quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O Teste de Turing

Talvez as ciências biológicas estejam olhando o problema pelo ângulo errado. Elas creem que a vida consiste tão somente em uma questão de processamento de dados e que organismos são máquinas de calcular e de tomar decisões. No entanto, essa analogia entre organismos e algoritmos pode nos induzir ao erro. No século XIX , os cientistas descreveram cérebros e mentes como se fossem motores a vapor. Por que motores a vapor? Porque era a tecnologia avançada da época, que acionava trens, navios e fábricas, de modo que, quando humanos tentavam explicar a vida, assumiam que ela devia funcionar de acordo com princípios análogos. Mente e corpo são feitos de tubos, cilindros, válvulas e pistões que criam e aliviam pressão, produzindo assim movimentos e ações. Esse conceito teve influência profunda até na psicologia freudiana, o que explica por que muitos de nossos jargões psicológicos estão repletos de conceitos emprestados da engenharia mecânica.
Considere-se, por exemplo, o seguinte argumento freudiano: “Exércitos aproveitam a libido como agente da agressão militar. O exército recruta jovens exatamente quando sua libido está no auge. O exército restringe as oportunidades de os soldados terem sexo e aliviarem essa pressão, a qual, consequentemente, se acumula dentro deles. O exército então redireciona essa pressão reprimida e a deixa ser libertada em forma de agressão militar”. É exatamente assim que funciona um motor a vapor. Aprisiona-se o vapor de uma ebulição em um recipiente fechado. O vapor acumula mais e mais pressão, até que subitamente abre-se uma válvula, e a pressão é libertada em uma determinada direção e aproveitada para impulsionar um trem ou um tear. Não só em exércitos, mas em todos os campos de atividade, frequentemente nos queixamos das pressões que se acumulam em nós e tememos que, a menos que consigamos “dar vazão a algum vapor”, possamos explodir.
No século XXI, soaria infantil comparar a psique humana a um motor a vapor. Conhecemos hoje uma tecnologia muito mais sofisticada — o computador — e assim explicamos a psique humana como se fosse um computador processando dados, e não um motor a vapor regulando pressões. Mas essa analogia pode revelar-se tão ingênua quanto a anterior. Afinal, computadores não têm mente. Eles não anseiam por nada, nem quando têm um bug, e a internet não sofre nem quando regimes autoritários cortam países inteiros da rede. Então, por que usar computadores como modelo para compreender a mente?
Bem, será que temos mesmo certeza de que computadores não têm sensações nem desejos? E, ainda que não tenham nada disso no presente, será que um dia podem tornar-se complexos o bastante para desenvolver consciência? Se isso acontecer, como vamos nos certificar? Quando computadores substituírem o motorista de ônibus, o professor e o psicólogo, como vamos determinar se têm sentimentos ou se são apenas um conjunto de algoritmos irracionais?
No que tange aos humanos, hoje somos capazes de diferenciar experiências mentais conscientes de atividades não conscientes do cérebro. Embora estejamos longe de entender a consciência, cientistas conseguiram identificar algumas de suas assinaturas eletroquímicas. Para isso, começaram com a seguinte suposição: sempre que humanos relatam que estão conscientes de algo, pode-se acreditar neles. Com base nessa suposição, os cientistas podem isolar padrões cerebrais específicos que aparecem cada vez que humanos afirmam estarem conscientes, mas nunca aparecem em estados inconscientes.
Isso permitiu aos cientistas determinar, por exemplo, se uma aparente vítima de AVC em estado vegetativo perdeu a consciência por completo ou apenas o controle de seu corpo e sua fala. Se o cérebro do paciente exibir as assinaturas denunciadoras de consciência, ele provavelmente está consciente, mesmo que não consiga se mexer ou falar. De fato, recentemente médicos conseguiram se comunicar com pacientes nesse estado usando imagens por ressonância magnética funcional. Eles fazem aos pacientes perguntas cuja resposta é sim ou não; dizem-lhes que se imaginem jogando tênis se a resposta for sim e visualizando onde fica sua casa se a resposta for não. Os médicos podem então observar como o córtex motor se ilumina quando os pacientes se imaginam jogando tênis (resposta “sim”), enquanto a resposta “não” é indicada pela ativação de regiões cerebrais responsáveis pela memória espacial.
Tudo isso se aplica muito bem a humanos, mas e quanto aos computadores? Como os computadores, cuja base é o silício, têm estruturas muito diferentes daquelas que compõem as redes neurais humanas, baseadas no carbono, as assinaturas de consciência dos humanos podem não ser relevantes para eles. Parece que estamos presos num círculo vicioso. A partir da suposição de que podemos acreditar em humanos quando relatam que estão conscientes, podemos identificar as assinaturas da consciência humana e depois usá-las para “demonstrar” que humanos estão realmente conscientes. Entretanto, se uma inteligência artificial autorreportar que está consciente, devemos simplesmente acreditar nisso?
Ainda não temos uma resposta satisfatória para esse problema. Milhares de anos atrás os filósofos já tinham se dado conta de que não havia como demonstrar conclusivamente que alguém, além de si mesmo, possui uma mente. De fato, mesmo no caso de outros humanos, só presumimos que tenham consciência — não temos como ter certeza disso. Quem sabe eu sou o único ser em todo o universo que sente alguma coisa, e todos os outros humanos e animais são apenas robôs irracionais? Talvez eu esteja sonhando, e todos com quem me encontro sejam somente personagens em meu sonho. Talvez eu esteja preso num mundo virtual, e todos os seres que vejo são simples simulações.
De acordo com o atual dogma científico, tudo o que eu experimento é resultado da atividade elétrica que ocorre em meu cérebro e deveria, portanto, ser teoricamente exequível simular um mundo inteiramente virtual que não me fosse possível distinguir do mundo “real”. Alguns neurocientistas acreditam que num futuro não tão distante poderemos efetivamente fazer coisas assim. Bem, quem sabe já tenham sido feitas — por você? Até onde se sabe, o ano poderia ser 2216, e você é um adolescente entediado imerso num jogo de “realidade virtual” que simula o mundo primitivo e excitante do início do século XXI . Uma vez ciente da mera exequibilidade desse cenário, a matemática o leva a uma conclusão muito assustadora: como só existe um mundo real, enquanto o número de mundos virtuais potenciais é infinito, a probabilidade de você estar habitando o único mundo real é quase nula.
Nenhuma das descobertas científicas foi capaz de superar esse notório Problema de Outras Mentes. O melhor teste que os estudiosos apresentaram até o momento é o chamado Teste de Turing, mas ele examina apenas convenções sociais. De acordo com o Teste de Turing, para poder determinar se um computador tem mente, você deve se comunicar simultaneamente com um computador e com uma pessoa real, sem saber quem é quem ou o quê. Pode fazer as perguntas que quiser, pode jogar jogos, discutir, até mesmo flertar com eles. Use todo o tempo que julgar necessário. Depois, você terá de decidir qual é o computador e quem é o humano. Se não conseguir, ou se cometer um erro, o computador terá passado pelo Teste de Turing, e deveríamos tratá-lo como se realmente tivesse uma mente. Contudo, isso não seria uma prova definitiva, é claro. Reconhecer a existência de outras mentes constitui meramente uma convenção social e legal.
O Teste de Turing foi inventado em 1950 pelo matemático britânico Alan Turing, um dos pais da era da computação. Turing era homossexual em uma época na qual essa prática era ilegal na Grã-Bretanha. Em 1952 ele foi condenado por praticar atos homossexuais e obrigado a se submeter a castração química. Dois anos depois, cometeu suicídio. O Teste de Turing é uma replicação do teste mundano ao qual todo homossexual tinha de se submeter na Grã-Bretanha em 1950: você consegue se fazer passar por um heterossexual? Turing sabia por experiência pessoal que não importava o que você realmente é — a única coisa que importa é o que os outros pensam a seu respeito. De acordo com ele, no futuro os computadores seriam como os homossexuais na década de 1950. Não importa se os computadores efetivamente terão consciência, ou não. A única coisa que importa é o que as pessoas pensarão sobre isso.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: uma breve história do amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário