais nada a lhe dizer depois
do que se passou ontem — disse eu.
— Não
estou compreendendo.
— Não
tente disfarçar. Ela me contou tudo. É inútil negar.
— Não
estou compreendendo — tornou a repetir o homenzinho, mas, desta
vez, em tom mais enérgico.
Assumi
um tom jovial e quase afetuoso:
— Escute,
Sr. Zaturecky, não lhe quero fazer censuras. Eu também sou
mulherengo, e o compreendo. Eu também, em seu lugar, faria de bom
grado propostas a uma mulher bonita, se me encontrasse sozinho com
ela num apartamento e ela estivesse nua por baixo de uma capa.
O
homenzinho ficou lívido.
— É
um insulto!
— Não,
é a verdade, Sr. Zaturecky.
— Foi
aquela moça que contou isso?
— Para
mim ela não tem segredos.
— Camarada
assistente, isso é um insulto, sou um homem casado, tenho mulher,
tenho filhos! — O homenzinho deu um passo à frente, obrigando-me a
recuar.
— É
uma circunstância agravante, Sr. Zaturecky.
— O
que o senhor quer dizer?
— Quero
dizer que o fato de ser casado é uma circunstância agravante para
um mulherengo.
— O
senhor vai retirar essas palavras! — disse o Sr. Zaturecky em tom
ameaçador.
— Está
certo! — disse eu, conciliador. — O casamento não é
necessariamente uma circunstância agravante para um mulherengo. Mas
pouco importa. Já disse que não fiquei com raiva e que compreendo
perfeitamente o que se passou. Mas existe mesmo assim uma coisa que
está acima da minha compreensão: é que o senhor possa exigir que
um homem escreva um parecer sobre seu artigo, depois de ter feito
propostas à sua namorada.
— Camarada
assistente! É o Sr. Kalusek, doutor em letras, redator-chefe da
revista O Pensamento Plástico, periódico publicado sob os
auspícios da Academia de Ciências, que exige esse parecer: e o
senhor deve escrevê-lo!
— Escolha!
O parecer ou minha namorada? O senhor não pode querer os dois!
— Veja
como está se comportando! — gritou o Sr. Zaturecky, dominado por
uma cólera desesperada.
Coisa
estranha, eu tinha de repente o sentimento de que o Sr. Zaturecky
queria realmente seduzir Klara. Explodi e comecei por minha vez a
gritar:
— O
senhor se acha com o direito de pregar moral? O senhor é quem
deveria apresentar as mais completas desculpas à nossa secretária.
Virei
as costas ao Sr. Zaturecky e ele saiu da sala titubeante,
desamparado.
— Até
que enfim! — disse com um suspiro, depois desse combate difícil,
mas vitorioso, e acrescentei dirigindo-me à Sra. Marie: — Acho que
agora ele vai me deixar em paz com esse parecer!
Depois
de um minuto de silêncio, a Sra. Marie perguntou-me timidamente:
— E
por que o senhor não redige o parecer?
— Porque
o artigo dele, minha cara Marie, é um amontoado de asneiras.
— E
por que o senhor não escreve um parecer dizendo que é um amontoado
de asneiras?
— E
por que cabe a mim escrevê-lo? Por que devo fazer inimigos?
A
Sra. Marie me olhava com um grande sorriso indulgente quando a porta
abriu-se de novo; o Sr. Zaturecky apareceu com o braço levantado:
— Vamos
ver quem vai pedir desculpas!
Proferiu
essas palavras com uma voz estridente e desapareceu.
Milan
Kundera, in Risíveis Amores
Um estado de cavalos. Os cavaleiros
Hoje
é que reconheço a forma do que meu padrinho muito fez por mim, ele
que criara amparado amor ao seu dinheiro, e que tanto avarava. Pois,
várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver ― na verdade,
também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros
negócios ― e trazia para mim caixetas de doce de burití ou de
araticúm, requeijão e marmeladas. Cada mês de novembro, mandava me
buscar. Nunca ralhou comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi
coisa nenhuma a ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não
gostava dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não
soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São
Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. Mas por isso
ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado,
quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por
herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei. Só
o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com que no fim
de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi
eu menos merecia. Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele
penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele.
Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.
Depois
pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que
ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram,
no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má
lua, o frio fiava. E, quando tão moço, eu custava muito para me
levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida.
Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho
Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para
dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e
trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma
aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas
armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.
Meu
padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das mulheres, que
coasse café quente. Quando voltei, um dos homens ― Alarico Totõe
― estava expondo, explicando. Todos continuavam sem tomar assentos.
Alarico Totõe sendo um fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu
padrinho. Ele, com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de
bem. Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por uma
questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando
com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava olhando, com uma
admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o
principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o
nome, eu parei, na maior suspensão.
Drede
Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava
muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede,
se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um
homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados,
ombreavam com ele dois jagunções; depois eu soube ― que seus
segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo
simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O
outro ― Hermógenes ― homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não
notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele
estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda amontoava,
com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que
uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter
pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta,
enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele
caminhou uns passos, se arrastava ― me pareceu ― que nem queria
levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando! será que
a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me
lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava
querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava
até em quase na boca, enegrecendo.
No
terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um recanto oculto,
onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha, pois que viajavam
de noite, dando surpresa e desmanchando rastro. ― Tem ótimo
reconditório... ― meu padrinho consentiu. E mandou que eu fosse
guiar aquela gente, até aonde o pôço do Cambaubal, num fechado,
mato caàpuão. Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria
pronto os olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda,
e pôs as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes
veio para sair comigo, mais o outro homem ― um cabeça-chata
alvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava,
até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, viemos até
onde estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.
Aí
mês de maio, falei, com a estrela-dalva. O orvalho pripingando,
baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa distância,
enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já
pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha
desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei! a gente sorvia o
bafejo ― o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de
suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento
esbarrado que se sussurra duma tropa assim ― feito de uma porção
de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flôr. A bem
dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu,
tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal
lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de
orêlha ou batem com o pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquêjo.
E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele
bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só
dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. E diferente.
Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores
crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles
subindo das costas. Porque eles não falavam ― e restavam esperando
assim ― a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens
mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados
contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?
Decerto
de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro.Veio vindo
para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar.
― Capixúm,
é eu, mais o siô Hermógenes... ― o cabeça-chata falou aviso.
― A
bom, Alaripe! ― o de lá respondeu.
A
gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de
cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a
peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o
ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se
divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas
minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora,
tudo tão bom; e, o que é, é saudade.
De
junto com o Capixúm, se aproximou outro um, também, de soto-chefe,
que o Hermógenes tratou de sié-Marques. O Hermógenes tinha voz que
não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que
se safava. Assim ― fantasia de dizer ― o ser de uma irara, com
seu cheiro fedorento. ― Aoh, uê, alguém, irmão? ― aquele
sié-Marques perguntou, tratando de minha pessoa. ― De paz, mano
velho. Amigo que veio mostrar à gente o arrancho... ― o Hermógenes
contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem
mais delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do
Hermógenes, puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia
os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro
continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era
abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam, diziam graças.
Presumi que estavam muito contentes de ganhar o repouso de horas,
pois tinham navegado na sela a noite toda. Um falou mais alto, aquilo
era bonito e sem tino! ― Siruiz, cadê a moça virgem?
Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se lavavam. Algum,
aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para mim a toada toda
estranha!
Urubú
é vila alta,
mais
idosa do sertão padroeira, minha vida ―
vim
de lá, volto mais não...
Vim
de lá, volto mais não?...
Corro
os dias nesses verdes,
meu
boi mocho baetão buriti ― água azulada,
carnaúba
― sal do chão...
Remanso
de rio largo,
viola
da solidão.
Qando
vou pra dar batalha,
convido
meu coração...
Vinham
quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança
da gente é assim.
Me
emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da
tropa de burros, adiante, na boca da ponte. Não tardava já vinham
aparecendo. Um lote de dez mulas, com os cargueiros. Mas vinham com
os cincerros tapados, tafulhados com rama de algodão: afora o
geme-geme das cangalhas, não faziam nenhum rumor. Guiamos os
tropeiros também para o Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou,
com Joca Ramiro, Ricardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me
trouxe outra vez para casa. O dia já estava clareando completo. Meu
coração restava cheio de coisas movimentadas.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
sábado, 28 de setembro de 2019
Capítulo 131 - De uma calúnia
Como
eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloco-cerebral, - o
que era simples opinião e não remorso,- senti que alguém me punha
a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, oficial de
marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele sorriu
maliciosamente, e disse-me:
Confesso
que este diálogo era uma indiscrição, -principalmente a última
réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres
é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem
retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura
amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo
frio, monossilábico, etc, ao passo que as parceiras não davam por
si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A
razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do
capítulo 101 e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão
de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por
exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras
raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de uma sociedade
culta e elegante - o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento.
Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando
ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de
dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o
homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem,
fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos
ríspido e menos secreto, essa meiga fatuidade, que é a transpiração
luminosa do mérito.
Mas
seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito
nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das
mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos,
elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por
desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos
olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha
de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a
aventura amorosa vinha a descobrir-se por força, mais tarde ou mais
cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não
ouçamos o latir.”
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
Carta aberta de Valter Hugo Mãe a Marcelino Freire: ‘Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil’
Meu
caro amigo Marcelino,
tenho medo de voltar ao seu país porque
cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas
coisas apenas uma criança. Julgo que saio à rua ainda com a alegria
de encontrar alguém com quem, de algum modo, possa pressentir a
alegria que existia quando estávamos apenas a brincar. Eu não sei
estar sozinho. Não aprecio a solidão, gosto das pessoas e não há
como curar minha natureza para gostar delas. Mas agora tenho medo do
seu país que eu amo. Fiquei toda a vida sonhando ser português e
brasileiro, para pertencer a Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Sonhei que meu orgulho teria papel passado, como quem casa
consciente, dedicado, de amor profundo, para toda a eternidade. Eu
não previ este medo. Fico desolado.
Estão proibindo as pessoas de serem
negras, Marcelino, proibiram de ser mulheres, Marcelino, agora
decidiram proibir de ser criança e eu sabia que haveria alguma coisa
que ainda me pegaria. Por isso, há muito que eu já brigava pelos
negros e há muito que eu já brigava pelas mulheres, eu já brigava
pelos viados todos e pelas pessoas sem explicação, tanta gente que
só é, sem ter muito como entender ou fazer entender, e quer apenas
estar em paz. Eu dei de barato tanta coisa sobre a paz que talvez
tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro lugar da guerra.
Sou muito despreparado. Passei pelo tempo buscando o deslumbre e vi a
melhor versão de cada instante, não vi que medravam no escuro as
piores intenções, os ódios que inviabilizam a humanidade. Eu,
sinceramente, não vi, Marcelino.
Caminhei nessas ruas todas, tantos
Estados, tantas capitais, e eu não dei conta desse ódio. Notei os
sorrisos, o samba, o jeito generoso das garotas e de alguns garotos
olhando para minha pouca beleza, eu notei os livros, tanta Literatura
maravilhosa e a obra do Tunga e Artur Bispo do Rosário bordando as
vestes para alindar seu encontro com Deus. Marcelino, no Brasil eu
senti invariavelmente que Deus era possível. Sabe quando você se
depara com algo perfeito e isso só pode ser graça de uma
inteligência superior? Eu vi uma arara azul gigante, devia ter mais
de um metro, e ela era mesmo um atributo mágico do mundo, estava
livre no cimo de uma árvore na floresta amazônica.
Naquele encontro, eu consumei tudo,
Guimarães Rosa e Elza Soares, Tarsila do Amaral e Fernanda
Montenegro mais Marília Pêra e Walter Salles, e Darcy Ribeiro mais
Heitor Villa-Lobos, e Cartola com Cildo Meireles e Adriana Varejão.
Mais Gal Costa e Mônica Salmaso e Paulo Freire lendo a mão de Chico
César genial. Eu entendi que Brasil significa beleza e uma profunda
esperança. Juro. Parecia uma experiência mística, como se algum
espírito me informasse e eu virasse um mensageiro sagrado. Eu
elogiei o Brasil em todas as ocasiões porque eu acreditei, e
acreditei que minha mensagem era sagrada. Você acha que um espírito
me enganaria? Viria sobre mim de propósito para me iludir?
Marcelino,
eu não consumei minha adultez, sou apenas um menino, fui sempre ao
seu país para encontrar mais amigos e brincar um pouco de ser feliz.
Lembra de gostarmos tanto de Manoel de Barros? Eu sei exatamente a
razão de gostar tanto da poesia de Manoel de Barros. Ele usa pássaro
e amigos e seus versos foram os melhores brinquedos. Minha história
é rigorosamente igual. Não tinha muito mais. Pais, irmãos, amigos,
os pássaros voando, versos. O lugar de guardar tudo é o verso. O
único sentido de ter verso é amar gente e cuidar de pássaro livre.
Estão atirando sobre as crianças e
alguém me diz que apenas as negras, são apenas as crianças negras,
mas eu duvido que parem por aí. Nós, as crianças mais claras não
estamos na linha do tiro? Nem que seja por vergonha, vamos morrer
também se não dissermos nada, se não fizermos nada. E se as
crianças negras viraram proibidas, que legitimidade teremos nós?
Sabe, Gilberto Freyre explicou tão certinho que os portugueses são
os mestiços da Europa. Eu tenho sangue árabe, africano e europeu.
Sou uma porção de cada coisa e minha pena é não lembrar, só
minhas células sabem.
Você
sabe a razão para rejeitarem os negros para as periferias? Eu não
descobri. As casas do centro não têm tamanho para negros? Eles são
maiores? Aumentam quando dormem? Quando sonham? Ficam derrubando
paredes, perigando as fundações dos prédios? Eu acho que não. Eu
vi um moço entrando na livraria à minha frente, coube na porta
melhor do que eu. Você acha que tem alguém obrigando a que ele
corra para a periferia depois de pagar o seu livro? Eu não posso
acreditar. Que pena que eu não falei com ele, devia ter perguntado.
Talvez me contasse de como fica infinito sonhando, ao ponto de
perturbar o silêncio, tremer o prédio, causar fumo. Você já
pensou se nossos sonhos também fizessem isso? Eu ia querer,
Marcelino. Eu ia querer que meus sonhos fossem tão grandes. Mas
sonho só com a paz. Estar sossegado com minha família e meus
amigos. Notar os pássaros voando.
Marcelino, façamos uma jura de não
morrer durante o plano de nos matarem. Não somos senão ternuras
gigantes, guerreiros açucarados, eu entendi que nós precisamos de
um pacto poético para embravecer nossa cidadania. Você, que é meu
amigo e escritor que tanto admiro, não me falte nunca desse lado.
Cuide de Chico Buarque e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer
cabeça sã do mundo eles representam o Deus possível. Cuide de
Maria Bethânia. De Sônia Braga. Diga a Davi Kopenawa e a Ailton
Krenak que a floresta vai sempre amá-los, diga que a arara me
garantiu. Marcelino, fico ouvindo Rodrigo Amarante e quase ainda
acredito em tudo outra vez (Rodrigo é perfeito. Poderia ser a
própria arara). Quase perco o medo. Vista também sua roupa de
super-herói e sobreviva. Você tem de manter a maravilha do Brasil.
Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos,
nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente, e vamos ficar
mais belos que os modelos nos filmes gringos. Vamos, sim, Marcelino.
Haveremos de devolver o futuro às
crianças. E seremos sempre futuros também. Só quem desistiu passou
a ocupar seu canto no passado. Marcelino, reassumo meu compromisso
com a esperança. Vou escolher sempre minha vida como lugar de
semente. No meu medo, Marcelino, muita coragem vai germinar.
Valter
Hugo Mãe, in The
Intercept Brasil, 27/09/2019
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
O degrau da lágrima
Nasci
numa casa com escada.
Aquela
escada,
dizem,
nasceu
antes da casa.
O
seu motivo
era
o de todas as escadas:
medo
de sermos terra,
temor
de lavas e monstros.
Alteada
sobre os céus
a
casa era mais que um ventre.
Era
um farol.
Nesse
farol sem mar,
me
lembro chorando
sobre
o primeiro degrau.
Chorar
é lá fora,
advertia o pai.
Lágrimas
murcham
aquém da porta:
esse
era o mando.
A
proibição da lágrima
se
somava ao interdito do chão:
medo
dos rios,
das
indomáveis enchentes.
Ainda
hoje
uma
voz antiga,
dentro
de mim, incita:
aprende
do pranto
o
parto das fontes.
Sempre
que chorares,
nascerás
uma outra vez.
Mia
Couto
Uma herança e um neto inesperados
No
inverno de 1957, mais ou menos no momento em que Alice Parkins o viu
correndo totalmente nu, correnteza abaixo, no riacho McKensie,
tentando apanhar um salmão com sua vara de pescar, a maioria das
pessoas na vizinhança começou a achar que Jake era um pouco maluco.
Felizmente para ele, a vizinhança era do tipo que quase havia
desaparecido da vida americana – as pessoas eram amistosas e
respeitadoras, e, contanto que se fosse somente difícil, mas não
perigoso, ninguém se metia na vida de ninguém. Jake, claro, não se
achava maluco, nem mesmo vagamente anormal; como qualquer um que
deixa a mente vaguear por tempo e distância suficientes, de vez em
quando a perdia. Cada vez mais convencido de sua imortalidade
desabrochante, Jake não tinha pressa de encontrá-la. Acreditava ter
tempo de sobra. Via a si mesmo como um castor que avistara alguns
anos antes no Gualala, boiando rio abaixo, deitado de costas, as atas
encolhidas no peito, olhando para o céu profundamente azul,
guiando-se com o rabo, indolente e feliz. Então, no começo da
primavera seguinte, o delegado perturbou o calmo fluxo de sua vida.
Cliff
Hobson era um rapaz do lugar que entrara para a polícia na volta da
Coréia. Considerava seu trabalho um serviço público, ajudando as
pessoas e resolvendo casos. Sabia que Jake produzia algum uísque
muito antes de ir para a Coréia; tinha até experimentado a bebida
uma vez, quando foi entregar ao velho uma pilha de madeira. Tinha
gosto de diesel quando descia pela garganta e, ao atingir o
estômago, era como um golpe de compressão do cilindro de um
bulldozer D-8, uma imagem que sempre se lembraria. Achava que
ninguém jamais iria comprar para consumo humano, não via nela um
problema para a lei, e não achava razão alguma para transformá-la
em um. Cliff gostava do seu trabalho; podia guiar um jipe novinho, de
tração nas quatro rodas, por toda parte, e podia falar no rádio. A
única coisa de que não gostava em seu trabalho era de dar más
notícias. Sabia que Jake não iria gostar.
Jake
não gostou:
– Que
porra de merda é essa?! – guinchou,
amassando os papéis na mão ossuda.
Cliff deu meio passo para trás.
– Isso
significa que se iniciaram os procedimentos para vender sua terra,
por causa de impostos devidos; você nunca pagou impostos, nem sequer
uma vez, é o que diz aqui.
– Eu
comprei o maldito lugar antes
de existir qualquer imposto.
– Os
impostos existem há muito tempo –
resmungou
Cliff –
e
me parece que você tem de pagar ou vão vender este lugar para uma
pessoa que pague.
– Bem,
eu não tenho US$ 70 mil, mas tenho
uma chumbeira
calibre 12 e uma Krag calibre 44, e você pode levar a notícia de
que qualquer um que tentar comprar minha terra ou se apossar dela vai
ter que me matar primeiro, e mesmo assim meu fantasma vai assombrar
os seus traseiros pra valer. Pra
valer,
está me ouvindo?
– Não
vai haver tiroteio nenhum –
disse
Cliff com firmeza.
– Bom,latiu
Jake –,
então
nenhum deles vai ser morto.
Ficaram
nisso.
Quatro
dias depois, no final da visita, o delegado foi embora deixando Jake
em prantos. Gabriela, sua única filha, tinha se afogado.
Foi
a primeira das duas vezes em que Jake largou a bebida. Largou por
três dias, até o fim das cerimônias fúnebres. Quase todos
acreditaram que esse inesperado amansamento fosse um ato de respeito,
e se surpreenderam um pouco com seu comportamento; os que o conheciam
bem sabiam que era um sintoma de luto, e
se aliviaram quando ele voltou a beber. As almas mais bondosas
sentiam que ele queria adotar o neto por ser a coisa mais decente a
ser feita, apesar de intimamente duvidarem que um homem chegando aos
80 pudesse criar uma criança de maneira adequada – de forma alguma
consideraram ser pelo dinheiro. Os mais chegados a Jack tinham
certeza que era pelo dinheiro: uma herança de US$ 500 mil dólares
pagaria um monte de impostos atrasados, restando o bastante para
cobrir seu gosto por apostas altas. De fato, os que participavam
regularmente dos jogos de pôquer nas noites de sábado apostavam na
base de oito a cinco que o menino iria embora em dois anos.
Mas
para Jake
a
coisa era mais complicada do que todas essas opiniões juntas, tão
complicada que nem tentou entender. Em vez disso, seguiu seus
instintos. Quando ouviu os advogados de Gabriela falarem em dinheiro,
uma faísca lhe veio aos olhos; quando, porém, viu o neto pela
primeira vez, uma faísca que veio ao sangue. Via os dois pescando de
tardinha, arremessando a vara no fundão da cachoeira de Tottleman, o
moleque a ganir enquanto uma truta de 30 centímetros de comprimento
dilacerava a minhoca que tentava escapar. Via aniversários e luvas
de beisebol, e uma viagem à cidade de vez em quando para assistir ao
jogo vagabundo
dos Giants; alguém que ele poderia ensinar a jogar cartas, alguém
com quem poderia beber e contar as histórias de sua vida e os
segredos da imortalidade. E, se via os US$ 430 mil dólares numa
conta conjunta, os outros US$ 70 mil tirados para cobrir as despesas
de casa e comida, não deixava que isso o influenciasse
excessivamente.
Jim
Dodge,
in Fup
O Teste de Turing
Talvez
as ciências biológicas estejam olhando o problema pelo ângulo
errado. Elas creem que a vida consiste tão somente em uma questão
de processamento de dados e que organismos são máquinas de calcular
e de tomar decisões. No entanto, essa analogia entre organismos e
algoritmos pode nos induzir ao erro. No século XIX , os cientistas
descreveram cérebros e mentes como se fossem motores a vapor. Por
que motores a vapor? Porque era a tecnologia avançada da época, que
acionava trens, navios e fábricas, de modo que, quando humanos
tentavam explicar a vida, assumiam que ela devia funcionar de acordo
com princípios análogos. Mente e corpo são feitos de tubos,
cilindros, válvulas e pistões que criam e aliviam pressão,
produzindo assim movimentos e ações. Esse conceito teve influência
profunda até na psicologia freudiana, o que explica por que muitos
de nossos jargões psicológicos estão repletos de conceitos
emprestados da engenharia mecânica.
Considere-se,
por exemplo, o seguinte argumento freudiano: “Exércitos aproveitam
a libido como agente da agressão militar. O exército recruta jovens
exatamente quando sua libido está no auge. O exército restringe as
oportunidades de os soldados terem sexo e aliviarem essa pressão, a
qual, consequentemente, se acumula dentro deles. O exército então
redireciona essa pressão reprimida e a deixa ser libertada em forma
de agressão militar”. É exatamente assim que funciona um motor a
vapor. Aprisiona-se o vapor de uma ebulição em um recipiente
fechado. O vapor acumula mais e mais pressão, até que subitamente
abre-se uma válvula, e a pressão é libertada em uma determinada
direção e aproveitada para impulsionar um trem ou um tear. Não só
em exércitos, mas em todos os campos de atividade, frequentemente
nos queixamos das pressões que se acumulam em nós e tememos que, a
menos que consigamos “dar vazão a algum vapor”, possamos
explodir.
No
século XXI, soaria infantil comparar a psique humana a um motor a
vapor. Conhecemos hoje uma tecnologia muito mais sofisticada — o
computador — e assim explicamos a psique humana como se fosse um
computador processando dados, e não um motor a vapor regulando
pressões. Mas essa analogia pode revelar-se tão ingênua quanto a
anterior. Afinal, computadores não têm mente. Eles não anseiam por
nada, nem quando têm um bug, e a internet não sofre nem
quando regimes autoritários cortam países inteiros da rede. Então,
por que usar computadores como modelo para compreender a mente?
Bem,
será que temos mesmo certeza de que computadores não têm sensações
nem desejos? E, ainda que não tenham nada disso no presente, será
que um dia podem tornar-se complexos o bastante para desenvolver
consciência? Se isso acontecer, como vamos nos certificar? Quando
computadores substituírem o motorista de ônibus, o professor e o
psicólogo, como vamos determinar se têm sentimentos ou se são
apenas um conjunto de algoritmos irracionais?
No
que tange aos humanos, hoje somos capazes de diferenciar experiências
mentais conscientes de atividades não conscientes do cérebro.
Embora estejamos longe de entender a consciência, cientistas
conseguiram identificar algumas de suas assinaturas eletroquímicas.
Para isso, começaram com a seguinte suposição: sempre que humanos
relatam que estão conscientes de algo, pode-se acreditar neles. Com
base nessa suposição, os cientistas podem isolar padrões cerebrais
específicos que aparecem cada vez que humanos afirmam estarem
conscientes, mas nunca aparecem em estados inconscientes.
Isso
permitiu aos cientistas determinar, por exemplo, se uma aparente
vítima de AVC em estado vegetativo perdeu a consciência por
completo ou apenas o controle de seu corpo e sua fala. Se o cérebro
do paciente exibir as assinaturas denunciadoras de consciência, ele
provavelmente está consciente, mesmo que não consiga se mexer ou
falar. De fato, recentemente médicos conseguiram se comunicar com
pacientes nesse estado usando imagens por ressonância magnética
funcional. Eles fazem aos pacientes perguntas cuja resposta é sim ou
não; dizem-lhes que se imaginem jogando tênis se a resposta for sim
e visualizando onde fica sua casa se a resposta for não. Os médicos
podem então observar como o córtex motor se ilumina quando os
pacientes se imaginam jogando tênis (resposta “sim”), enquanto a
resposta “não” é indicada pela ativação de regiões cerebrais
responsáveis pela memória espacial.
Tudo
isso se aplica muito bem a humanos, mas e quanto aos computadores?
Como os computadores, cuja base é o silício, têm estruturas muito
diferentes daquelas que compõem as redes neurais humanas, baseadas
no carbono, as assinaturas de consciência dos humanos podem não ser
relevantes para eles. Parece que estamos presos num círculo vicioso.
A partir da suposição de que podemos acreditar em humanos quando
relatam que estão conscientes, podemos identificar as assinaturas da
consciência humana e depois usá-las para “demonstrar” que
humanos estão realmente conscientes. Entretanto, se uma inteligência
artificial autorreportar que está consciente, devemos simplesmente
acreditar nisso?
Ainda
não temos uma resposta satisfatória para esse problema. Milhares de
anos atrás os filósofos já tinham se dado conta de que não havia
como demonstrar conclusivamente que alguém, além de si mesmo,
possui uma mente. De fato, mesmo no caso de outros humanos, só
presumimos que tenham consciência — não temos como ter certeza
disso. Quem sabe eu sou o único ser em todo o universo que sente
alguma coisa, e todos os outros humanos e animais são apenas robôs
irracionais? Talvez eu esteja sonhando, e todos com quem me encontro
sejam somente personagens em meu sonho. Talvez eu esteja preso num
mundo virtual, e todos os seres que vejo são simples simulações.
De
acordo com o atual dogma científico, tudo o que eu experimento é
resultado da atividade elétrica que ocorre em meu cérebro e
deveria, portanto, ser teoricamente exequível simular um mundo
inteiramente virtual que não me fosse possível distinguir do mundo
“real”. Alguns neurocientistas acreditam que num futuro não tão
distante poderemos efetivamente fazer coisas assim. Bem, quem sabe já
tenham sido feitas — por você? Até onde se sabe, o ano poderia
ser 2216, e você é um adolescente entediado imerso num jogo de
“realidade virtual” que simula o mundo primitivo e excitante do
início do século XXI . Uma vez ciente da mera exequibilidade desse
cenário, a matemática o leva a uma conclusão muito assustadora:
como só existe um mundo real, enquanto o número de mundos virtuais
potenciais é infinito, a probabilidade de você estar habitando o
único mundo real é quase nula.
Nenhuma
das descobertas científicas foi capaz de superar esse notório
Problema de Outras Mentes. O melhor teste que os estudiosos
apresentaram até o momento é o chamado Teste de Turing, mas ele
examina apenas convenções sociais. De acordo com o Teste de Turing,
para poder determinar se um computador tem mente, você deve se
comunicar simultaneamente com um computador e com uma pessoa real,
sem saber quem é quem ou o quê. Pode fazer as perguntas que quiser,
pode jogar jogos, discutir, até mesmo flertar com eles. Use todo o
tempo que julgar necessário. Depois, você terá de decidir qual é
o computador e quem é o humano. Se não conseguir, ou se cometer um
erro, o computador terá passado pelo Teste de Turing, e deveríamos
tratá-lo como se realmente tivesse uma mente. Contudo, isso não
seria uma prova definitiva, é claro. Reconhecer a existência de
outras mentes constitui meramente uma convenção social e legal.
O
Teste de Turing foi inventado em 1950 pelo matemático britânico
Alan Turing, um dos pais da era da computação. Turing era
homossexual em uma época na qual essa prática era ilegal na
Grã-Bretanha. Em 1952 ele foi condenado por praticar atos
homossexuais e obrigado a se submeter a castração química. Dois
anos depois, cometeu suicídio. O Teste de Turing é uma replicação
do teste mundano ao qual todo homossexual tinha de se submeter na
Grã-Bretanha em 1950: você consegue se fazer passar por um
heterossexual? Turing sabia por experiência pessoal que não
importava o que você realmente é — a única coisa que importa é
o que os outros pensam a seu respeito. De acordo com ele, no futuro
os computadores seriam como os homossexuais na década de 1950. Não
importa se os computadores efetivamente terão consciência, ou não.
A única coisa que importa é o que as pessoas pensarão sobre isso.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã
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