segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Um Café Lá em Casa | Live Foyn Friis e Nelson Faria

Uma Faca só Lâmina

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um
vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
João Cabral de Melo Neto

Preste atenção a palavras perigosas


Fique alerta ao emprego das palavras ‘extremismo’ e ‘terrorismo’. Esteja atento às noções fatais de emergência e exceção. Revolte-se contra o uso traiçoeiro de vocabulário patriótico.”
Timothy Snyder, in Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente

Para o jurista nazista Carl Schmitt, a essência do fascismo é concentrar-se na ideia de exceção. Um nazista supera os adversários criando a convicção de que o momento presente é excepcional, e depois esse estado de exceção é transformado em estado de emergência. Daí, os cidadãos trocam a liberdade por uma falsa segurança.
Segundo Snyder, quando políticos usam o termo Terrorismo para tentar nos fazer abrir mão da liberdade em nome de segurança, devemos abrir o olho.
Muitas vezes, quando tiranos falam de Extremismo, referem-se as pessoas que não estão na mesma corrente dominante do momento. No século XX, os que resistiam ao fascismo eram chamados de extremistas.
A ideia de Extremismo pode vir a designar tudo, exceto aquilo que realmente é: a tirania.

Acerca da liberdade

Não creio, no sentido filosófico do termo, na liberdade do homem. Todos agem não apenas sob um constrangimento exterior mas também de acordo com uma necessidade interior.”
Albert Einstein, in Como vejo o mundo

A morte e a morte de Quincas Berro D'Água - I

Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro D'Água. Dúvidas por explicar, detalhes absurdos, contradições no depoimento das testemunhas, lacunas diversas. Não há clareza sobre hora, local e frase derradeira. A família, apoiada por vizinhos e conhecidos, mantém-se intransigente na versão da tranquila morte matinal, sem testemunhas, sem aparato, sem frase, acontecida quase vinte horas antes daquela outra propalada e comentada morte na agonia da noite, quando a Lua se desfez sobre o mar e aconteceram mistérios na orla do cais da Bahia. Presenciada, no entanto, por testemunhas idôneas, largamente falada nas ladeiras e becos escusos, a frase final repetida de boca em boca representou, na opinião daquela gente, mais que uma simples despedida do mundo, um testemunho profético, mensagem de profundo conteúdo (como escreveria um jovem autor de nosso tempo).
Tantas testemunhas idôneas, entre as quais Mestre Manuel e Quitéria do Olho Arregalado, mulher de uma só palavra, e, apesar disso, há quem negue toda e qualquer autenticidade não só à admirada frase mas a todos os acontecimentos daquela noite memorável, quando, em hora duvidosa e em condições discutíveis, Quincas Berro D'Água mergulhou no mar da Bahia e viajou para sempre, para nunca mais voltar. Assim é o mundo, povoado de céticos e negativistas, amarrados, como bois na canga, à ordem e à lei, aos procedimentos habituais, ao papel selado. Exibem eles, vitoriosamente, o atestado de óbito assinado pelo médico quase ao meio-dia e com esse simples papel — só porque contém letras impressas e estampilhas — tentam apagar as horas intensamente vividas por Quincas Berro D'Água até sua partida, por livre e espontânea vontade, como declarou, em alto e bom som, aos amigos e outras pessoas presentes.
A família do morto — sua respeitável filha e seu formalizado genro, funcionário público de promissora carreira; tia Marocas e seu irmão mais moço, comerciante com modesto crédito num banco — afirma não passar toda a história de grossa intrujice de bêbedos inveterados, patifes à margem da lei e da sociedade, velhacos cuja paisagem devera ser as grades da cadeia e não a liberdade das ruas, o porto da Bahia, as praias de areia branca, a noite imensa. Cometendo uma injustiça, atribuem a esses amigos de Quincas toda a responsabilidade da malfadada existência por ele vivida nos últimos anos, quando se tornara desgosto e vergonha para a família. A ponto de seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das crianças, para as quais o avô Joaquim, de saudosa memória, morrera há muito, decentemente, cercado da estima e do respeito de todos. O que nos leva a constatar ter havido uma primeira morte senão física pelo menos moral, datada de anos antes, somando um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento, dando-nos o direito de pensar terem sido os acontecimentos posteriores — a partir do atestado de óbito até seu mergulho no mar — uma farsa montada por ele com o intuito de mais uma vez atazanar a vida dos parentes, desgostar-lhes a existência, mergulhando-os na vergonha e nas murmurações da rua. Não era ele homem de respeito e de conveniência, apesar do respeito dedicado por seus parceiros de jogo a jogador de tão invejada sorte, a bebedor de cachaça tão longa e conversada.
Não sei se esse mistério da morte (ou das sucessivas mortes) de Quincas Berro D'Água pode ser completamente decifrado. Mas eu o tentarei, como ele próprio aconselhava, pois o importante é tentar, mesmo o impossível.
Jorge Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D'Água

"Desvio para o Vermelho", obra do artista brasileiro Cildo Meireles





Mais obras do artista, aqui no site do Instituto Inhotim

O sertão

O sertão não conhece o mar. O mar não conhece o sertão. Não se tocam. Não se veem. Não se buscam. Mas há em ambos a mesma grandeza, a mesma imponência, a mesma inescrutabilidade. Sobre um e outro se estende esse mesmo enigma das majestades indecifráveis. De um e outro ressalta a mesma expressão de energia, força e poder a que se não resiste. Um e outro se nos antolham, do mesmo modo, como dois reservatórios insondáveis e inesgotáveis de vida.
Ante um e outro nos sentimos nulos, em todo o acanhamento do nosso nada, e temos a visão da imensidade, a sensação do infinito, a impregnação do eterno. É a comoção religiosa, que vibrava entre os primeiros navegadores, quando, ao avistarem a ourela das praias, onde se franja o pélago azulado, lhes saía d’alma todo um hino em um só grito: “O mar!”, “o mar largo!”. Assim me rebentava, há pouco, do seio, ao dar com os olhos na primeira orladura da região das matas e das serras este clamor íntimo de alvoroço: “O sertão! o sertão livre!”.
Não será livre o sertão? É, senhores, como se fizéssemos estoutra pergunta: “Não é livre o mar?”.
A questão, quanto ao mar, não existe, embora a vejamos estabelecida, a outra luz, em termos, que lhe tornem duvidosa a resposta. As potências navais contendem pelo domínio das suas armas nas estradas marítimas. Mas não há tratados, que logrem subjugar o indômito elemento das vagas. Juntasse embora o orgulho humano todos os seus monstros de guerra; e todos eles juntos não conseguiriam abaixar o dorso das águas eternas. Fundisse embora a indústria humana todo o metal, que se acumula nas entranhas da terra; e todo o ferro do planeta, minerado e forjado, não daria cadeias bastantes, para acorrentar a fúria de um maremoto. Cobrissem embora todas as frotas do mundo com o enxame dos seus navios a superfície inteira das ondas; e um movimento destas as poderia sepultar nas profundezas do abismo. Só Deus possui o jugo, a que se curva o oceano.
Mas se o Criador o mandasse calar; se lhe ordenasse às correntes que parassem, e, esfriando-lhe as entranhas, lhe comprimisse debaixo da mão onipotente as ondas remansadas, a vasta massa guardaria na sua imobilidade a imagem do movimento subitamente paralisado, o aspecto de uma grandeza adormecida à espera de outro milagre do céu, que a volvesse ao calor e inconstância de sua existência agitada.
Rui Barbosa, in Antologia

domingo, 29 de setembro de 2019

Menino de ilha

Às vezes, no calor mais forte, eu pulava de noite a janela com pés de gato e ia deitar-me junto ao mar. Acomodava-me na areia como uma cama fofa e abria as pernas aos alíseos e ao luar: e em breve as frescas mãos da maré cheia vinham coçar meus pés com seus dedos de água.
Era indizivelmente bom. Com um simples olhar podia vigiar a casa, cuja janela deixava apenas encostada; mas por mero escrúpulo. Ninguém nos viria nunca fazer mal. Éramos gente querida na ilha, e a afeição daquela comunidade pobre manifestava-se constantemente em peixe fresco, cestas de caju, sacos de manga-espada. E em breve perdia-me naquela doce confusão de ruídos... o sussurro da maré montante, uma folha seca de amendoeira arrastada pelo vento, o gorgulho de um peixe saltando, a clarineta de meu amigo Augusto, tuberculoso e insone, solando valsas ofegantes na distância. A aragem entrava-me pelos calções, inflava-me a camisa sobre o peito, fazia-me festas nas axilas, eu deixava a areia correr de entre meus dedos sem saber ainda que aquilo era uma forma de cortar o tempo. Mas o tempo ainda não existia para mim; ou só existia nisso que era sempre vivo, nunca morto ou inútil.
Quando não havia luar era mais lindo e misterioso ainda. Porque, com a continuidade da mirada, o céu noturno ia desvendando pouco a pouco todas as suas estrelas, até as mais recônditas, e a negra abóbada acabava por formigar de luzes, como se todos os pirilampos do mundo estivessem luzindo na mais alta esfera. Depois acontecia que o céu se aproximava e eu chegava a distinguir o contorno das galáxias, e estrelas cadentes precipitavam-se como loucas em direção a mim com as cabeleiras soltas e acabavam por se apagar no enorme silêncio do Infinito. E era uma tal multidão de astros a tremeluzir que, juro, às vezes tinha a impressão de ouvir o burburinho infantil de suas vozes. E logo voltava o mar com o seu marulhar ilhéu, e um peixe pulava perto, e um cão latia, e uma folha seca de amendoeira era arrastada pelo vento, e se ouvia a tosse de Augusto longe, longe. Eu olhava a casa, não havia ninguém, meus pais dormiam, minhas irmãs dormiam, meu irmão pequeno dormia mais que todos. Era indizivelmente bom.
Havia ocasiões em que adormecia sem dormir, numa semiconsciência dos carinhos do vento e da água no meu rosto e nos meus pés. É que vinha-me do Infinito uma tão grande paz e um tal sentimento de poesia que eu me entregava não a um sono, que não há sono diante do Infinito, mas a um lacrimoso abandono que acabava por raptar-me de mim mesmo. E eu ia, coisa volátil, ao sabor dos ventos que me levavam para aquele mar de estrelas, sem forma e corpo e ouvindo o breve cochicho das ondas que vinham desaguar nas minhas pernas.
Mas - como dizê-lo? - era sempre nesses momentos de perigosa inércia, de mística entrega, que a aurora vinha em meu auxílio. Pois a verdade é que, de súbito, eu sentia a sua mão fria pousar sobre minha testa e despertava do meu êxtase. Abria os olhos e lá estava ela sobre o mar pacificado, com seus grandes olhos brancos, suas asas sem ruído e seus seios cor-de-rosa, a mirar-me com um sorriso pálido que ia pouco a pouco desmanchando a noite em cinzas. E eu me levantava, sacudia a areia do meu corpo, dava um beijo de bom-dia na face que ela me entregava, pulava a janela de volta, atravessava a casa com pés de gato e ia dormir direito em minha cama, com um gosto de frio em minha boca.
Vinicius de Moraes, in Prosa

As Curvas da Estrada de Santos | Gal Costa

Acerca da cultura

Nenhum país tem o direito de se apresentar como guia cultural dos restantes. As culturas não devem ser consideradas melhores ou piores, todas elas são culturas e basta.”
José Saramago, in As palavras de Saramago

Amor feinho

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.
Adélia Prado

Tirinha de Armandinho


O parecer

No dia seguinte, a Sra. Marie me contou que o Sr. Zaturecky a ameaçara, vociferara e tinha ido reclamar; a infeliz criatura estava com a voz trêmula, à beira das lágrimas; dessa vez fiquei colérico. Compreendia muito bem que a Sra. Marie, que até agora vinha se distraindo com esse jogo de esconde-esconde (mais por simpatia por mim do que por franca alegria), agora se sentisse ofendida e visse em mim, naturalmente, a causa dos seus aborrecimentos. E se eu acrescentasse a esses agravos o fato de a Sra. Marie ter revelado o endereço de minha mansarda, de minha porta ter sido tamborilada durante dez minutos e de haverem assustado Klara, minha cólera se transformaria em fúria.
E lá estava eu a dar grandes passadas no escritório da Sra. Marie, mordendo os lábios, fervendo, imaginando uma vingança, e eis que a porta se abre e aparece o Sr. Zaturecky.
Assim que me viu, seu rosto se iluminou de felicidade. Inclinou-se e me deu bom-dia.
Chegara muito cedo, sem me dar tempo de pensar em minha vingança.
Perguntou se me haviam entregue seu recado da véspera.
Não respondi nada.
Ele repetiu a pergunta.
Sim — respondi finalmente.
E o senhor vai escrever o parecer?
Eu o via diante de mim: mesquinho, teimoso, ameaçador; via o sulco vertical que desenhava em sua testa o traço de sua única paixão; via esse traço retilíneo e compreendi que era uma linha reta determinada por dois pontos: meu parecer crítico e seu artigo; e que, exceto o vício dessa linha maníaca, nada existia em sua vida a não ser uma ascese digna de um santo. E não resisti a uma malevolência salutar.
Espero que o senhor compreenda que não tenho mais nada a lhe dizer depois do que se passou ontem — disse eu.
Não estou compreendendo.
Não tente disfarçar. Ela me contou tudo. É inútil negar.
Não estou compreendendo — tornou a repetir o homenzinho, mas, desta vez, em tom mais enérgico.
Assumi um tom jovial e quase afetuoso:
Escute, Sr. Zaturecky, não lhe quero fazer censuras. Eu também sou mulherengo, e o compreendo. Eu também, em seu lugar, faria de bom grado propostas a uma mulher bonita, se me encontrasse sozinho com ela num apartamento e ela estivesse nua por baixo de uma capa.
O homenzinho ficou lívido.
É um insulto!
Não, é a verdade, Sr. Zaturecky.
Foi aquela moça que contou isso?
Para mim ela não tem segredos.
Camarada assistente, isso é um insulto, sou um homem casado, tenho mulher, tenho filhos! — O homenzinho deu um passo à frente, obrigando-me a recuar.
É uma circunstância agravante, Sr. Zaturecky.
O que o senhor quer dizer?
Quero dizer que o fato de ser casado é uma circunstância agravante para um mulherengo.
O senhor vai retirar essas palavras! — disse o Sr. Zaturecky em tom ameaçador.
Está certo! — disse eu, conciliador. — O casamento não é necessariamente uma circunstância agravante para um mulherengo. Mas pouco importa. Já disse que não fiquei com raiva e que compreendo perfeitamente o que se passou. Mas existe mesmo assim uma coisa que está acima da minha compreensão: é que o senhor possa exigir que um homem escreva um parecer sobre seu artigo, depois de ter feito propostas à sua namorada.
Camarada assistente! É o Sr. Kalusek, doutor em letras, redator-chefe da revista O Pensamento Plástico, periódico publicado sob os auspícios da Academia de Ciências, que exige esse parecer: e o senhor deve escrevê-lo!
Escolha! O parecer ou minha namorada? O senhor não pode querer os dois!
Veja como está se comportando! — gritou o Sr. Zaturecky, dominado por uma cólera desesperada.
Coisa estranha, eu tinha de repente o sentimento de que o Sr. Zaturecky queria realmente seduzir Klara. Explodi e comecei por minha vez a gritar:
O senhor se acha com o direito de pregar moral? O senhor é quem deveria apresentar as mais completas desculpas à nossa secretária.
Virei as costas ao Sr. Zaturecky e ele saiu da sala titubeante, desamparado.
Até que enfim! — disse com um suspiro, depois desse combate difícil, mas vitorioso, e acrescentei dirigindo-me à Sra. Marie: — Acho que agora ele vai me deixar em paz com esse parecer!
Depois de um minuto de silêncio, a Sra. Marie perguntou-me timidamente:
E por que o senhor não redige o parecer?
Porque o artigo dele, minha cara Marie, é um amontoado de asneiras.
E por que o senhor não escreve um parecer dizendo que é um amontoado de asneiras?
E por que cabe a mim escrevê-lo? Por que devo fazer inimigos?
A Sra. Marie me olhava com um grande sorriso indulgente quando a porta abriu-se de novo; o Sr. Zaturecky apareceu com o braço levantado:
Vamos ver quem vai pedir desculpas!
Proferiu essas palavras com uma voz estridente e desapareceu.
Milan Kundera, in Risíveis Amores

Um estado de cavalos. Os cavaleiros


Hoje é que reconheço a forma do que meu padrinho muito fez por mim, ele que criara amparado amor ao seu dinheiro, e que tanto avarava. Pois, várias viagens, ele veio ao Curralinho, me ver ― na verdade, também, ele aproveitava para tratar de vender bois e mais outros negócios ― e trazia para mim caixetas de doce de burití ou de araticúm, requeijão e marmeladas. Cada mês de novembro, mandava me buscar. Nunca ralhou comigo, e me dava de tudo. Mas eu nunca pedi coisa nenhuma a ele. Dez vezes mais me desse, e não se valia. Eu não gostava dele, nem desgostava. Mais certo era que com ele eu não soubesse me acostumar. Acabei, por razão outra, fugindo do São Gregório, o senhor vai ver. Nunca mais vi meu padrinho. Mas por isso ele não me desejou mal; nem entendo. Decerto, ficou entusiasmado, quando teve notícias de que eu era o jagunço. E me deixou por herdeiro, em folha de testamento: das três fazendas, duas peguei. Só o São Gregório foi que ele testou para uma mulata, com que no fim de sua velhice se ajuntou. Disso não fiz conta. Mesmo o que recebi eu menos merecia. Agora, derradeiramente, destaco: quando velho, ele penou remorso por mim; eu, velho, a curtir arrependimento por ele. Acho que nós dois éramos mesmo pertencentes.
Depois pouco que voltei do Curralinho, definitivo, grande fato se deu, que ao senhor não escondo. Certa madrugada, os cachorros todos latiram, no São Gregório, alguém estava batendo. Era mês de maio, em má lua, o frio fiava. E, quando tão moço, eu custava muito para me levantar; não por fraca saúde, mas por preguiça mal corrigida. Assim que saí da cama e fui ver se era de se abrir, meu padrinho Selorico Mendes, com a lamparina na mão, já estava pondo para dentro da sala uns homens, que eram seis, todos de chapéu-grande e trajados de capotes e capas, arrastavam esporas. Ali entraram com uma aragem que me deu susto de possível reboldosa. Admirei: tantas armas. Mas eles não eram caçadores. Ao que farejei: pé de guerra.
Meu padrinho mandou eu ir lá dentro, chamar alguma das mulheres, que coasse café quente. Quando voltei, um dos homens ― Alarico Totõe ― estava expondo, explicando. Todos continuavam sem tomar assentos. Alarico Totõe sendo um fazendeiro do Grão-Mogol, conhecido de meu padrinho. Ele, com seu irmão Aluiz Totõe, pessoas finas, gente de bem. Tinham encomendado o auxílio amigo dos jagunços, por uma questão política, logo entendi. Meu padrinho escutava, aprovando com a cabeça. Mas para quem ele sempre estava olhando, com uma admiração toda perturbosa, era para o chefe dos jagunços, o principal. E o senhor sabe quem era esse? Joca Ramiro! Só de ouvir o nome, eu parei, na maior suspensão.
Drede Joca Ramiro estava de braços cruzados, o chapéu dele se desabava muito largo. Dele, até a sombra, que a lamparina arriava na parede, se trespunha diversa, na imponência, pojava volume. E vi que era um homem bonito, caprichado em tudo. Vi que era homem gentil. Dos lados, ombreavam com ele dois jagunções; depois eu soube ― que seus segundos. Um, se chamava Ricardão: corpulento e quieto, com um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado. O outro ― Hermógenes ― homem sem anjo-da-guarda. Na hora, não notei de uma vez. Pouco, pouco, fui receando. O Hermógenes: ele estava de costas, mas umas costas desconformes, a cacunda amontoava, com o chapéu raso em cima, mas chapéu redondo de couro, que se que uma cabaça na cabeça. Aquele homem se arrepanhava de não ter pescoço. As calças dele como que se enrugavam demais da conta, enfolipavam em dobrados. As pernas, muito abertas; mas, quando ele caminhou uns passos, se arrastava ― me pareceu ― que nem queria levantar os pés do chão. Reproduzo isto, e fico pensando! será que a vida socorre à gente certos avisos? Sempre me lembro dele, me lembro mal, mas atrás de muitas fumaças. Naquela hora, eu estava querendo que ele não virasse a cara. Virou. A sombra do chapéu dava até em quase na boca, enegrecendo.
No terminar, Alarico Totõe pediu que precisavam de um recanto oculto, onde a tropa dos homens passasse o dia que vinha, pois que viajavam de noite, dando surpresa e desmanchando rastro. ― Tem ótimo reconditório... ― meu padrinho consentiu. E mandou que eu fosse guiar aquela gente, até aonde o pôço do Cambaubal, num fechado, mato caàpuão. Primeiro, tomou-se café. Assim Joca Ramiro corria pronto os olhos, em tudo ali, sorrindo franco, a cara muito galharda, e pôs as mãos nos bolsos. Ricardão ria grosso. E aquele Hermógenes veio para sair comigo, mais o outro homem ― um cabeça-chata alvaço, com muita viveza no olhar; desse gostei, Alaripe se chamava, até hoje se chama. Em que, eles dois a cavalo, eu a pé, viemos até onde estavam esperando os outros, dois passos, no baixo da estrada.
Aí mês de maio, falei, com a estrela-dalva. O orvalho pripingando, baciadas. E os grilos no chirilim. De repente, de certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E deviam de ser perto duns cem. Respirei! a gente sorvia o bafejo ― o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão. Adonde o movimento esbarrado que se sussurra duma tropa assim ― feito de uma porção de barulhinhos pequenos, que nem o dum grande rio, do a-flôr. A bem dizer, aquela gente estava toda calada. Mas uma sela range de seu, tine um arreaz, estribo, e estribeira, ou o coscós, quando o animal lambe o freio e mastiga. Couro raspa em couro, os cavalos dão de orêlha ou batem com o pé. Daqui, dali, um sopro, um meio-arquêjo. E um cavaleiro ou outro tocava manso sua montada, avançando naquele bolo, mudando de lugar, bridava. Eu não sentia os homens, sabia só dos cavalos. Mas os cavalos mantidos, montados. E diferente. Grandeúdo. E, aos poucos, divulgava os vultos muitos, feito árvores crescidas lado a lado. E os chapéus rebuçados, as pontas dos rifles subindo das costas. Porque eles não falavam ― e restavam esperando assim ― a gente tinha medo. Ali deviam de estar alguns dos homens mais terríveis sertanejos, em cima dos cavalos teúdos, parados contrapassantes. Soubesse sonhasse eu?
Decerto de guarda, apartado dos mais, se via um cavaleiro, inteiro.Veio vindo para cá, o cavalo dele era escuro; era um alazão de bom pisar.
Capixúm, é eu, mais o siô Hermógenes... ― o cabeça-chata falou aviso.
A bom, Alaripe! ― o de lá respondeu.
A gente se encostava no frio, escutava o orvalho, o mato cheio de cheiroso, estalinho de estrelas, o deduzir dos grilos e a cavalhada a peso. Dava o raiar, entreluz da aurora, quando o céu branquece. Ao o ar indo ficando cinzento, o formar daqueles cavaleiros, escorrido, se divisava. E o senhor me desculpe, de estar retrasando em tantas minudências. Mas até hoje eu represento em meus olhos aquela hora, tudo tão bom; e, o que é, é saudade.
De junto com o Capixúm, se aproximou outro um, também, de soto-chefe, que o Hermógenes tratou de sié-Marques. O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim ― fantasia de dizer ― o ser de uma irara, com seu cheiro fedorento. ― Aoh, uê, alguém, irmão? ― aquele sié-Marques perguntou, tratando de minha pessoa. ― De paz, mano velho. Amigo que veio mostrar à gente o arrancho... ― o Hermógenes contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem mais delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do Hermógenes, puxando todos para o Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era abelhudo. Mas, agora, eles conversavam, alguns riam, diziam graças. Presumi que estavam muito contentes de ganhar o repouso de horas, pois tinham navegado na sela a noite toda. Um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino! ― Siruiz, cadê a moça virgem? Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para mim a toada toda estranha!

Urubú é vila alta,
mais idosa do sertão padroeira, minha vida ―
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão buriti ― água azulada,
carnaúba ― sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão.
Qando vou pra dar batalha,
convido meu coração...

Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é assim.
Me emprestaram um cavalo, e eu fui, com o Alaripe, esperar a chegada da tropa de burros, adiante, na boca da ponte. Não tardava já vinham aparecendo. Um lote de dez mulas, com os cargueiros. Mas vinham com os cincerros tapados, tafulhados com rama de algodão: afora o geme-geme das cangalhas, não faziam nenhum rumor. Guiamos os tropeiros também para o Cambaubal. Mas, aí, meu padrinho chegou, com Joca Ramiro, Ricardão, e os Totões. Meu padrinho insistiu, me trouxe outra vez para casa. O dia já estava clareando completo. Meu coração restava cheio de coisas movimentadas.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

sábado, 28 de setembro de 2019

Hagar, o Horrível


Capítulo 131 - De uma calúnia

Como eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloco-cerebral, - o que era simples opinião e não remorso,- senti que alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele sorriu maliciosamente, e disse-me:
-Seu maganão! Recordações do passado, hem?
-Viva o passado!
-Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
-Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição, -principalmente a última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc, ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo 101 e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante - o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, essa meiga fatuidade, que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha a descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir.”
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

Carta aberta de Valter Hugo Mãe a Marcelino Freire: ‘Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil’

Meu caro amigo Marcelino,

tenho medo de voltar ao seu país porque cresci relutante para ser adulto e sei que me mantenho em tantas coisas apenas uma criança. Julgo que saio à rua ainda com a alegria de encontrar alguém com quem, de algum modo, possa pressentir a alegria que existia quando estávamos apenas a brincar. Eu não sei estar sozinho. Não aprecio a solidão, gosto das pessoas e não há como curar minha natureza para gostar delas. Mas agora tenho medo do seu país que eu amo. Fiquei toda a vida sonhando ser português e brasileiro, para pertencer a Machado de Assis e Fernando Pessoa. Sonhei que meu orgulho teria papel passado, como quem casa consciente, dedicado, de amor profundo, para toda a eternidade. Eu não previ este medo. Fico desolado.
Estão proibindo as pessoas de serem negras, Marcelino, proibiram de ser mulheres, Marcelino, agora decidiram proibir de ser criança e eu sabia que haveria alguma coisa que ainda me pegaria. Por isso, há muito que eu já brigava pelos negros e há muito que eu já brigava pelas mulheres, eu já brigava pelos viados todos e pelas pessoas sem explicação, tanta gente que só é, sem ter muito como entender ou fazer entender, e quer apenas estar em paz. Eu dei de barato tanta coisa sobre a paz que talvez tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro lugar da guerra. Sou muito despreparado. Passei pelo tempo buscando o deslumbre e vi a melhor versão de cada instante, não vi que medravam no escuro as piores intenções, os ódios que inviabilizam a humanidade. Eu, sinceramente, não vi, Marcelino.
Caminhei nessas ruas todas, tantos Estados, tantas capitais, e eu não dei conta desse ódio. Notei os sorrisos, o samba, o jeito generoso das garotas e de alguns garotos olhando para minha pouca beleza, eu notei os livros, tanta Literatura maravilhosa e a obra do Tunga e Artur Bispo do Rosário bordando as vestes para alindar seu encontro com Deus. Marcelino, no Brasil eu senti invariavelmente que Deus era possível. Sabe quando você se depara com algo perfeito e isso só pode ser graça de uma inteligência superior? Eu vi uma arara azul gigante, devia ter mais de um metro, e ela era mesmo um atributo mágico do mundo, estava livre no cimo de uma árvore na floresta amazônica.
Naquele encontro, eu consumei tudo, Guimarães Rosa e Elza Soares, Tarsila do Amaral e Fernanda Montenegro mais Marília Pêra e Walter Salles, e Darcy Ribeiro mais Heitor Villa-Lobos, e Cartola com Cildo Meireles e Adriana Varejão. Mais Gal Costa e Mônica Salmaso e Paulo Freire lendo a mão de Chico César genial. Eu entendi que Brasil significa beleza e uma profunda esperança. Juro. Parecia uma experiência mística, como se algum espírito me informasse e eu virasse um mensageiro sagrado. Eu elogiei o Brasil em todas as ocasiões porque eu acreditei, e acreditei que minha mensagem era sagrada. Você acha que um espírito me enganaria? Viria sobre mim de propósito para me iludir?
Marcelino, eu não consumei minha adultez, sou apenas um menino, fui sempre ao seu país para encontrar mais amigos e brincar um pouco de ser feliz. Lembra de gostarmos tanto de Manoel de Barros? Eu sei exatamente a razão de gostar tanto da poesia de Manoel de Barros. Ele usa pássaro e amigos e seus versos foram os melhores brinquedos. Minha história é rigorosamente igual. Não tinha muito mais. Pais, irmãos, amigos, os pássaros voando, versos. O lugar de guardar tudo é o verso. O único sentido de ter verso é amar gente e cuidar de pássaro livre.
Estão atirando sobre as crianças e alguém me diz que apenas as negras, são apenas as crianças negras, mas eu duvido que parem por aí. Nós, as crianças mais claras não estamos na linha do tiro? Nem que seja por vergonha, vamos morrer também se não dissermos nada, se não fizermos nada. E se as crianças negras viraram proibidas, que legitimidade teremos nós? Sabe, Gilberto Freyre explicou tão certinho que os portugueses são os mestiços da Europa. Eu tenho sangue árabe, africano e europeu. Sou uma porção de cada coisa e minha pena é não lembrar, só minhas células sabem.
Você sabe a razão para rejeitarem os negros para as periferias? Eu não descobri. As casas do centro não têm tamanho para negros? Eles são maiores? Aumentam quando dormem? Quando sonham? Ficam derrubando paredes, perigando as fundações dos prédios? Eu acho que não. Eu vi um moço entrando na livraria à minha frente, coube na porta melhor do que eu. Você acha que tem alguém obrigando a que ele corra para a periferia depois de pagar o seu livro? Eu não posso acreditar. Que pena que eu não falei com ele, devia ter perguntado. Talvez me contasse de como fica infinito sonhando, ao ponto de perturbar o silêncio, tremer o prédio, causar fumo. Você já pensou se nossos sonhos também fizessem isso? Eu ia querer, Marcelino. Eu ia querer que meus sonhos fossem tão grandes. Mas sonho só com a paz. Estar sossegado com minha família e meus amigos. Notar os pássaros voando.
Marcelino, façamos uma jura de não morrer durante o plano de nos matarem. Não somos senão ternuras gigantes, guerreiros açucarados, eu entendi que nós precisamos de um pacto poético para embravecer nossa cidadania. Você, que é meu amigo e escritor que tanto admiro, não me falte nunca desse lado. Cuide de Chico Buarque e de Caetano Veloso, por favor, em qualquer cabeça sã do mundo eles representam o Deus possível. Cuide de Maria Bethânia. De Sônia Braga. Diga a Davi Kopenawa e a Ailton Krenak que a floresta vai sempre amá-los, diga que a arara me garantiu. Marcelino, fico ouvindo Rodrigo Amarante e quase ainda acredito em tudo outra vez (Rodrigo é perfeito. Poderia ser a própria arara). Quase perco o medo. Vista também sua roupa de super-herói e sobreviva. Você tem de manter a maravilha do Brasil. Não deixe que acabem com a maravilha do Brasil. Se resistirmos, nossa delicadeza vai ser uma lição resplandecente, e vamos ficar mais belos que os modelos nos filmes gringos. Vamos, sim, Marcelino.
Haveremos de devolver o futuro às crianças. E seremos sempre futuros também. Só quem desistiu passou a ocupar seu canto no passado. Marcelino, reassumo meu compromisso com a esperança. Vou escolher sempre minha vida como lugar de semente. No meu medo, Marcelino, muita coragem vai germinar.
Valter Hugo Mãe, in The Intercept Brasil, 27/09/2019

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Canto de Ossanha | Mariene de Castro & Almério

O degrau da lágrima

Nasci numa casa com escada.

Aquela escada,
dizem,
nasceu antes da casa.

O seu motivo
era o de todas as escadas:
medo de sermos terra,
temor de lavas e monstros.

Alteada sobre os céus
a casa era mais que um ventre.
Era um farol.

Nesse farol sem mar,
me lembro chorando
sobre o primeiro degrau.

Chorar é lá fora, advertia o pai.
Lágrimas
murcham aquém da porta:
esse era o mando.

A proibição da lágrima
se somava ao interdito do chão:
medo dos rios,
das indomáveis enchentes.

Ainda hoje
uma voz antiga,
dentro de mim, incita:
aprende do pranto
o parto das fontes.

Sempre que chorares,
nascerás uma outra vez.
Mia Couto

Uma herança e um neto inesperados

No inverno de 1957, mais ou menos no momento em que Alice Parkins o viu correndo totalmente nu, correnteza abaixo, no riacho McKensie, tentando apanhar um salmão com sua vara de pescar, a maioria das pessoas na vizinhança começou a achar que Jake era um pouco maluco. Felizmente para ele, a vizinhança era do tipo que quase havia desaparecido da vida americana – as pessoas eram amistosas e respeitadoras, e, contanto que se fosse somente difícil, mas não perigoso, ninguém se metia na vida de ninguém. Jake, claro, não se achava maluco, nem mesmo vagamente anormal; como qualquer um que deixa a mente vaguear por tempo e distância suficientes, de vez em quando a perdia. Cada vez mais convencido de sua imortalidade desabrochante, Jake não tinha pressa de encontrá-la. Acreditava ter tempo de sobra. Via a si mesmo como um castor que avistara alguns anos antes no Gualala, boiando rio abaixo, deitado de costas, as atas encolhidas no peito, olhando para o céu profundamente azul, guiando-se com o rabo, indolente e feliz. Então, no começo da primavera seguinte, o delegado perturbou o calmo fluxo de sua vida.
Cliff Hobson era um rapaz do lugar que entrara para a polícia na volta da Coréia. Considerava seu trabalho um serviço público, ajudando as pessoas e resolvendo casos. Sabia que Jake produzia algum uísque muito antes de ir para a Coréia; tinha até experimentado a bebida uma vez, quando foi entregar ao velho uma pilha de madeira. Tinha gosto de diesel quando descia pela garganta e, ao atingir o estômago, era como um golpe de compressão do cilindro de um bulldozer D-8, uma imagem que sempre se lembraria. Achava que ninguém jamais iria comprar para consumo humano, não via nela um problema para a lei, e não achava razão alguma para transformá-la em um. Cliff gostava do seu trabalho; podia guiar um jipe novinho, de tração nas quatro rodas, por toda parte, e podia falar no rádio. A única coisa de que não gostava em seu trabalho era de dar más notícias. Sabia que Jake não iria gostar.
Jake não gostou:
Que porra de merda é essa?! guinchou, amassando os papéis na mão ossuda.
Cliff deu meio passo para trás.
Isso significa que se iniciaram os procedimentos para vender sua terra, por causa de impostos devidos; você nunca pagou impostos, nem sequer uma vez, é o que diz aqui.
Eu comprei o maldito lugar antes de existir qualquer imposto.
Os impostos existem há muito tempo resmungou Cliff e me parece que você tem de pagar ou vão vender este lugar para uma pessoa que pague.
Bem, eu não tenho US$ 70 mil, mas tenho uma chumbeira calibre 12 e uma Krag calibre 44, e você pode levar a notícia de que qualquer um que tentar comprar minha terra ou se apossar dela vai ter que me matar primeiro, e mesmo assim meu fantasma vai assombrar os seus traseiros pra valer. Pra valer, está me ouvindo?
Não vai haver tiroteio nenhum disse Cliff com firmeza.
Bom,latiu Jake –, então nenhum deles vai ser morto.
Ficaram nisso.
Quatro dias depois, no final da visita, o delegado foi embora deixando Jake em prantos. Gabriela, sua única filha, tinha se afogado.
Foi a primeira das duas vezes em que Jake largou a bebida. Largou por três dias, até o fim das cerimônias fúnebres. Quase todos acreditaram que esse inesperado amansamento fosse um ato de respeito, e se surpreenderam um pouco com seu comportamento; os que o conheciam bem sabiam que era um sintoma de luto, e se aliviaram quando ele voltou a beber. As almas mais bondosas sentiam que ele queria adotar o neto por ser a coisa mais decente a ser feita, apesar de intimamente duvidarem que um homem chegando aos 80 pudesse criar uma criança de maneira adequada – de forma alguma consideraram ser pelo dinheiro. Os mais chegados a Jack tinham certeza que era pelo dinheiro: uma herança de US$ 500 mil dólares pagaria um monte de impostos atrasados, restando o bastante para cobrir seu gosto por apostas altas. De fato, os que participavam regularmente dos jogos de pôquer nas noites de sábado apostavam na base de oito a cinco que o menino iria embora em dois anos.
Mas para Jake a coisa era mais complicada do que todas essas opiniões juntas, tão complicada que nem tentou entender. Em vez disso, seguiu seus instintos. Quando ouviu os advogados de Gabriela falarem em dinheiro, uma faísca lhe veio aos olhos; quando, porém, viu o neto pela primeira vez, uma faísca que veio ao sangue. Via os dois pescando de tardinha, arremessando a vara no fundão da cachoeira de Tottleman, o moleque a ganir enquanto uma truta de 30 centímetros de comprimento dilacerava a minhoca que tentava escapar. Via aniversários e luvas de beisebol, e uma viagem à cidade de vez em quando para assistir ao jogo vagabundo dos Giants; alguém que ele poderia ensinar a jogar cartas, alguém com quem poderia beber e contar as histórias de sua vida e os segredos da imortalidade. E, se via os US$ 430 mil dólares numa conta conjunta, os outros US$ 70 mil tirados para cobrir as despesas de casa e comida, não deixava que isso o influenciasse excessivamente.
Jim Dodge, in Fup

