sábado, 28 de setembro de 2019

Capítulo 131 - De uma calúnia

Como eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloco-cerebral, - o que era simples opinião e não remorso,- senti que alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele sorriu maliciosamente, e disse-me:
-Seu maganão! Recordações do passado, hem?
-Viva o passado!
-Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
-Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição, -principalmente a última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc, ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo 101 e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante - o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, essa meiga fatuidade, que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos séculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha a descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir.”
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

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