Caixa de Pandora, escultura de Valdir Rocha


O Teste de Turing

Talvez as ciências biológicas estejam olhando o problema pelo ângulo errado. Elas creem que a vida consiste tão somente em uma questão de processamento de dados e que organismos são máquinas de calcular e de tomar decisões. No entanto, essa analogia entre organismos e algoritmos pode nos induzir ao erro. No século XIX , os cientistas descreveram cérebros e mentes como se fossem motores a vapor. Por que motores a vapor? Porque era a tecnologia avançada da época, que acionava trens, navios e fábricas, de modo que, quando humanos tentavam explicar a vida, assumiam que ela devia funcionar de acordo com princípios análogos. Mente e corpo são feitos de tubos, cilindros, válvulas e pistões que criam e aliviam pressão, produzindo assim movimentos e ações. Esse conceito teve influência profunda até na psicologia freudiana, o que explica por que muitos de nossos jargões psicológicos estão repletos de conceitos emprestados da engenharia mecânica.
Considere-se, por exemplo, o seguinte argumento freudiano: “Exércitos aproveitam a libido como agente da agressão militar. O exército recruta jovens exatamente quando sua libido está no auge. O exército restringe as oportunidades de os soldados terem sexo e aliviarem essa pressão, a qual, consequentemente, se acumula dentro deles. O exército então redireciona essa pressão reprimida e a deixa ser libertada em forma de agressão militar”. É exatamente assim que funciona um motor a vapor. Aprisiona-se o vapor de uma ebulição em um recipiente fechado. O vapor acumula mais e mais pressão, até que subitamente abre-se uma válvula, e a pressão é libertada em uma determinada direção e aproveitada para impulsionar um trem ou um tear. Não só em exércitos, mas em todos os campos de atividade, frequentemente nos queixamos das pressões que se acumulam em nós e tememos que, a menos que consigamos “dar vazão a algum vapor”, possamos explodir.
No século XXI, soaria infantil comparar a psique humana a um motor a vapor. Conhecemos hoje uma tecnologia muito mais sofisticada — o computador — e assim explicamos a psique humana como se fosse um computador processando dados, e não um motor a vapor regulando pressões. Mas essa analogia pode revelar-se tão ingênua quanto a anterior. Afinal, computadores não têm mente. Eles não anseiam por nada, nem quando têm um bug, e a internet não sofre nem quando regimes autoritários cortam países inteiros da rede. Então, por que usar computadores como modelo para compreender a mente?
Bem, será que temos mesmo certeza de que computadores não têm sensações nem desejos? E, ainda que não tenham nada disso no presente, será que um dia podem tornar-se complexos o bastante para desenvolver consciência? Se isso acontecer, como vamos nos certificar? Quando computadores substituírem o motorista de ônibus, o professor e o psicólogo, como vamos determinar se têm sentimentos ou se são apenas um conjunto de algoritmos irracionais?
No que tange aos humanos, hoje somos capazes de diferenciar experiências mentais conscientes de atividades não conscientes do cérebro. Embora estejamos longe de entender a consciência, cientistas conseguiram identificar algumas de suas assinaturas eletroquímicas. Para isso, começaram com a seguinte suposição: sempre que humanos relatam que estão conscientes de algo, pode-se acreditar neles. Com base nessa suposição, os cientistas podem isolar padrões cerebrais específicos que aparecem cada vez que humanos afirmam estarem conscientes, mas nunca aparecem em estados inconscientes.
Isso permitiu aos cientistas determinar, por exemplo, se uma aparente vítima de AVC em estado vegetativo perdeu a consciência por completo ou apenas o controle de seu corpo e sua fala. Se o cérebro do paciente exibir as assinaturas denunciadoras de consciência, ele provavelmente está consciente, mesmo que não consiga se mexer ou falar. De fato, recentemente médicos conseguiram se comunicar com pacientes nesse estado usando imagens por ressonância magnética funcional. Eles fazem aos pacientes perguntas cuja resposta é sim ou não; dizem-lhes que se imaginem jogando tênis se a resposta for sim e visualizando onde fica sua casa se a resposta for não. Os médicos podem então observar como o córtex motor se ilumina quando os pacientes se imaginam jogando tênis (resposta “sim”), enquanto a resposta “não” é indicada pela ativação de regiões cerebrais responsáveis pela memória espacial.
Tudo isso se aplica muito bem a humanos, mas e quanto aos computadores? Como os computadores, cuja base é o silício, têm estruturas muito diferentes daquelas que compõem as redes neurais humanas, baseadas no carbono, as assinaturas de consciência dos humanos podem não ser relevantes para eles. Parece que estamos presos num círculo vicioso. A partir da suposição de que podemos acreditar em humanos quando relatam que estão conscientes, podemos identificar as assinaturas da consciência humana e depois usá-las para “demonstrar” que humanos estão realmente conscientes. Entretanto, se uma inteligência artificial autorreportar que está consciente, devemos simplesmente acreditar nisso?
Ainda não temos uma resposta satisfatória para esse problema. Milhares de anos atrás os filósofos já tinham se dado conta de que não havia como demonstrar conclusivamente que alguém, além de si mesmo, possui uma mente. De fato, mesmo no caso de outros humanos, só presumimos que tenham consciência — não temos como ter certeza disso. Quem sabe eu sou o único ser em todo o universo que sente alguma coisa, e todos os outros humanos e animais são apenas robôs irracionais? Talvez eu esteja sonhando, e todos com quem me encontro sejam somente personagens em meu sonho. Talvez eu esteja preso num mundo virtual, e todos os seres que vejo são simples simulações.
De acordo com o atual dogma científico, tudo o que eu experimento é resultado da atividade elétrica que ocorre em meu cérebro e deveria, portanto, ser teoricamente exequível simular um mundo inteiramente virtual que não me fosse possível distinguir do mundo “real”. Alguns neurocientistas acreditam que num futuro não tão distante poderemos efetivamente fazer coisas assim. Bem, quem sabe já tenham sido feitas — por você? Até onde se sabe, o ano poderia ser 2216, e você é um adolescente entediado imerso num jogo de “realidade virtual” que simula o mundo primitivo e excitante do início do século XXI . Uma vez ciente da mera exequibilidade desse cenário, a matemática o leva a uma conclusão muito assustadora: como só existe um mundo real, enquanto o número de mundos virtuais potenciais é infinito, a probabilidade de você estar habitando o único mundo real é quase nula.
Nenhuma das descobertas científicas foi capaz de superar esse notório Problema de Outras Mentes. O melhor teste que os estudiosos apresentaram até o momento é o chamado Teste de Turing, mas ele examina apenas convenções sociais. De acordo com o Teste de Turing, para poder determinar se um computador tem mente, você deve se comunicar simultaneamente com um computador e com uma pessoa real, sem saber quem é quem ou o quê. Pode fazer as perguntas que quiser, pode jogar jogos, discutir, até mesmo flertar com eles. Use todo o tempo que julgar necessário. Depois, você terá de decidir qual é o computador e quem é o humano. Se não conseguir, ou se cometer um erro, o computador terá passado pelo Teste de Turing, e deveríamos tratá-lo como se realmente tivesse uma mente. Contudo, isso não seria uma prova definitiva, é claro. Reconhecer a existência de outras mentes constitui meramente uma convenção social e legal.
O Teste de Turing foi inventado em 1950 pelo matemático britânico Alan Turing, um dos pais da era da computação. Turing era homossexual em uma época na qual essa prática era ilegal na Grã-Bretanha. Em 1952 ele foi condenado por praticar atos homossexuais e obrigado a se submeter a castração química. Dois anos depois, cometeu suicídio. O Teste de Turing é uma replicação do teste mundano ao qual todo homossexual tinha de se submeter na Grã-Bretanha em 1950: você consegue se fazer passar por um heterossexual? Turing sabia por experiência pessoal que não importava o que você realmente é — a única coisa que importa é o que os outros pensam a seu respeito. De acordo com ele, no futuro os computadores seriam como os homossexuais na década de 1950. Não importa se os computadores efetivamente terão consciência, ou não. A única coisa que importa é o que as pessoas pensarão sobre isso.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã